9 de abril de 1986: Mrs. Judith Mac Knight Jones caminha devagar pelo quintal, entre as orquídeas, e olha com admiração para o céu. Algumas quadras adiante, os Whitehead e os Radcliff abrem as janelas e fixam os binóculos na estranha luz que brilha um pouco acima do horizonte, na constelação de Sagitário. Na praça principal, o maestro interrompe a apresentação da orquestra sinfônica municipal enquanto o Doutor Travnik, diretor do observatório, desvenda para um grupo de crianças ansiosas os mistérios da observação astronômica.
Apesar dos olhos azuis de boa parte da população e da bandeira dos Confederados hasteada entre as relíquias das fazendas de algodão do Mississipi, não estamos nos Estados Unidos: esta cidade, onde todo mundo vai parar para ver o Cometa de Halley, chama-se Americana e fica a apenas 130 Km de São Paulo.
Até poucos meses atrás, nada indicava que a rotina de Americana fosse afetada pela passagem do cometa. Maior centro têxtil da América do Sul, com 800 pequenas indústrias funcionando a todo vapor, a cidade tem uma população ocupada demais para ter tempo de pensar em aventuras cósmicas. As coisas começaram a mudar quando o astrônomo Nelson Travnik, Diretor-Geral do Observatório do Capricórnio, em Campinas, e coordenador do Programa Brasileiro de Observação do Cometa de Halley, descobriu que Americana era a cidade brasileira com melhores condições de visibilidade para o acompanhamento do fenômeno. É ele quem explica:
–Em São Paulo não há céu para ver o Halley. Nem mesmo no Rio ou em Campinas. O essencial, para isso, é sair das grandes cidades. Aqui, o nível de poluição atmosférica é mínimo e não prejudicará a visibilidade. Além disso, Americana tem um dos dois únicos observatórios municipais brasileiros abertos ao público e toda a infra-estrutura necessária.
Nos últimos meses, Travnik dedicou-se ao cometa em tempo integral: escreveu um livro – único no gênero – e percorreu diversas cidades, dando palestras e exibindo um áudio-visual sobre o Halley. Ao contrário do estereótipo tradicional do cientista, Travnik é falante e agitado, incapaz de ocupar a mesma cadeira por mais de dois minutos. Sua grande preocupação é aproveitar o interesse pelo Halley para provocar uma discussão sobre a reformulação do ensino de Ciências no Brasil.
–A aparição do cometa vai despertar as pessoas para a observação das maravilhas da natureza. Está na hora certa de sensibilizar o governo para o retorno da astronomia aos bancos escolares.
A recuperação da memória
Mas não é apenas Nelson Travnik que está preocupado com o impacto do cometa sobre a vida de Americana. Sérgio Barbosa, um veterano profissional de turismo, responsável pela implantação de uma série de projetos bem sucedidos, como o Oktoberfest de Blumenau e a Cidade da Criança, em São Bernardo do Campo, mudou-se para Americana há menos de um ano. Como gerente de vendas da cadeia União de Hotéis, sua missão era manter o hotel – o melhor de Americana – em evidência como ponto de convergência de simpósios e convenções. Nada mais fácil em uma região basicamente industrial, onde atividades deste gênero ocorrem a cada semana. Mas Sérgio foi um pouco além: apaixonou-se pela cidade e, por conta própria, iniciou um extenso programa de pesquisas para levantar a memória cultural do município.
–Eu achava estranho que uma cidade fundada por americanos, fazendeiros sulistas que buscaram o Brasil depois da derrota na Guerra de Secessão, desse tão pouca importância ao seu passado. Saí pesquisando, mas durante algum tempo não encontrei nenhuma pista que me levasse às raízes desse processo histórico. A descoberta se deu por acaso. Meu filho, conversando com a professora de história, ficou sabendo a respeito de uma senhora, neta dos fundadores, que estava terminando um livro a respeito.
Sérgio descobriu o telefone da escritora e ligou para ela no mesmo dia. Para sua surpresa, recebeu um convite para tomar chá com Dona Judith Jones naquela mesma tarde.
Desta conversa nasceu a idéia do Museu dos Confederados. Dona Judith precisava de um local para expor todas as peças históricas trazidas por seus antepassados: ferramentas, quadros, bíblias, velhas lembranças da época de ouro das fazendas de algodão. Sérgio propôs o mezzanino do hotel e providenciou a vinda de um museólogo e de um arquiteto. Em dois meses o museu estará pronto.
Contudo, a parte mais interessante da herança americana da cidade é a própria Dona Judith. Seu livro é uma delícia e conta histórias absolutamente incríveis. Como, por exemplo, a introdução do cultivo de melancias no Brasil:
–A melancia era totalmente desconhecida por aqui. Foi um imigrante, o Tio Joe Whitaker, que, na última hora, resolveu enfiar no bolso um punhado de sementes de melancias para plantá-las para as crianças, na nova pátria.
Os americanos não introduziram só as melancias; trouxeram, com eles, toda uma revolução agrícola que influenciou o Brasil inteiro. O Instituto de Agronomia Luís de Queiroz, em Piracicaba, utilizou as roças dos americanos para demonstrações de práticas de cultivo durante mais de vinte anos. Com eles também vieram os arados de ferro, os teares – semente da futura indústria têxtil – e, um pouco mais tarde, a primeira indústria brasileira montada em bases cooperativistas. Das primitivas escolas criadas pelos pastores metodistas americanos surgiram grandes núcleos universitários, como o Instituto Metodista, de São Bernardo do Campo, e as Faculdades Bennett, do Rio de Janeiro.
A colônia é, até hoje, fundamentalmente religiosa e solidária. Há uma Fraternidade que cuida do acervo cultural e do cemitério protestante. Neste cemitério encontra-se o túmulo do bisavô de Rosallyn Carter, esposa do ex-presidente dos Estados Unidos. Há alguns anos, o casal Carter visitou Americana e esteve na casa de D. Judith, que guarda as fotos até hoje. Mas apesar de falar inglês em casa e receber a visita de um presidente, D. Judith tem opiniões muito próprias em relação a alguns assuntos:
–Sou contra essa história dos americanos e dos alemães exportarem para o Brasil suas indústrias mais perigosas para produzir aqui agrotóxicos e medicamentos proibidos. Em 1922, quando estávamos combatendo a praga da lagarta, perdi um irmão e eu própria me intoxiquei com o uso de venenos químicos. Hoje, a colônia americana, por causa de seu alto nível cultural, é a mais consciente quanto ao uso de agrotóxicos nesta região. Entre nós, não houve um único caso de intoxicação nos últimos anos. Os brasileiros, de uma forma geral, são muito comodistas quanto a esses problemas de contaminação. Há pouca informação e falta de orientação por parte do governo.
D. Judith aproveita para analisar também as causas do êxodo da população para os grandes centros urbanos:
–Para pôr um freio nesse processo, é preciso incentivar o conhecimento da memória cultural, ter orgulho de nossas raízes. Escrevi meu livro como um protesto contra a perda dessa memória em nossa cidade.
Casada há 50 anos, D. Judith só teve tempo para dedicar-se às pesquisas de dez anos para cá, quando terminou a faculdade de Educação. Seu trabalho valeu-lhe a condição de membro do Instituto Histórico de São Paulo e do Instituto Brasileiro de Genealogia. Sobre a euforia pala passagem do Cometa em Americana, ela fala com certa apreensão;
–Minha mãe, que hoje tem 105 anos, foi testemunha do Halley em 1910. agora, não sabemos como vai se comportar esse monte de gente que vem pra cá. Quanto aos ecologistas e pacifistas que pretendem vir, acho ótimo. Precisamos mesmo discutir o problema da poluição dos rios.
O que aconteceu depois:
Ao contrário do que todos esperavam, quase ninguém conseguiu ver o cometa de Halley a olho nu em 1986. Só o viu em detalhes quem participou de visitas guiadas a observatórios astronômicos.
O astrônomo Nelson Travnik, nascido em 1935, aposentou-se em 1996 e foi recentemente homenageado com o título de Cidadão Campineiro pela Câmara Municipal de Campinas.
Dona Judith Mac Knight Jones faleceu há algum tempo em Santa Bárbara do Oeste, cidade paulista próxima de Americana, onde a influência dos imigrantes do sul dos Estados Unidos também se fez presente. É autora do livro “Soldado Descansa”, fruto de seu trabalho de pesquisa sobre a história da imigração americana para o Brasil. A foto à esquerda foi registrada por Augusto Strazdim em 1967 e mostra Dona Judith recebendo uma homenagem do Rotary Club de Santa Bárbara do Oeste (fonte: site da Fundação Romi, dedicada à preservação da história de Santa Bárbara d’Oeste).
O Museu dos Confederados funciona hoje em Santa Bárbara d’Oeste, cidade vizinha a Americana (na prática, Santa Bárbara, Americana, Nova Odessa e Sumaré formam uma única região metropolitana).
Deixe um comentário