Os
primeiros meses de contato com a universidade e com
os novos colegas não foram muita coisa além
do esperado. Novidades, professores excêntricos
e autores consagrados das ciências sociais, cópias
de livros... Todos sabiam que isso não era permitido,
mas todos também sabiam que se assim não
fizessem não poderiam estudar. O valor dos livros
era alto demais e como muitos precisavam ganhar a vida,
não era possível ficar indo sempre à
biblioteca. Para Edgar a correria atrás de bicos
aqui e acolá terminou quando Aristóteles
arrumou-lhe um trabalho de meio período na papelaria
de um tio. O salário era baixo, mas pelo menos
tinha um fixo por mês e ainda tirava cópias
de graça. As visões e sensações
estranhas pareciam ter desaparecido e tudo indicava
que o futuro seria promissor, mas por pouco tempo. Os
três rapazes, embora não comentassem entre
si, partilhavam de um elo que de algum modo os fazia
pensar e sentir simultaneamente as mesmas coisas.
A amizade dos três foi nascendo ao longo daquele
primeiro período de seis meses e cada vez mais
percebiam que apesar das diferenças de temperamento
e de costumes, algo meio irracional os atraía.
Crescia também a intimidade. A sensação
que tinham era a de que se conheciam há muitos
anos e que sempre foram amigos fiéis. Isso os
fez mudar um pouco o comportamento. Rômulo, que
outrora parecia um verdadeiro garanhão, com grande
apelo ao público feminino, com seu corpo atlético
e com sua postura de machão, mostrou-se sensível
e bom ouvinte. Sua história não era das
mais felizes, afinal de contas, como a grande maioria
da população negra do Brasil, sua vida
foi permeada por obstáculos causados pelos preconceitos.
Para complicar, era órfão de pai, o que
talvez o tenha aproximado um pouco mais de Edgar. Nos
dois primeiros meses de contato Rômulo ainda se
protegia da presença do rapaz. Algo estranhamente
feminino nele o fazia pensar em homossexualidade e ele
detestava homossexuais. Ari, aliás, gargalhava
bastante (ele gargalhava à toa mesmo...), quando
Rômulo demonstrava ser homofóbico, pois
esse preconceito era algo que ele realmente não
tinha. Ainda passaria mais um ano para que Rômulo
pudesse começar a aceitar as opções
sexuais alheias. Seu problema com o pai talvez explicasse.
Apanhou muito do pai paranóico por este acreditar
que no filho havia uma homossexualidade latente, sem
perceber que aquela criança de oito anos ainda
nem imaginava o que faria com seu pintinho. Seu pai
também sofrera muito, mas talvez por isso descontava
o sofrimento causando o mesmo a quem estava próximo.
Mestre de obras, Antônio Donato chegara a trabalhar
como escravo (sim, escravidão no século
XX!) numa fazenda do Acre onde os trabalhadores, negros,
brancos e índios, não eram pagos e ainda
ficavam presos por “dívidas”, conforme
afirmava o dono do local. Conseguiu fugir dos capangas
armados num verdadeiro golpe de sorte. Quando estava
para levar um tiro: do meio da mata surgiu um índio
enorme que andava meio torto e que bateu com o tacape
na cabeça daquele que seria seu carrasco. Ele
continuou a fuga e chegou à cidade mais próxima,
onde pegou carona num caminhão pau-de-arara que
iria para Cuiabá.
- Mas o que seu pai foi fazer no Acre, cara? –
perguntou Ari – e que raio de índio era
aquele?
- Sei lá o que ele foi fazer no Acre. Nunca
perguntei, não conseguia falar com meu pai. Ele
vivia bêbado. Fiquei sabendo dessa história
por minha mãe, entre uma surra e outra que ela
levava. Quanto ao tal índio, foi uma das poucas
vezes que meu pai falou comigo calmamente, mas devia
estar bêbado: ele disse que era o curupira, é
mole? Disse que era o que todo mundo da região
vivia dizendo. Olha só o que eu tive que agüentar!
Rômulo ainda contou que viveu toda a infância
numa favela. Seu pai chegou a envolver-se com traficantes.
Dizia ele que era para levar o “leite das crianças”
que fazia isso, mas a verdade é que ele não
se importava se tinha ou não família.
De tanto ódio da situação que vivera,
Rômulo abominava drogas, álcool e vivia
jurando que se encontrasse alguém batendo em
mulher ele mandava pro hospital.
- Mas como é que você chegou aqui? –
foi a vez de Edgar perguntar – Você conseguiu
sair ileso daquele ambiente tão difícil...
- Nem tão ileso, mas isso não é
o mais interessante. Parece que eu e minha mãe
tivemos sorte. Ela costumava jogar no bicho e há
onze anos ganhou uma grana boa. Bem, ela roubou um bolinho
de dinheiro que estava nas calças de meu pai
e jogou. Eu ainda a ouço dizendo: “é
agora ou nunca, ou acertamos de vez ou a gente morre”.
Acertou na cabeça. Nem voltamos pra pegar as
coisas, até porque não tínhamos
nada que prestasse. Apenas meu uniforme da escola e
uns livros que ganhei da professora. Como eu sempre
gostei de estudar, ganhei os livros como prêmio.
Os meninos da favela me sacaneavam bastante porque eu
gostava de livros. Os maiores me batiam um bocado e
eu tinha que pagar pedágio. Como nunca tive dinheiro,
acabei trabalhando como avião pros chefes do
tráfico por um tempo. Ainda bem que eles me liberaram,
pois teve uma guerra entre o morro da Cachoeirinha e
o Barro Preto e morreu o “patrão”.
- Mas e o prêmio da sua mãe? - perguntaram
os dois amigos.
- Minha mãe é uma santa, cumpade, e uma
santa sortuda. A gente fugiu dali e foi morar na Tijuca.
Ela continuou a trabalhar como faxineira, pois nunca
pôde completar o primário e me prometeu
que nunca mais iria faltar livros e escola para mim,
que eu ainda ia ser, como ela diz, “dotô”.
E quer saber de uma coisa? Vou fazer doutorado mesmo.
Será minha “carta de alforria” do
mundo contemporâneo. Negro e doutor. O que acham?
Uma mocinha bem bonitinha que passava por perto lançou
uma frase um tanto infeliz:
- Ah, gracinha, mas você não é
negro, é moreno...
Edgar olha para o amigo e enxerga à frente dele
uma pequena esfera avermelhada deslisando na altura
do peito. Achou que fosse reflexo de algum carro, mas
na verdade aquilo era sinal de que Rômulo ficara
irritado:
- Moreno o cacete! Eu sou negro! Negro! N – E
– G – R - O.
- Ih, eu, hein! Estava só te elogiando, babaca!
Fica aí com teus machos!
- Ah, vá tomar no cu, ô piranha! –
gritaram os três simultaneamente, para logo em
seguida gargalharem ante a fala sincrônica não
planejada, com aquele apoio mútuo que cada vez
era mais freqüente.
- Onde já se viu!? E ainda tem a pachorra de
dizer que estava me elogiando. Isso é preconceito
às avessas. Eu sou negro, mas como ela ficou
a fim de dar pra mim eu não posso ser negro,
é mole?
Ari, sempre sorridente e irônico, lasca:
- Romão, esse “dar pra você”
quase não é preconceito, hein! Ô
negão machista, sô!
Rômulo dá-se conta de sua contradição
e sorri dando um soquinho no ombro do amigo.
- E como foi que você começou a praticar
esportes? – Edgar muda de assunto, sabendo que
o grande ego do companheiro gostava de falar sobre si
mesmo.
- Bom, eu comecei a correr no Maracanã, logo
depois que soube que meu pai tinha morrido assassinado.
Minha mãe tinha um pouco de medo de ele nos perseguir,
por isso não queria que eu aparecesse demais.
Mas o velho não ia durar muito com a vida que
levava. Só que apesar de achar bonito o ritual
das competições, não ficava satisfeito
com aquilo. Sentia necessidade de uma filosofia, sabe.
Cheguei a entrar pro judô, depois pro karatê,
mas só me satisfiz mesmo numa roda de capoeira
que encontrei quando passeava perto dos Arcos da Lapa.
Rômulo não descrevera tudo. Na verdade
não vira de imediato a tal roda de capoeira.
Fora atraído para ela por uma série de
coincidências bastante esquisitas. Estava na Avenida
Rio Branco com sua mãe, que ia depositar dinheiro
em sua caderneta de poupança. Ele estava com
15 anos e disse à mãe que retornaria para
casa logo após comprar um gibi antigo num sebo
que havia no Largo da Carioca. No meio do caminho, dois
rapazes maiores o interceptaram e quiseram roubá-lo.
Como ele só tinha o dinheiro para o gibi e para
a passagem, saiu correndo. Os dois o perseguiram, até
que um outro assalto, desta vez mais sério e
trágico, realizado num banco, resultou num tiroteio
com a polícia e dois mortos. O adolescente Rômulo
teve que se desviar e foi empurrado por uma multidão
de pessoas que corria apavorada das balas que já
zuniam próximas às cabeças. Nisso
ele desistira do gibi. Voltaria para casa por um caminho
mais longo, pegando o bondinho de Santa Teresa. Pegou
o bonde. Quando passava por sobre o aqueduto, viu que
um dos documentos de sua mãe que estava em seu
bolso caiu lá de cima. Apavorado com a burocracia
que a mãe teria que enfrentar para tirar um novo
documento, desceu tão logo possível e
voltou correndo ao local onde possivelmente a carteira
havia caído. Avistara a Fundição
Progresso e ao lado dela um grupo de capoeiristas. Paixão
à primeira vista! Um dos jovens que estava na
roda notou que um documento caíra ao seu lado.
Rômulo chega perto, recebe o documento de volta
e uma compulsão estranha o impele a entrar na
roda. Embora nunca tivesse feito aquilo, sentia uma
grande familiaridade com os movimentos e com a ginga.
Desde então passou a freqüentar, quando
podia, rodas e grupos capoeiristas com grande desenvoltura.
Lembrou que sua família por parte de mãe
tinha uma tradição com aquela arte. “Talvez”,
pensava ele, “alguma coisa de meus antepassados
tenha despertado”. E sem dúvida despertou,
como ele viria a ter certeza depois.
Após aquela experiência no show do Legião
Urbana no começo do ano, os três passaram
a relatar entre si sonhos absurdamente semelhantes,
com pessoas e locais idênticos. Era como se eles
estivessem sendo atraídos para aquele ambiente
visto nos sonhos. Logo depois, Ari descobriria que aquele
lugar de fato existia. Era uma cidade próxima
a Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, numa região
ainda recheada de mata e de fazendas.
Ilustração:
Carlos Hollanda
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O ano de 1989 não seria mesmo comum e os jovens
sentiam toda a excitação de poderem votar
pela primeira vez para presidente. Um presidente eleito
pelo voto popular depois de tantos anos de Ditadura,
que máximo! Além disso, a possibilidade
da Esquerda, na figura de Lula ou de Roberto Freire
(Lula era bem mais cotado), ascender ao poder logo após
ditadura e o governo “ameno” de Sarney.
Aquilo tinha sido uma reprodução das mesmas
situações que permitiam a exploração
das multinacionais, a desvalorização do
profissional brasileiro... Era, enfim, uma reafirmação
do poder das elites, não do povo.
Era uma época conturbada e de grandes mudanças
mundiais. George Bush, ex-agente e dirigente da CIA,
então presidente dos Estados Unidos, preparava
uma série de manobras militares desde 1988. Era
o corolário das medidas políticas norte-americanas
visando manter e expandir sua hegemonia. Desde os dois
governos Reagan esse processo ia-se intensificando,
especialmente após o fornecimento de armas norte-americanas
ao Iraque, visando acabar com a crise dos reféns
ianques no Irã (o fornecimento de armas estimulou
a guerra Irã-Iraque). Essa política também
visava a instalação de tropas dos Estados
Unidos no Oriente Médio e a desarticulação
da Esquerda na América Central, tal qual foi
feito no restante da América Latina anteriormente.
Bush retomara a iniciativa militar que culminou na Guerra
do Golfo, dois anos após o ano em que se passa
de nossa história. 1989 também foi o ano
da queda do Muro de Berlim numa conseqüência
da crise soviética após a Glasnost e a
Perestroika de Gorbatchov. Só uma coisa assustava
os estudantes com viés de esquerda: o crescimento
nas pesquisas de opinião daquele que eles ironicamente
chamavam de “O Caçador de Maracujás”,
num deboche ao então candidato Fernando Collor
de Mello, o auto-intitulado “Caçador de
Marajás”. Marajás era o termo usado
para designar os servidores públicos aquinhoados
com remunerações escandalosamente altas.
Esse pessoal mais esclarecido sabia muito bem que Collor
era representante de uma oligarquia, que se fosse eleito
seria apenas uma reiteração de um sistema
ou, pior ainda, uma reiteração da vaidade
que o candidato demonstrava.
Aristóteles, muito mais anarquista do que “petista”
ou “comunista”, conforme alguns o classificavam
pejorativamente, e sempre bem informado, costumava dialogar
com os colegas e com os professores sobre política.
Muitas vezes causava constrangimentos por sua habilidade
em colocar os professores contra a parede. Não
é preciso dizer que sua menor nota foi 9, mas
isso porque tinha um professor que se recusava a dar
nota 10 sem explicar direito o motivo.
SONHOS
PROFÉTICOS
Falando em política, um fato curioso: certa
vez, num dos comentários sobre sonhos estranhos
com os dois amigos, Ari contou, rindo muito, que sonhara
que vira um filme onde as torres do World Trade Center
haviam explodido e que Alfred E. Newman, aquele personagem
das capas da revista MAD, era o novo presidente dos
Estados Unidos. No sonho, com notícias lidas
num computador “high-tech”, de tela “colorida
como uma TV”, nas palavras de Ari, o tal presidente
resolvera partir para uma guerra contra o Iraque e contra
a Coréia do Norte. Era mesmo um sonho bem estranho,
até porque os monitores de computador no Brasil
não tinham telas de alta definição
e bem poucos eram em cores. Mais estranho ainda era
o ano visto no calendário do micro: 2003. O nome
do presidente era também muito engraçado:
Gorge W.C. Butt. “Gorge” (e não George),
em português significa “garganta”
ou “engolir”, “devorar”. “W.C.”
é a sigla das portas dos banheiros norte-americanos:
“water closet”. “Butt” é
o mesmo que “bunda”, na gíria em
inglês. Uma boa adaptação para o
português seria mais ou menos o que Ari risonhamente
traduziu para os amigos: “Devorar a Própria
Bunda no Banheiro”. Segundo Ari, aquele presidente
de nome no mínimo cômico e com cara de
caricatura, acabara desencadeando um conflito de proporções
mundiais como nunca se tinha visto. Ao Brasil coube
a responsabilidade de abrigar milhares de refugiados.
De todos os sonhos contados naqueles 6 primeiros meses
de 89, aquele era o único que saíra totalmente
do contexto e o único que parecia não
estar marcado por coincidências que ocorreriam
nos dias seguintes para os rapazes. Ari o escreveu em
seu “caderno de pesquisas psíquicas”
assim mesmo.
Rômulo era o único dos três que
relutava muito em admitir aquelas “coincidências”.
Bastante influenciado pelo racionalismo que ora absorviam
na universidade, tentava encontrar uma explicação
lógica para todas aquelas percepções.
Costumava dizer que eram as próprias expectativas
em torno de fenômenos paranormais que os fazia
crer que o que lhes ocorria era de fato algo cuja causa
estava em “energias espirituais”. Prova
disso era o nome ridículo do tal presidente do
sonho de Ari, que nada mais era que uma adaptação
subconsciente do nome do então presidente norte-americano,
George Bush. Para ele os dois eram verdadeiras crianças,
ainda acostumados a uma vida mais confortável
e cheias de sonhos e fantasias. Mal sabia ele que era
sua própria capacidade paranormal que, unida
às dos outros dois rapazes, produzia toda aquela
seqüência de sonhos proféticos nos
três. Mal sabia também que a vida de Edgar,
diferentemente da de Ari, nunca fora o mar de rosas
que ele acreditava ser. Edgar pouco falava de seus pais,
que só conhecia por fotos. Só falava que
fora criado pela avó, o que por si só
já era suficiente para que Rômulo já
tremesse, julgando que o amigo se encaixava no estereótipo
do “boiola”.
Dos três, apenas Aristóteles não
precisava trabalhar. Sua mesada era equivalente a uns
três salários mínimos, fora o fato
de ter de tudo. O pai preferia que ele começasse
a ganhar o próprio sustento por si mesmo, mas
não forçava a barra porque queria antes
ver o filho formado. Aliás, dos três Ari
era o único que não tinha problemas com
os pais, tendo neles verdadeiros amigos. Edgar, ganhou
um verdadeiro presente com aquele trabalho na papelaria.
Era muito mais uma ajuda de custo para seus estudos
do que um emprego de verdade. Seu Emanuel, pai de Ari
resolveu ajudar os rapazes, daí o emprego na
loja do cunhado. Edgar costumava ser liberado em época
de provas. Quem não gostaria de ter um emprego
desses? Bem, talvez só quem precisasse de um
salário maior. Pelo menos dona Odette já
não precisava pagar tudo para o rapaz, aliviando
sua aposentadoria e pensão que então já
bastavam para as contas e para alimentação.
Rômulo , mais orgulhoso, preferiu manter-se trabalhando
junto com mãe e a sócia dela numa barraca
de cachorro-quente. Dona Maria dividia os dias da semana
entre a faxina e a barraca da praça. Esse trabalho
também permitia uma certa disponibilidade de
tempo ao jovem atleta. Rômulo era extremamente
grato à mãe. Fora o amor de filho, tinha
verdadeira idolatria pela coragem de sua genitora. Quantas
vezes acabou dando surras em engraçadinhos que
faltaram com o respeito com ela. “Se mexer com
a minha mãe eu dou porrada!” – frase
bastante discrepante da postura normalmente professoral
e observadora do rapaz.
EDGAR
VERSUS VIRGINDADE: A VITÓRIA!
Foram feitas algumas incursões “científicas”
na Vila Mimosa, zona de baixo meretrício do Rio
de Janeiro, o que permitiu a Edgar finalmente deixar
de ser virgem e ganhar o respeito do amigo “anti-boiolas”.
Perguntado por que nunca havia “aliviado as tensões”
por ali, Edgar respondia que queria ter a “honra
de transar pela primeira vez com uma garota que não
fosse prostituta”. Ademais, costumava sentir uma
série de coisas estranhas quando chegava perto
daquele local. Era como se as experiências de
todos aqueles homens, de todos os tipos, passassem por
ele quando se via envolto pelo ambiente. Aquilo era
bastante desagradável, pois nas três tentativas
que fez, via-se, no corpo daquelas mulheres, sendo estuprado
ou, no corpo de alguns homens que jamais vira, levando
facadas e coisas do tipo. Com a presença dos
dois amigos percebeu que as sensações
desagradáveis foram grandemente filtradas e pôde,
enfim, dar prosseguimento aos “trabalhos”.
Isso ocorrera pouco antes das férias. Estas seriam
únicas na vida dos três, pois aquele local
estranho dos sonhos em comum tomava forma através
de uma colega de turma, Iracema que olhava com olhos
gulosos não para Rômulo, como seria de
se esperar, mas para ninguém menos que Edgar.
Depois daquelas experiências na Vila Mimosa passara
a irradiar sua masculinidade contida.
Iracema era mato-grossense e tinha família justamente
naquela região pesquisada por Ari. Seu pai era
fazendeiro. Ela veio para o Rio porque queria matar
dois coelhos com uma só cajadada: conhecer a
cidade, vivendo em “eterna boemia”, nos
bares e danceterias, e estudar. Com isso ela unia o
útil ao agradável. Seu pai queria que
ela fosse para São Paulo, pois lá também
tinha negócios e poderia dar maior assistência
à filha. Iracema, porém, queria dispor,
segundo suas próprias palavras, de “liberdade,
civilização e despojamento”, preferindo
ter um espaço distante dos pais (conseguiu em
parte, dividindo um apartamento com uma prima mais velha).
Ari, estudioso de astrologia, e tantas outras coisas
“esquizotéricas” que Rômulo
gostava de achincalhar para irritar o amigo, atribuía
à combinação de Sagitário
com Aquário no mapa astrológico da jovem
tal necessidade. Para ela o Rio seria perfeito para
os primeiros passos. Queria viver em Salvador durante
um ano, viajar para conhecer o mundo e travar contato
com as mais variadas culturas. Já conhecia a
Disneylândia, mas aquele monte de coisas artificiais
não a satisfazia. Gostava do Pantanal, mas queria
ir um pouco além, conhecendo as serras nordestinas
e as florestas amazônicas. Logo se via que ela
queria tudo ao mesmo tempo, abraçar o mundo com
as pernas (e que pernas!).
Edgar, ainda tímido, foi praticamente empurrado
pelos amigos para a morena malemolente e de sotaque
característico. Apesar da exuberância e
do desembaraço de Iracema os dois não
trocaram carícias tão rapidamente. Ficaram
mesmo no chove-não-molha, construindo vagarosamente
uma amizade com tudo para tornar-se, com o tempo, amor
de homem e mulher.
As férias de julho chegaram e eles viajaram.
Aristóteles, recebera o suficiente para passagens
de ida e volta de avião, como Iracema. Só
que viajar sozinho seria ridículo, já
que o motivo da viagem, muito mais do que lazer, era
aventurar-se junto com seus dois amigos. Mais forrado
de dinheiro do que seus amigos, acabou pagando a passagem
dos dois, Apenas pediu ao pai um pouco mais, explicando
que teria despesas de estadia etc. Seu pai deu o dinheiro
sem reclamar, afinal, simpatizara com os dois outros
garotos. Eles pareciam ter deixado Aristóteles
mais responsável e menos inquieto. Até
com vontade de trabalhar ele estava! Eram mesmo bons
exemplos. Acabou que Iracema resolveu ir de ônibus
também, não sem que seus pais, lá
no Mato-Grosso, reclamassem bastante.
COMEÇA
A AVENTURA...
E OS PERIGOS TAMBÉM
A viagem transcorreu normalmente. Edgar, entretanto,
tornou a ter percepções diferentes e vívidas.
Diante de seu assento no ônibus volta e meia enxergava
uma mulher de meia-idade de pé fitando-o. Lá
pelas tantas, saindo da parte traseira do ônibus,
Iracema trouxe um álbum de fotos que continha
uma da tal mulher que Edgar passara a ver em forma etérea.
Era Filomena Torresão, veterinária que
trabalhava em algumas fazendas da região e era
amiga de Iracema.
Chegaram ao entardecer em Campo Grande. Dali partiriam
de carro com um empregado da fazenda do pai de Iracema.
Evandro, o empregado, não era um homem rústico,
muito embora fosse bem corpulento e alto. Tinha um olhar
severo e falava pouco, mas foi gentil, cumprimentando
os rapazes. Só Edgar não se sentiu muito
bem quando apertou sua mão. Olhou para ele e
viu um contorno escuro, algo meio gosmento, como se
fosse possível algo imaterial ter textura. O
contato foi rápido, mas foi o suficiente para
que Edgar se sentisse mal até a chegada na fazenda,
uma hora e meia depois. Todos acharam que era por causa
da estrada de barro e da sinuosidade das curvas e não
deram importância. Aristóteles, no entanto,
já estava começando a compreender aquelas
estranhas mudanças de estado no amigo e começou
a ligar uma coisa com a outra. No bolso ele levava um
baralho de Tarot, pois estava pesquisando as sincronicidades
e os arquétipos segundo a visão de Jung.
Aproveitou para tirar uma carta enquanto pensava na
conexão entre o estado de Edgar e o grandalhão
motorista. A carta que saiu foi a do Diabo. Não
satisfeito, tirou outra: a Morte. Não se impressionava
com essas cartas, pois mesmo elas, ele sabia, poderiam
surgir sincronicamente a eventos gratificantes e uma
eclosão de potenciais adormecidos. Mas algo naquele
momento lhe dava a impressão de que boa coisa
não era.
Após terem se instalado numa casa especialmente
montada para visitantes, os três saíram
para conhecer o local. Estavam num pequeno descampado
cercado de árvores por todos os lados. Havia
também alguns morros e um vale a poucos quilômetros
dali. Era, como se esperava, habitado por animais silvestres,
como o lobo-guará e, ocasionalmente, onças,
apesar de os caçadores da região terem
dizimado bastante a população desses animais
e alterado o ecossistema.
Não havia iluminação elétrica.
Isso animou ainda mais os rapazes, que queriam mesmo
sentir a natureza de perto sem a interferência
do excesso de tecnologia da cidade grande. Enquanto
exploravam o local, um farol anuncia a chegada do jipe
de Iracema. Ela trazia Filomena, que quando soube da
chegada dos rapazes rogou para que fosse levada até
eles. Iracema, que conhecia a estranha castidade da
amiga até se animou, pensando que aquela seria
a chance de proporcionar-lhe os prazeres do sexo. Estava
redondamente enganada. Filomena estava interessada em
algo bastante diferente de sexo.
Iracema saiu do carro e foi logo apresentando a amiga.
Filomena os abraçou como se os conhecesse e como
se os esperasse há anos. Olhou fixamente para
Edgar e este entendeu que era exatamente disso que se
tratava.
Aquela mulher tinha um dom estranho. Parecia saber
tudo sobre os três jovens, especialmente sobre
Edgar. Ele não gostou muito de sentir-se assim
devassado, mas percebeu que não era possível
esconder-se de sua percepção apurada.
Pouco antes de ir embora, Filomena chegou perto de Ari
e disse:
- Quando precisar, tire a primeira carta do baralho
que está no seu bolso.
- Ah, é? E qual é a carta que está
lá agora?
- No momento não é essa a carta que vai
te ajudar. O que está no começo so baralho
em seu bolso é a Lua.
Rômulo, incrédulo retira a carta antes
de Ari. Não deu outra: Lua.
- Passem depois do almoço de amanhã lá
na fazenda. Tenho muita coisa pra conversar com vocês.
E, por favor, esta noite fiquem quietos aí onde
estão. Essa região tem andado meio perigosa.
Duas pessoas e algumas cabeças de gado foram
estraçalhados há uma semana. Todo mundo
acha que tem uma onça por perto, mas eu acho
que é coisa bem mais letal.
PESADELOS
QUASE MORTAIS,
PRECES E MAGIA
Estavam bastante cansados mas a noite fora turbulenta
com o pesadelo que tiveram. Uma criatura escura e disforme,
muito diferente daquele homem gigantesco que Edgar costumava
ver, com um aspecto muito mais ameaçador. Foram
encurralados e sentiram suas carnes serem rasgadas pelo
que pareciam ser garras enormes. Os três acordaram
gemendo de dor. Ao acender o lampião, Ari leva
um baita susto: Edgar e Rômulo botavam sangue
pelo nariz. A surpresa dos dois também não
foi menor: Ari estava lacrimejando sangue.
Ari, que ultimamente estudava artes mágicas,
sacou de sua mochila alguns livros, entre eles o Necronomicon,
cujas indicações vinha tentando reproduzir
sem sucesso. Enquanto Rômulo e Edgar se entreolhavam
assustados e sem nada entender, Ari pegou um livrinho
de preces. Edgar notou que estava escrito algo como
“germano alguma coisa” e “chama violeta”.
Não questionou. Apenas fez aquilo que Ari lhes
dissera para fazer, repetindo palavra por palavra e
mentalizando conforme as instruções. A
tensão diminuiu e aquele sentimento nauseante
que atacara a todos sumiu quase de imediato. O cansaço
os venceu, apesar da curiosidade de saber o que estava
acontecendo. Resolveram dormir e descobrir o que de
fato estava ocorrendo quando acordassem.
No dia seguinte de manhã foram conhecer os arredores
enquanto especulavam sobre o ocorrido da madrugada.
Ari perscrutava tudo com suas anotações.
Tirava fotos como sempre. Num bar da cidade ouviram
várias conversas diferentes, coisas comuns da
região, comentários sobre os candidatos
à presidência, discussões sobre
times de futebol, gado, falta de empregos etc. Um comentário,
porém, pareceu aos rapazes algo meio anacrônico.
Um jovem que não tinha jeito de quem vivia na
roça falava sobre um lobisomem que tinha visto
quando passava com seu carro numa das trilhas que levavam
ao vale. Era um dos jipeiros da região. Os três
garotos da cidade acharam graça de tudo aquilo,
pois aqui e acolá alguém comentava sobre
esse tal lobisomem. Era certo que isso era coisa de
interior, mas curiosamente muitas das pessoas que falavam
tinham ar de quem vinha da cidade grande, com todo o
ceticismo característico de quem não era
religioso ou supersticioso.
Enfim reencontraram Filomena, que acabara de ajudar
uma égua a dar à luz. Estava um bocado
fedorenta e ensangüentada, o que fez Edgar e Rômulo
torcerem o nariz. Ela riu, percebendo o asco dos rapazes,
mas não fez comentários. Foi lavar-se
enquanto perguntava:
- Como foi a noite de vocês? Espero que tenha
sido boa, porque a minha...
- A nossa não foi nada boa – antecipou-se
Ari – Talvez tenhamos ficado impressionados com
seu comentário do perigo e tivemos alguns pesadelos...
- Por acaso foi com uma criatura enorme e preta que
correu atrás de vocês?
- Como é que você sabe? – perguntaram
os três em uníssono.
A mulher abre a camisa mostrando os seios. Rômulo
e Ari quase caíram para trás, mas foi
de excitação sexual. Edgar imediatamente
repara numa cicatriz na base do seio esquerdo, uma marca
que com certeza absoluta não era de cirurgia.
Pareciam vários arranhões muito profundos
e concêntricos, como se algo quisesse arrancar-lhe
o coração.
- Foi isso mesmo o que aconteceu, Edgar – disse
Filomena.
- Isso o quê?
- Ele tentou me matar. E o fez quatro vezes.
Edgar ficara realmente surpreso dessa vez. Pensava
que somente ele era capaz de perceber o que os outros
pensavam, mas aquela mulher misteriosa parecia ter um
talento muito mais desenvolvido que o dele.
- A primeira vez foi do jeito que aconteceu com vocês,
em ataque psíquico. Fui parar na UTI com parada
cardíaca. Depois disso aprendi a me defender
psiquicamente e pude bloquear tal tipo de ataque. Há
dois anos, no entanto, fui atacada pela coisa através
de um veículo físico. E o pior é
que não consigo descobrir quem foi, pois algo
me impede de enxergar quem é o hospedeiro dessa
criatura. Só tenho certeza de que ela ainda está
por aqui, mas não consigo identificar em quem
ela se esconde.
Ari olhou para Rômulo, que coçava o queixo
visivelmente transtornado. “Em que bando de malucos
eu fui me meter”, pensava. Filomena e Edgar imediatamente
se viraram e disseram:
- Vai se acostumando com esse bando de malucos, porque
é assim que você vai ficar em breve, meu
chapa.
Era demais. Aristóteles caiu na gargalhada. Rômulo
ainda não aprendera que todas as vezes que pensava
daquele modo o pensamento era detectado pelo amigo.
E agora Edgar vinha em dose dupla com Filomena.
No
próximo capítulo, os rapazes são
perseguidos, se perdem no meio do mato e ainda têm
que enfrentar uma criatura das trevas que pode até
vir a matá-los em:
“A
Confraria” e “Possessão”
Carlos Hollanda
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