Capítulo
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Capítulo 5
O Show Vai Começar
Abriram os portões e começou o “ritual”
de entrada. Mal dava para dizer se era um estouro de
boiada ou se eram jovens completamente “fissurados”
pela ansiedade de verem os músicos. Empurra daqui,
espreme de lá, Edgar, Ari e Rômulo foram
cada um para um lado diferente. Não se importavam
muito com isso, pois não se conheciam muito bem
e preferiam manter-se separados. Rômulo, ávido
por arrumar alguém para trocar uns beijos e,
quem sabe, algo mais, buscava infrutiferamente uma moreninha
que antes lhe sorrira de maneira sensual. Ari, muito
ágil, saiu correndo para o local mais próximo
possível do palco. Queria, se pudesse, ficar
de pé ao lado do vocalista, cantar junto com
ele as músicas que já decorara fazia tempo.
Edgar, um tanto temeroso, apenas tentava não
ser pisoteado pela turba. Acabou sendo levado pela multidão
para um local meio afastado, no lado direito do palco.
Percebeu de imediato que ali não daria para enxergar
muito bem o grupo: havia uma enorme caixa de som barrando
a visão. Tentou sair, mas o empurra-empurra o
deteve. Resolveu esperar até ser possível
se locomover, o que não parecia nada fácil.
O Legião Urbana não era um conjunto fantasiado
e nem explorava com tanta ênfase os estereótipos
punk, heavy metal ou new wave, bastante comuns na época.
É verdade que eles tiveram uma origem bem próxima
do punk, talvez até o tivessem sido de fato,
quando a banda ainda estava em gestação
nos tempos do “Aborto Elétrico”.
Após os primeiros sucessos, no entanto, aparecia
de uma maneira bastante original. Talvez a maior semelhança
com as outras bandas era a mensagem de rebeldia. Ainda
assim, a rebeldia professada nas letras de Renato Russo
não era exatamente contra os pais ou um espasmo
de rebelde sem causa ignorante de possibilidades políticas.
As letras evocavam uma indignação com
o sistema, uma espécie de convocação
para uma visão mais crítica sobre a sociedade.
Eram escritas de forma inteligente levando a reflexões,
não prezando somente pelo agitar dos ânimos.
Também falava bastante dos dramas vividos por
adolescentes e por quem tinha entre 20 e 30 anos, comentando
histórias de amor, de ódio, as frustrações
dos sonhos... Enquanto algumas músicas eram verdadeiras
bofetadas na hipocrisia humana, outras ressaltavam possibilidades,
criando um pequeno brilho de esperança, incentivando,
motivando. Não eram letras complexas. Apesar
de conterem mensagens nas entrelinhas e alguns duplos
sentidos, em geral eram, como diriam os astrólogos,
“arianamente diretas”. Afinal de contas,
segundo Ari, fanzoca ferrenho do Legião, Renato
Russo, cantor e letrista, tinha nascido sob o signo
de Áries. O próprio Renato fazia questão
de deixar isso bem claro, quando, nos intervalos entre
uma música e outra, mencionava sua amizade com
Cazuza, outro “carinha do signo de Áries”,
em suas palavras.
Edgar ainda sentia um pouco de enjôo, especialmente
quando uma moça que estava sentada a seu lado
levantava. Tal era a proximidade que num movimento brusco
ela esbarrou acidentalmente na mão esquerda do
rapaz. Foi nesse momento que ele sentiu novamente a
dor de cabeça peculiar que sentira ao acordar
pela manhã. Não era uma dor de cabeça
comum. Localizava-se bem entre os olhos e latejava como
se prenunciasse o brotar de alguma coisa. Olhou de relance
para a moça e notou, em seu ventre, o pequeno
feto que ela carregava. Ao mesmo tempo em que ficou
estupefato pela visão, sentiu uma ternura sem
igual, uma felicidade extrema, como se a criança
que estava por nascer estivesse se comunicando com ele.
Ela parecia dizer estar feliz por estar no útero
da mãe, mas se sentia um tanto desconfortável
com tanto barulho e com tanta agitação.
“Talvez seja por isso que a sensação
de felicidade venha junto com o enjôo” -
assim pensou. Tratou de eliminar esse pensamento o mais
rápido que pôde, afinal estava “imaginando
coisas” outra vez. Parece que sempre que havia
algum tipo de stress ou situação tensa
essas “maluquices” se manifestavam. Assim,
tratou de se controlar, como se pudesse realmente fazer
isso.
Alguns metros atrás, sem saber da proximidade
de Edgar, Rômulo notava a presença do policial
que o abordara quando do salvamento do casal na entrada
do jóquei clube. Ficou tentando entender o motivo
da presença do policial fardado bem no meio da
multidão, distante de onde se localizavam os
seguranças e policiais do local. Coçou
a cabeça cuidadosamente raspada ao se dar conta
de algumas coisas muito estranhas:
a) O policial portava embainhada na cintura uma espada
com o punho ricamente trabalhado. O que um policial
comum estaria fazendo com uma espada daquelas? E parecia
uma espada medieval, enorme. Será que era um
cara fantasiado e não era polícia coisa
nenhuma?
b) As pessoas pareciam não enxergar aquela figura
anacrônica e ao mesmo tempo hilária. Passavam
por ele como se não existisse. Notou também
que o guarda o olhava de rabo-de-olho.
c) Demorou para se tocar de um detalhe, talvez em função
do susto que levara e da estranha compulsão de
salvar aquele casal na entrada do local: a história
que aquele guarda contou ele conhecia muito bem. Era
uma das histórias que ouvia de sua mãe
sobre seu avô, Severino, que ficou conhecido como
Onça.
Era uma coincidência grande demais e Rômulo
tinha a sensação de estar sendo vigiado.
Tentou disfarçar olhando para o lado e um segundo
depois, ao voltar-se para onde estava o policial, notou
que ele desaparecera.
Ari desembainhava uma máquina fotográfica
pequenina que levava numa pochete. Mal podia esperar.
Planejava burlar a segurança para conversar com
os ídolos e tirar fotos para mostrar aos amigos.
Bem, os “amigos” que tinha não gostavam
de Legião Urbana, eram “mauricinhos”
demais, preocupados com suas carreiras após a
formatura. Eram pessoas do círculo de relacionamentos
de seus pais, filhos de políticos e empresários
importantes. Era-lhe difícil conviver com eles,
seus assuntos e interesses não batiam. Apesar
da boa situação financeira de seus pais,
Ari não se interessava pelas etiquetas da moda,
pelos tênis de marca e muito menos estava interessado
nas conversas sobre carros, relógios e esportes
caros que dos “amigos”. Sentia saudades
dos amigos de Brasília, cidade do Legião,
onde viveu quando criança, quando seu pai trabalhava
num órgão do governo. Infelizmente a família
se mudou de volta para o Rio e ele foi perdendo o contato
com eles.
Ao experimentar a câmera para ver se podia enquadrar
bem o palco, viu aquele guarda que falara com Rômulo
no episódio do casal. Lá estava ele junto
à barreira de seguranças em torno do palco.
Os mesmos seguranças pareciam não notar
a presença do policial. Tirou uma foto de teste
e percebeu que na hora do clique vinha um brilho metálico
ao longo da perna esquerda do policial. Parecia uma
espada. Abaixou a câmera para ver melhor, mas
o homem sumira de vista.
As luzes do palco se apagaram indicando que o show
ia começar. A tensão da platéia
era visível e todos que estavam sentados se levantaram.
Um
Show e Alguns Fenômenos
Edgar preparou-se. Seu coração batia
mais forte. Sua fronte latejava com mais intensidade,
o que o fez inclinar-se um pouco. Ao levantar a cabeça
novamente, o susto: a noite virara dia, a multidão
estava inacreditavelmente diferente, com mulheres cobertas
dos pés à cabeça com panos meio
maltrapilhos e homens barbudos também vestidos
como se estivessem numa peça da “Paixão
de Cristo”. Ao lado rodavam algumas bigas romanas
e transitavam soldados com lanças, couraças
e escudos. Olhou para si mesmo e notou que trajava roupas
iguais às das pessoas da multidão. Esfregou
os olhos numa vã tentativa de voltar à
realidade. Engoliu em seco ao olhar na direção
do palco: diante da platéia estavam três
condenados pela justiça romana. Eles estavam
um tanto maltratados, sangrando muito, com tangas de
pano enrolado, de peito nu e amarrados nas mãos
e pés. Eram todos de pele escura, com feições
árabes e tinham barbas e cabelos desalinhados
pelo martírio. Em cada extremidade do que antes
era o palco figurava um grupo de soldados romanos e
um homem que parecia uma espécie de juiz. A cena
era um tanto parecida com o texto bíblico, mas
não se tratava do julgamento do Cristo, mesmo
porque tudo indicava que aquelas circunstâncias
eram posteriores ao que contam os Evangelhos.
Tapou o rosto tentando se desvencilhar da visão,
mas mãos suaves e carinhosas de uma mulher jovem
o fizeram tornar a vislumbrar todo o cenário.
A mulher sorrindo serenamente fez sinal para que ficasse
calado e observasse. Edgar acalmou-se com seu toque.
Como se tivesse uma visão de raios-X, pôde
divisar Rômulo e Ari no meio da massa de pessoas.
Ambos estavam cabisbaixos, demonstrando imenso pesar.
Pareciam-se fisicamente, como se fossem irmãos.
Rômulo tinha cabelos desgrenhados e suas feições
estavam um tanto diferentes, sua pele mais clara, embora
com a tez semelhante à dos condenados. Ari não
tinha traços muito diferentes de sua versão
atual, exceto pela tonalidade bem amorenada da pele,
pela barba e pelo cabelo bem mais comprido e crespo.
Qualquer um que visse aqueles dois diria tratar-se de
pessoas absolutamente distintas, mas Edgar de algum
modo sabia que eram aqueles dois rapazes que vinha encontrando
em situações estranhas. A mulher, que
tinha um leve brilho em torno do corpo, apontava para
ambos. Tocou-lhe a fronte com o indicador e a dor de
cabeça aliviou. Em seguida ela aponta por cima
do ombro de Edgar. Ele vê um casebre com um símbolo
que não lhe era estranho: algo parecido com um
peixe estilizado desenhado na porta. Ela chama a atenção
novamente para seus conhecidos e ele nota que o mesmo
símbolo brilhava próximo à fronte
de cada um.
Uma voz interior informa o jovem que a multidão
ali estava para comemorar a páscoa, com uma festividade
típica de quando Roma era um Império.
Os romanos costumavam libertar presos políticos
nessa época. Edgar estremeceu quando prestou
atenção no prisioneiro que estava mais
à frente: era Renato! Diferente em corpo e feições,
mas era Renato Russo! Ele tinha certeza disso. Não
teve dificuldade para perceber algum tipo de semelhança
dos outros dois com Dado Villa Lobos e Marcelo Bonfá,
respectivamente, guitarrista e baterista, cada qual
com sua cota de açoite.
A turba gritava ensandecida pelo circo de sangue que
em breve iria ver. Apesar de perceber a barbaridade
da situação, Edgar permanecia calmo, enquanto
a mulher enigmática fazia um gesto indicando
que Rômulo, Ari e ele tinham algum tipo de laço.
A mulher foi-se desvanecendo numa nuvem luminosa. Ao
olhar o palco, eis que ele vê o condenado da frente
mexer-se de forma frenética numa tentativa desesperada
de libertação: ele havia sido o primeiro
a ser condenado à cruz, forma de execução
bastante comum para os romanos naquela época
e não uma exclusividade para a figura do Cristo,
como muitos acreditam. A visão de Edgar escurece
levemente e aos poucos a figura agitada de Renato Russo
dançando de forma peculiar no palco assume o
lugar daquele condenado que se debatia. Ele olha ao
redor e é noite novamente. O show já começara
e ele desperta de seu transe com um forte esbarrão
de uma fileira de pessoas que pulavam de um lado para
outro. O impacto leva-o ao chão enlameado, onde
cai de cara. Embora todo sujo e irritado, se esforça
por ver o que se passava a partir do local nada privilegiado
onde estava. Acabou esquecendo por algumas horas o acontecido
e vibrando com as músicas e com seus heróis.
Encontro
com o Ídolo
O show estava terminado e a multidão tinha mais
de uma opção de saída. Muitos cantavam
as músicas enquanto casais que ali tinham se
conhecido se beijavam. Rômulo estava meio decepcionado:
não conseguira ninguém, logo ele, que
era bom de lábia. Decidiu falar com um dos seguranças
que era seu conhecido. Nesse ínterim, chega Ari,
desviando-se como uma minhoca de um e de outro. Ele
aproveita a distração do segurança
que falava com Rômulo (Ari nem o percebeu) e,
com a máquina fotográfica na mão,
adentrou pelos bastidores. Edgar, premido pelo movimento
da turba acaba dando de cara com Rômulo no exato
momento em que uns quatro seguranças correm atrás
de Ari. Ambos correm na mesma direção
e se deparam com Ari, como sempre gesticulando tal qual
uma marionete, na frente de Renato Russo, que se demorara
um pouco além de Dado Villa Lobos e de Marcelo
Bonfá. À aproximação dos
enormes guardiões, Renato levanta a mão
e diz:
- Está tudo bem, podem deixar, ele não
está atrapalhando. Não vai demorar.
Perguntados sobre o que estariam fazendo ali, Rômulo
e Edgar falaram ao mesmo tempo que estavam “acompanhando
o cara da câmera”. Os rapazes mal podiam
se conter de tanto entusiasmo. Bem na frente deles,
e conversando animadamente, estava Renato Russo. Aristóteles,
é claro, não pôde conter um sorrisinho
ao perceber que o ídolo tinha alguns cacoetes.
Rômulo observava calado, pois não era de
agir explicitamente com essa tietagem. Edgar estava
de olhos arregalados, todo enlameado, parecia ter chafurdado
como um porco. Renato olha para os dois e sorri. Estava
visivelmente cansado, mas procurava entender o entusiasmo
dos rapazes.
Ari, que não parava de metralhá-lo com
milhares de palavras soltas, finalmente lança
uma pergunta:
- Renato, é o seguinte: eu sou técnico
em equipamentos de áudio. Será que você
não teria uma vaga pra alguém na sua equipe?
Olha eu faço qualquer coisa, até lavar
chão, mas queria muito trabalhar com vocês.
- Ih, cara, só que não vai dar dessa
vez, sabe? Nosso pessoal tá completo. Se tivesse
uma vaga eu até poderia ver se dava, mas, aí,
agora não tem jeito.
Após uma breve despedida, autógrafos
e um apertos de mão gratificantes para os rapazes,
renato se vira e olha para o trio. Volta-se para o segurança
e diz:
- Vem cá, esses três caras me parecem
familiares. Você já os tinha visto antes?
- Não, é a primeira vez. Por quê?
- Sei lá... de repente me deu a impressão
de tê-los visto representando uma peça
da “Paixão de Cristo” e isso me fez
sentir uma coisa estranha... foi como se eu tivesse
me preparando pra morrer e deixar um legado pra um monte
de gente. Esquisito mesmo... deu a impressão
de que eu ocultava um segredo que não podia contar
pra ninguém, como se eu fosse um preso nos porões
da Ditadura e estivesse tentando salvar meus companheiros
não os delatando.
Enquanto Renato se afastava, Edgar reparou que havia
uma mancha escura pairando em meio a um campo luminoso
esfumaçado em torno de seu corpo. Aquela mancha
deu-lhe a sensação de perda característica
da orfandade, coisa que conhecia bem. Isso durou apenas
alguns segundos, até que os três se dirigiram
ao portão de saída.
Rômulo foi o primeiro a dizer o que parecia inquietar
os três desde que se encontraram nos bastidores.
Falou sobre o fato de ter visto Edgar e Ari vestidos
com togas sujas e rasgadas com um símbolo que
parecia um peixe. Achou que fosse por causa da fumaça
da maconha que um grupo de pessoas fumava ao lado dele.
Aristóteles e Edgar arregalaram os olhos como
querendo dizer: “vocês dois também
viram??!!”
No caminho até o ponto de ônibus começaram
a conversar sobre estranhas coincidências que
vinham ocorrendo com os três desde o vestibular.
Aristóteles narrou alguns sonhos bem estranhos.
Rômulo disse ter tido sonhos um tanto parecidos
e por volta dos mesmos dias. E “quem diabos era
aquela mulher de três faces?” – perguntavam
todos. Edgar perguntou se eles estavam presenciando
situações estranhas ou tendo visões
em plena luz do dia, ao que responderam negativamente.
Ao que tudo indicava, daquele trio sui generis somente
ele tinha tais visões enquanto acordado.
Cada um pegou um ônibus diferente, pois moravam
em pontos distantes entre si. Nem Rômulo nem Ari
comentaram sobre a estranha figura do policial portando
uma espada estranha, pois acharam ter sido apenas uma
impressão. No entanto, em certo ponto da viagem,
simultaneamente, nos três ônibus, o mesmo
policial entra e se senta um pouco atrás de cada
um dos rapazes, com exceção do ônibus
de Edgar, onde ele pára um pouco à frente
e o cumprimenta com uma breve continência. Edgar
responde estranhando um pouco a coincidência.
Começam
as Aulas
As coisas pareciam até estar sendo combinadas,
mas não estavam. Chegando exatamente no mesmo
minuto no portão da UERJ, Edgar, Rômulo
e Ari param e se cumprimentam. Ari pede-lhes um minuto
e abre a mochila. Para o enorme espanto, principalmente
de Rômulo, a primeira foto era a de uma fileira
de seguranças com um homem negro com um brilhante
halo em torno do corpo e com uma espada toda ornamentada
na cintura. Mais impressionante que a confirmação
da visão da espada era o formato do halo: ele
parecia formar asas às costas do policial.
A segunda foto surpreendeu Edgar, mas não tanto
quanto o fez com seus dois companheiros. Era uma foto
impossível de ter sido tirada, até porque
os três não se reuniram durante o show.
Lá estavam os três lado a lado e acima,
como que os envolvendo, a imagem diáfana de uma
mulher jovem.
Capítulo 5
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