As cheias e vazantes periódicas do Rio Paraná e seus afluentes, principais formadores da Bacia do Prata, são típicas dos ciclos hidrológicos que vêm se sucedendo desde a mais remota antiguidade. Basta recordar as recentes referências históricas dos séculos XVII e XVIII, assim como as mais próximas dos anos de 1812, 1858, 1878, 1905 e 1966, para verificar que cheias extraordinárias, como as de 1982-83, não são novas nestas regiões.
Contudo, a partir da chegada dos conquistadores, e, especialmente, com o auge do industrialismo nesta região do continente, acompanhado pelo correspondente crescimento demográfico, agropecuário e industrial, os diversos ecossistemas que constituem a Bacia vêm acusando o impacto da atividade produtiva do homem.
Com estas alterações, a destruição da cobertura vegetal, o esgotamento dos solos e os processos erosivos juntam-se a uma série de fatores antrópicos múltiplos, cuja somatória seguramente incide no agravamento das cheias, seus níveis e sua duração.
A secagem dos baixios e a construção de canais são outras práticas inadequadas que aceleram a vazão das águas.
Ao mesmo tempo, o traçado de rodovias e caminhos e os aterros em zonas de vales aluviais produzem o represamento das águas e um aumento de seus níveis, agravando os desastres em zonas ribeirinhas.
É certo, também, que os assentamentos humanos ocorreram muitas vezes sobre terrenos “conquistados ao rio”. Contudo, isso não impede que nos oponhamos a que se qualifiquem estes fenômenos simplemente como “desastres naturais”.
A carência de uma visão global da Bacia de Prata e o insuficiente conhecimento de cada região são razões para uma séria preocupação ante a possibilidade de novas cheias.
Transferir para a natureza os erros humanos, falando de “desastres naturais”, é refletir a mesma atitude, irresponsável ou ingênua, que continua alimentando o mito de uma natureza eternamente generosa e inesgotável, sábia a ponto de ser capaz de recuperar-se gratuitamente de uma depredação contínua e ilimitada: se a água não penetra no solo em que cai, a erosão, as inundações e as secas são inevitáveis.
O papel regulador das matas
Na região de Misiones, no norte argentino (fronteira com o Paraná e Santa Catarina), o cientista Alberto Roth [ver box no final do artigo] vem advertindo há anos sobre os efeitos do desmonte, das queimadas, do esgotamento dos solos, da erosão e dos desequilíbrios climáticos e ambientais.
“Os que se queixam das inundações se esquecem da destruição prévia dos bosques e do mal manejo dos solos durante anos e anos, além das chamadas correções de riachos, rios e lagoas, que agem como freios naturais das águas em épocas de grande chuvas”.
“No norte da Província de Santa Fé (Vale do Rio Paraná), uma única empresa cortou rapidamente 1.500.000 hectares de bosques de quebracho, sem tomar as mais elementares medidas de reflorestamento…” “Em Misiones são arrasadas grandes extensões de matas nativas subtropicais em terrenos com muita inclinação, para a implantação de monoculturas, pinheiros resinosos, estranhos à região… que logo vão terminar em desertos”.
“Nossso grande vizinho, o Brasil, não soube frear o desmatamento das vastas áreas e corre um grande perigo de empobrecer por causa destas devastações…” “Ventos não freados e chuvas arrastarão as coberturas férteis de suas terras e o sol queimará as terras desnudadas.” “Podemos observar a chegada de colonos no Paraguai, aonde conseguem terras com belas matas, dez vezes mais baratas que no Brasil, 200 hectares em troca de vinte. Solo fértil, virgem…excelentes colheitas à vista. Por quanto tempo?”
Alberto Roth propõe alternar as áreas de cultivo de chá, algodão, erva-mate e outros produtos com parcelas de mata natural para amortecer, ao menos em parte, os impactos ambientais e conservar a fertilidade do solo.
Afirma o Dr. Lorenzo Garcia que “os rios são uma mensagem até agora não decifrada”. Enquanto isso, entre os que pensam em solucionar o problema das inundações para o futuro, multiplicam-se as propostas mais diversas: desde muralhas, diques e terraplenos que defendam as cidades até obras de “regulação” das águas, construção de novos canais e faraôncias obras de engenharia de custos superlativos…
Sem dúvida, seguimos no desconhecimento de muitos dos parâmetros que regulam o comportamento deste gigantesco Rio Paraná, que suporta anualmente em sua bacia a impressionante massa de mais de 3.600.000 hectômetros cúbicos de água de chuva que se precipitam sobre uma vasta superfície de 3.000.000 de km quadrados pertencentes ao Brasil, Paraguai, Bolívia e Argentina.
Toda esta enorme bacia está regulada em seu clima, sua ecologia e seu regime hídrico pela inter-relação de uma série de fatores cujas interações em grande parte desconhecemos.
Ao mesmo tempo, há também aqueles que pensam que tentar deter aqui, rio abaixo, os futuros aluviões de enormes massas de água apenas com diques, canais e terraplenos não passa de uma utopia demasiado cara, enquanto, ao longo de toda a bacia, continuar a destruição em larga escala dos elementos naturais que absorvem, amortecem, regulam e equilibram esse colosso de água, sobretudo em períodos de cheias extraordinárias.
Inundação: problema de governo ou do cidadão comum?
Os aldeões dos Montes Himalaia não são ecólogos. Apesar disso, em abril de 1973, os motanheses, com suas mulheres e filhos, marcharam até uma mata para abraçarem-se às árvores marcadas para o corte, interpondo-se entre estas e os lenhadores.
Assim nasceu o movimento “Chipko”, que na língua local significa aderir. Depois das desastrosas inundações e desmoronamentos que devastaram a região atravessada pelo Rio Alakhananda em 1970, os aldeões compreenderam a conexão que havia entre o desflorestamento que vinha sendo feito desde vários anos e o aumento brutal de seis metros no nivel do rio, com toda a sua sequela de mortos e aldeias arrasadas.
Em 1977, o governo da Índia proibiu o corte nesta bacia de 1.200 km² por um período de dez anos.
Diante de exemplos como este, que se repetem em diversas regiões do planeta, nós, que enfrentamos a enchente do Paraná mais devastadora de nossa história, não podemos deixar de estabelecer claros paralelos.
Mais clara ainda é a opinião do grupo internacional de especialistas que, em 1980, deu a conhecer a Estratégia Mundial para a Conservação, lançada pela União Internacional para a Conservação da Natureza com o apoio do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e o World Wildlife Fund. No documento, expressa-se uma filosofia que pode ser resumida na idéia de que “a conservação dos recursos naturais é indispensável para assegurar um desenvolvimento sustentado”.
No capítulo dois lê-se: “As matas das bacias hidrográficas têm uma importância particular porque protegem a cobertura local do solo e protegem, igualmente, os terrenos rio abaixo das grandes inundações e de outros estragos provocados pelas flutuações do caudal.” “A metade da humanidade depende, para sua vida e subsistência, do manejo dos ecossistemas nas bacias superiores dos rios.”
Recordemos agora as palavras de Jacques-Yves Costeau: “O problema é saber quem deve avaliar os riscos que podemos correr, e não apenas nós, mas também nossos filhos e as centenas de gerações vindouras. São as autoridades oficiais? São os políticos obcecados por sua carreira? São os comerciantes preocupados unicamente com seu lucro? São os tecnocratas? Não. A resposta é simples: são os cidadãos comuns. Seu dever cívico é dar a conhecer sua opinião por todos os meios, em voz tão alta quanto possível. Contudo, para poder julgar é necessário primeiro compreender”.
Para dizer a verdade, estamos tentados a assinar em baixo deste pensamento, letra por letra. Muitos dos fatos conhecidos e vividos nestes dias têm-nos confirmado plenamente.
Creio que as coisas podem vir a mudar em um futuro não muito remoto. No dia em que os empresários fizerem um balanço de seus lucros cada vez mais exíguos. Ou talvez no dia em que administradores públicos vejam a água invadindo o jardim de suas casas. Esses dias talvez apressem o momento em que os técnicos trabalharão sob o controle de uma legislação em favor da vida.
Enquanto isso, os cidadãos não podem esperar. Ainda que valendo-se apenas de dados escassos e fragmentários, poderão esboçar, como fazemos nós agora, uma lista de prioridades que torne possível o futuro nesta terra.
Eles – os cidadãos – já tiveram que fazer uma outra lista, em muitos casos: a da ruína de suas propriedades, da devastação de suas plantações de suas fontes de trabalho, da destruição de pontes e estradas e dos múltiplos aumentos de despesas.
Eles – que somos nós, habitantes desta vasta região da América – devemos atuar como os catalizadores de um profundo processo de restauração ambiental que vá além da vã miragem dos paliativos improvisados.
Devemos primeiro compreender para depois fazer ouvir nossa voz em todos os países da Bacia do Prata. Unindo nossa ação à ação inteligente dos Estados. Identificando as ações incorretas que somente apontam para hoje ou amanhã. Fortalecendo dia a dia uma benéfica cooperação entre uma tecnologia apropriada e as forças naturais. Isto é, promovendo em todos os seus aspectos a caminhada para um desenvolvimento sustentando: o ecodesenvolvimento, capaz de conservar e multiplicar os recursos e previnir os desastres.
A advertência desta enchente pode ser a última. Não ouvi-la é arriscar não só a qualidade e dignidade de nossa vida, mas também nossa própria sobrevivência como habitantes desta terra, nosso único lar.
Nota sobre o autor
Jorge Cappato é um jornalista argentino, da Província de Santa Fé. Em 1984, quando escreveu este artigo, era editor do boletim ECONOTICERO e membro do Centro de Proteção à Natureza de Santa Fé. A Argentina acabara de sofrer uma das maiores enchentes de sua história, com inundações ao longo de todo o vale do Rio Paraná – a mesma cheia, aliás, que também provocou estragos em diversas cidades do sul do Brasil. Nos anos subsequentes, a região voltaria a sofrer outras enchentes devastadoras, como nos anos de 1992 e 1998. A tradução em português foi publicada por OUTRA em outubro do mesmo ano. Atualmente Cappato é diretor da ONG argentina Fundación Proteger.
O agrônomo e conservacionista suíço Alberto Roth, citado por Jorge Cappato, nasceu em Basileia, Suíça, em 1901, e faleceu em Santo Pipó, Argentina, em 1985. Foi um pioneiro da preservação ambiental na província de Misiones, no nordeste da Argentina, e um dos maiores especialistas no conhecimento do solo e vegetação da região. O Jardim Botânico de Posadas leva hoje seu nome. Seu legado é mantido hoje pela Fundação Alberto Roth.
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