Insólito - Capítulo 5 (Ler desde o primeiro capítulo)
Carlos Hollanda - fale com o autor

REVELAÇÕES

Os primeiros meses de contato com a universidade e com os novos colegas não foram muita coisa além do esperado. Novidades, professores excêntricos e autores consagrados das ciências sociais, cópias de livros... Todos sabiam que isso não era permitido, mas todos também sabiam que se assim não fizessem não poderiam estudar. O valor dos livros era alto demais e como muitos precisavam ganhar a vida, não era possível ficar indo sempre à biblioteca. Para Edgar a correria atrás de bicos aqui e acolá terminou quando Aristóteles arrumou-lhe um trabalho de meio período na papelaria de um tio. O salário era baixo, mas pelo menos tinha um fixo por mês e ainda tirava cópias de graça. As visões e sensações estranhas pareciam ter desaparecido e tudo indicava que o futuro seria promissor, mas por pouco tempo. Os três rapazes, embora não comentassem entre si, partilhavam de um elo que de algum modo os fazia pensar e sentir simultaneamente as mesmas coisas.

A amizade dos três foi nascendo ao longo daquele primeiro período de seis meses e cada vez mais percebiam que apesar das diferenças de temperamento e de costumes, algo meio irracional os atraía. Crescia também a intimidade. A sensação que tinham era a de que se conheciam há muitos anos e que sempre foram amigos fiéis. Isso os fez mudar um pouco o comportamento. Rômulo, que outrora parecia um verdadeiro garanhão, com grande apelo ao público feminino, com seu corpo atlético e com sua postura de machão, mostrou-se sensível e bom ouvinte. Sua história não era das mais felizes, afinal de contas, como a grande maioria da população negra do Brasil, sua vida foi permeada por obstáculos causados pelos preconceitos. Para complicar, era órfão de pai, o que talvez o tenha aproximado um pouco mais de Edgar. Nos dois primeiros meses de contato Rômulo ainda se protegia da presença do rapaz. Algo estranhamente feminino nele o fazia pensar em homossexualidade e ele detestava homossexuais. Ari, aliás, gargalhava bastante (ele gargalhava à toa mesmo...), quando Rômulo demonstrava ser homofóbico, pois esse preconceito era algo que ele realmente não tinha. Ainda passaria mais um ano para que Rômulo pudesse começar a aceitar as opções sexuais alheias. Seu problema com o pai talvez explicasse. Apanhou muito do pai paranóico por este acreditar que no filho havia uma homossexualidade latente, sem perceber que aquela criança de oito anos ainda nem imaginava o que faria com seu pintinho. Seu pai também sofrera muito, mas talvez por isso descontava o sofrimento causando o mesmo a quem estava próximo. Mestre de obras, Antônio Donato chegara a trabalhar como escravo (sim, escravidão no século XX!) numa fazenda do Acre onde os trabalhadores, negros, brancos e índios, não eram pagos e ainda ficavam presos por “dívidas”, conforme afirmava o dono do local. Conseguiu fugir dos capangas armados num verdadeiro golpe de sorte. Quando estava para levar um tiro: do meio da mata surgiu um índio enorme que andava meio torto e que bateu com o tacape na cabeça daquele que seria seu carrasco. Ele continuou a fuga e chegou à cidade mais próxima, onde pegou carona num caminhão pau-de-arara que iria para Cuiabá.

- Mas o que seu pai foi fazer no Acre, cara? – perguntou Ari – e que raio de índio era aquele?

- Sei lá o que ele foi fazer no Acre. Nunca perguntei, não conseguia falar com meu pai. Ele vivia bêbado. Fiquei sabendo dessa história por minha mãe, entre uma surra e outra que ela levava. Quanto ao tal índio, foi uma das poucas vezes que meu pai falou comigo calmamente, mas devia estar bêbado: ele disse que era o curupira, é mole? Disse que era o que todo mundo da região vivia dizendo. Olha só o que eu tive que agüentar!

Rômulo ainda contou que viveu toda a infância numa favela. Seu pai chegou a envolver-se com traficantes. Dizia ele que era para levar o “leite das crianças” que fazia isso, mas a verdade é que ele não se importava se tinha ou não família. De tanto ódio da situação que vivera, Rômulo abominava drogas, álcool e vivia jurando que se encontrasse alguém batendo em mulher ele mandava pro hospital.

- Mas como é que você chegou aqui? – foi a vez de Edgar perguntar – Você conseguiu sair ileso daquele ambiente tão difícil...

- Nem tão ileso, mas isso não é o mais interessante. Parece que eu e minha mãe tivemos sorte. Ela costumava jogar no bicho e há onze anos ganhou uma grana boa. Bem, ela roubou um bolinho de dinheiro que estava nas calças de meu pai e jogou. Eu ainda a ouço dizendo: “é agora ou nunca, ou acertamos de vez ou a gente morre”. Acertou na cabeça. Nem voltamos pra pegar as coisas, até porque não tínhamos nada que prestasse. Apenas meu uniforme da escola e uns livros que ganhei da professora. Como eu sempre gostei de estudar, ganhei os livros como prêmio. Os meninos da favela me sacaneavam bastante porque eu gostava de livros. Os maiores me batiam um bocado e eu tinha que pagar pedágio. Como nunca tive dinheiro, acabei trabalhando como avião pros chefes do tráfico por um tempo. Ainda bem que eles me liberaram, pois teve uma guerra entre o morro da Cachoeirinha e o Barro Preto e morreu o “patrão”.

- Mas e o prêmio da sua mãe? - perguntaram os dois amigos.

- Minha mãe é uma santa, cumpade, e uma santa sortuda. A gente fugiu dali e foi morar na Tijuca. Ela continuou a trabalhar como faxineira, pois nunca pôde completar o primário e me prometeu que nunca mais iria faltar livros e escola para mim, que eu ainda ia ser, como ela diz, “dotô”. E quer saber de uma coisa? Vou fazer doutorado mesmo. Será minha “carta de alforria” do mundo contemporâneo. Negro e doutor. O que acham?

Uma mocinha bem bonitinha que passava por perto lançou uma frase um tanto infeliz:

- Ah, gracinha, mas você não é negro, é moreno...

Edgar olha para o amigo e enxerga à frente dele uma pequena esfera avermelhada deslisando na altura do peito. Achou que fosse reflexo de algum carro, mas na verdade aquilo era sinal de que Rômulo ficara irritado:

- Moreno o cacete! Eu sou negro! Negro! N – E – G – R - O.

- Ih, eu, hein! Estava só te elogiando, babaca! Fica aí com teus machos!

- Ah, vá tomar no cu, ô piranha! – gritaram os três simultaneamente, para logo em seguida gargalharem ante a fala sincrônica não planejada, com aquele apoio mútuo que cada vez era mais freqüente.

- Onde já se viu!? E ainda tem a pachorra de dizer que estava me elogiando. Isso é preconceito às avessas. Eu sou negro, mas como ela ficou a fim de dar pra mim eu não posso ser negro, é mole?

Ari, sempre sorridente e irônico, lasca:

- Romão, esse “dar pra você” quase não é preconceito, hein! Ô negão machista, sô!

Rômulo dá-se conta de sua contradição e sorri dando um soquinho no ombro do amigo.

- E como foi que você começou a praticar esportes? – Edgar muda de assunto, sabendo que o grande ego do companheiro gostava de falar sobre si mesmo.

- Bom, eu comecei a correr no Maracanã, logo depois que soube que meu pai tinha morrido assassinado. Minha mãe tinha um pouco de medo de ele nos perseguir, por isso não queria que eu aparecesse demais. Mas o velho não ia durar muito com a vida que levava. Só que apesar de achar bonito o ritual das competições, não ficava satisfeito com aquilo. Sentia necessidade de uma filosofia, sabe. Cheguei a entrar pro judô, depois pro karatê, mas só me satisfiz mesmo numa roda de capoeira que encontrei quando passeava perto dos Arcos da Lapa.

Rômulo não descrevera tudo. Na verdade não vira de imediato a tal roda de capoeira. Fora atraído para ela por uma série de coincidências bastante esquisitas. Estava na Avenida Rio Branco com sua mãe, que ia depositar dinheiro em sua caderneta de poupança. Ele estava com 15 anos e disse à mãe que retornaria para casa logo após comprar um gibi antigo num sebo que havia no Largo da Carioca. No meio do caminho, dois rapazes maiores o interceptaram e quiseram roubá-lo. Como ele só tinha o dinheiro para o gibi e para a passagem, saiu correndo. Os dois o perseguiram, até que um outro assalto, desta vez mais sério e trágico, realizado num banco, resultou num tiroteio com a polícia e dois mortos. O adolescente Rômulo teve que se desviar e foi empurrado por uma multidão de pessoas que corria apavorada das balas que já zuniam próximas às cabeças. Nisso ele desistira do gibi. Voltaria para casa por um caminho mais longo, pegando o bondinho de Santa Teresa. Pegou o bonde. Quando passava por sobre o aqueduto, viu que um dos documentos de sua mãe que estava em seu bolso caiu lá de cima. Apavorado com a burocracia que a mãe teria que enfrentar para tirar um novo documento, desceu tão logo possível e voltou correndo ao local onde possivelmente a carteira havia caído. Avistara a Fundição Progresso e ao lado dela um grupo de capoeiristas. Paixão à primeira vista! Um dos jovens que estava na roda notou que um documento caíra ao seu lado. Rômulo chega perto, recebe o documento de volta e uma compulsão estranha o impele a entrar na roda. Embora nunca tivesse feito aquilo, sentia uma grande familiaridade com os movimentos e com a ginga. Desde então passou a freqüentar, quando podia, rodas e grupos capoeiristas com grande desenvoltura. Lembrou que sua família por parte de mãe tinha uma tradição com aquela arte. “Talvez”, pensava ele, “alguma coisa de meus antepassados tenha despertado”. E sem dúvida despertou, como ele viria a ter certeza depois.

Após aquela experiência no show do Legião Urbana no começo do ano, os três passaram a relatar entre si sonhos absurdamente semelhantes, com pessoas e locais idênticos. Era como se eles estivessem sendo atraídos para aquele ambiente visto nos sonhos. Logo depois, Ari descobriria que aquele lugar de fato existia. Era uma cidade próxima a Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, numa região ainda recheada de mata e de fazendas.


Ilustração: Carlos Hollanda

O ano de 1989 não seria mesmo comum e os jovens sentiam toda a excitação de poderem votar pela primeira vez para presidente. Um presidente eleito pelo voto popular depois de tantos anos de Ditadura, que máximo! Além disso, a possibilidade da Esquerda, na figura de Lula ou de Roberto Freire (Lula era bem mais cotado), ascender ao poder logo após ditadura e o governo “ameno” de Sarney. Aquilo tinha sido uma reprodução das mesmas situações que permitiam a exploração das multinacionais, a desvalorização do profissional brasileiro... Era, enfim, uma reafirmação do poder das elites, não do povo.

Era uma época conturbada e de grandes mudanças mundiais. George Bush, ex-agente e dirigente da CIA, então presidente dos Estados Unidos, preparava uma série de manobras militares desde 1988. Era o corolário das medidas políticas norte-americanas visando manter e expandir sua hegemonia. Desde os dois governos Reagan esse processo ia-se intensificando, especialmente após o fornecimento de armas norte-americanas ao Iraque, visando acabar com a crise dos reféns ianques no Irã (o fornecimento de armas estimulou a guerra Irã-Iraque). Essa política também visava a instalação de tropas dos Estados Unidos no Oriente Médio e a desarticulação da Esquerda na América Central, tal qual foi feito no restante da América Latina anteriormente. Bush retomara a iniciativa militar que culminou na Guerra do Golfo, dois anos após o ano em que se passa de nossa história. 1989 também foi o ano da queda do Muro de Berlim numa conseqüência da crise soviética após a Glasnost e a Perestroika de Gorbatchov. Só uma coisa assustava os estudantes com viés de esquerda: o crescimento nas pesquisas de opinião daquele que eles ironicamente chamavam de “O Caçador de Maracujás”, num deboche ao então candidato Fernando Collor de Mello, o auto-intitulado “Caçador de Marajás”. Marajás era o termo usado para designar os servidores públicos aquinhoados com remunerações escandalosamente altas. Esse pessoal mais esclarecido sabia muito bem que Collor era representante de uma oligarquia, que se fosse eleito seria apenas uma reiteração de um sistema ou, pior ainda, uma reiteração da vaidade que o candidato demonstrava.

Aristóteles, muito mais anarquista do que “petista” ou “comunista”, conforme alguns o classificavam pejorativamente, e sempre bem informado, costumava dialogar com os colegas e com os professores sobre política. Muitas vezes causava constrangimentos por sua habilidade em colocar os professores contra a parede. Não é preciso dizer que sua menor nota foi 9, mas isso porque tinha um professor que se recusava a dar nota 10 sem explicar direito o motivo.

SONHOS PROFÉTICOS

Falando em política, um fato curioso: certa vez, num dos comentários sobre sonhos estranhos com os dois amigos, Ari contou, rindo muito, que sonhara que vira um filme onde as torres do World Trade Center haviam explodido e que Alfred E. Newman, aquele personagem das capas da revista MAD, era o novo presidente dos Estados Unidos. No sonho, com notícias lidas num computador “high-tech”, de tela “colorida como uma TV”, nas palavras de Ari, o tal presidente resolvera partir para uma guerra contra o Iraque e contra a Coréia do Norte. Era mesmo um sonho bem estranho, até porque os monitores de computador no Brasil não tinham telas de alta definição e bem poucos eram em cores. Mais estranho ainda era o ano visto no calendário do micro: 2003. O nome do presidente era também muito engraçado: Gorge W.C. Butt. “Gorge” (e não George), em português significa “garganta” ou “engolir”, “devorar”. “W.C.” é a sigla das portas dos banheiros norte-americanos: “water closet”. “Butt” é o mesmo que “bunda”, na gíria em inglês. Uma boa adaptação para o português seria mais ou menos o que Ari risonhamente traduziu para os amigos: “Devorar a Própria Bunda no Banheiro”. Segundo Ari, aquele presidente de nome no mínimo cômico e com cara de caricatura, acabara desencadeando um conflito de proporções mundiais como nunca se tinha visto. Ao Brasil coube a responsabilidade de abrigar milhares de refugiados. De todos os sonhos contados naqueles 6 primeiros meses de 89, aquele era o único que saíra totalmente do contexto e o único que parecia não estar marcado por coincidências que ocorreriam nos dias seguintes para os rapazes. Ari o escreveu em seu “caderno de pesquisas psíquicas” assim mesmo.

Rômulo era o único dos três que relutava muito em admitir aquelas “coincidências”. Bastante influenciado pelo racionalismo que ora absorviam na universidade, tentava encontrar uma explicação lógica para todas aquelas percepções. Costumava dizer que eram as próprias expectativas em torno de fenômenos paranormais que os fazia crer que o que lhes ocorria era de fato algo cuja causa estava em “energias espirituais”. Prova disso era o nome ridículo do tal presidente do sonho de Ari, que nada mais era que uma adaptação subconsciente do nome do então presidente norte-americano, George Bush. Para ele os dois eram verdadeiras crianças, ainda acostumados a uma vida mais confortável e cheias de sonhos e fantasias. Mal sabia ele que era sua própria capacidade paranormal que, unida às dos outros dois rapazes, produzia toda aquela seqüência de sonhos proféticos nos três. Mal sabia também que a vida de Edgar, diferentemente da de Ari, nunca fora o mar de rosas que ele acreditava ser. Edgar pouco falava de seus pais, que só conhecia por fotos. Só falava que fora criado pela avó, o que por si só já era suficiente para que Rômulo já tremesse, julgando que o amigo se encaixava no estereótipo do “boiola”.

Dos três, apenas Aristóteles não precisava trabalhar. Sua mesada era equivalente a uns três salários mínimos, fora o fato de ter de tudo. O pai preferia que ele começasse a ganhar o próprio sustento por si mesmo, mas não forçava a barra porque queria antes ver o filho formado. Aliás, dos três Ari era o único que não tinha problemas com os pais, tendo neles verdadeiros amigos. Edgar, ganhou um verdadeiro presente com aquele trabalho na papelaria. Era muito mais uma ajuda de custo para seus estudos do que um emprego de verdade. Seu Emanuel, pai de Ari resolveu ajudar os rapazes, daí o emprego na loja do cunhado. Edgar costumava ser liberado em época de provas. Quem não gostaria de ter um emprego desses? Bem, talvez só quem precisasse de um salário maior. Pelo menos dona Odette já não precisava pagar tudo para o rapaz, aliviando sua aposentadoria e pensão que então já bastavam para as contas e para alimentação. Rômulo , mais orgulhoso, preferiu manter-se trabalhando junto com mãe e a sócia dela numa barraca de cachorro-quente. Dona Maria dividia os dias da semana entre a faxina e a barraca da praça. Esse trabalho também permitia uma certa disponibilidade de tempo ao jovem atleta. Rômulo era extremamente grato à mãe. Fora o amor de filho, tinha verdadeira idolatria pela coragem de sua genitora. Quantas vezes acabou dando surras em engraçadinhos que faltaram com o respeito com ela. “Se mexer com a minha mãe eu dou porrada!” – frase bastante discrepante da postura normalmente professoral e observadora do rapaz.

EDGAR VERSUS VIRGINDADE: A VITÓRIA!

Foram feitas algumas incursões “científicas” na Vila Mimosa, zona de baixo meretrício do Rio de Janeiro, o que permitiu a Edgar finalmente deixar de ser virgem e ganhar o respeito do amigo “anti-boiolas”. Perguntado por que nunca havia “aliviado as tensões” por ali, Edgar respondia que queria ter a “honra de transar pela primeira vez com uma garota que não fosse prostituta”. Ademais, costumava sentir uma série de coisas estranhas quando chegava perto daquele local. Era como se as experiências de todos aqueles homens, de todos os tipos, passassem por ele quando se via envolto pelo ambiente. Aquilo era bastante desagradável, pois nas três tentativas que fez, via-se, no corpo daquelas mulheres, sendo estuprado ou, no corpo de alguns homens que jamais vira, levando facadas e coisas do tipo. Com a presença dos dois amigos percebeu que as sensações desagradáveis foram grandemente filtradas e pôde, enfim, dar prosseguimento aos “trabalhos”. Isso ocorrera pouco antes das férias. Estas seriam únicas na vida dos três, pois aquele local estranho dos sonhos em comum tomava forma através de uma colega de turma, Iracema que olhava com olhos gulosos não para Rômulo, como seria de se esperar, mas para ninguém menos que Edgar. Depois daquelas experiências na Vila Mimosa passara a irradiar sua masculinidade contida.

Iracema era mato-grossense e tinha família justamente naquela região pesquisada por Ari. Seu pai era fazendeiro. Ela veio para o Rio porque queria matar dois coelhos com uma só cajadada: conhecer a cidade, vivendo em “eterna boemia”, nos bares e danceterias, e estudar. Com isso ela unia o útil ao agradável. Seu pai queria que ela fosse para São Paulo, pois lá também tinha negócios e poderia dar maior assistência à filha. Iracema, porém, queria dispor, segundo suas próprias palavras, de “liberdade, civilização e despojamento”, preferindo ter um espaço distante dos pais (conseguiu em parte, dividindo um apartamento com uma prima mais velha). Ari, estudioso de astrologia, e tantas outras coisas “esquizotéricas” que Rômulo gostava de achincalhar para irritar o amigo, atribuía à combinação de Sagitário com Aquário no mapa astrológico da jovem tal necessidade. Para ela o Rio seria perfeito para os primeiros passos. Queria viver em Salvador durante um ano, viajar para conhecer o mundo e travar contato com as mais variadas culturas. Já conhecia a Disneylândia, mas aquele monte de coisas artificiais não a satisfazia. Gostava do Pantanal, mas queria ir um pouco além, conhecendo as serras nordestinas e as florestas amazônicas. Logo se via que ela queria tudo ao mesmo tempo, abraçar o mundo com as pernas (e que pernas!).

Edgar, ainda tímido, foi praticamente empurrado pelos amigos para a morena malemolente e de sotaque característico. Apesar da exuberância e do desembaraço de Iracema os dois não trocaram carícias tão rapidamente. Ficaram mesmo no chove-não-molha, construindo vagarosamente uma amizade com tudo para tornar-se, com o tempo, amor de homem e mulher.

As férias de julho chegaram e eles viajaram. Aristóteles, recebera o suficiente para passagens de ida e volta de avião, como Iracema. Só que viajar sozinho seria ridículo, já que o motivo da viagem, muito mais do que lazer, era aventurar-se junto com seus dois amigos. Mais forrado de dinheiro do que seus amigos, acabou pagando a passagem dos dois, Apenas pediu ao pai um pouco mais, explicando que teria despesas de estadia etc. Seu pai deu o dinheiro sem reclamar, afinal, simpatizara com os dois outros garotos. Eles pareciam ter deixado Aristóteles mais responsável e menos inquieto. Até com vontade de trabalhar ele estava! Eram mesmo bons exemplos. Acabou que Iracema resolveu ir de ônibus também, não sem que seus pais, lá no Mato-Grosso, reclamassem bastante.

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A viagem transcorreu normalmente. Edgar, entretanto, tornou a ter percepções diferentes e vívidas. Diante de seu assento no ônibus volta e meia enxergava uma mulher de meia-idade de pé fitando-o. Lá pelas tantas, saindo da parte traseira do ônibus, Iracema trouxe um álbum de fotos que continha uma da tal mulher que Edgar passara a ver em forma etérea. Era Filomena Torresão, veterinária que trabalhava em algumas fazendas da região e era amiga de Iracema.

Chegaram ao entardecer em Campo Grande. Dali partiriam de carro com um empregado da fazenda do pai de Iracema. Evandro, o empregado, não era um homem rústico, muito embora fosse bem corpulento e alto. Tinha um olhar severo e falava pouco, mas foi gentil, cumprimentando os rapazes. Só Edgar não se sentiu muito bem quando apertou sua mão. Olhou para ele e viu um contorno escuro, algo meio gosmento, como se fosse possível algo imaterial ter textura. O contato foi rápido, mas foi o suficiente para que Edgar se sentisse mal até a chegada na fazenda, uma hora e meia depois. Todos acharam que era por causa da estrada de barro e da sinuosidade das curvas e não deram importância. Aristóteles, no entanto, já estava começando a compreender aquelas estranhas mudanças de estado no amigo e começou a ligar uma coisa com a outra. No bolso ele levava um baralho de Tarot, pois estava pesquisando as sincronicidades e os arquétipos segundo a visão de Jung. Aproveitou para tirar uma carta enquanto pensava na conexão entre o estado de Edgar e o grandalhão motorista. A carta que saiu foi a do Diabo. Não satisfeito, tirou outra: a Morte. Não se impressionava com essas cartas, pois mesmo elas, ele sabia, poderiam surgir sincronicamente a eventos gratificantes e uma eclosão de potenciais adormecidos. Mas algo naquele momento lhe dava a impressão de que boa coisa não era.

Após terem se instalado numa casa especialmente montada para visitantes, os três saíram para conhecer o local. Estavam num pequeno descampado cercado de árvores por todos os lados. Havia também alguns morros e um vale a poucos quilômetros dali. Era, como se esperava, habitado por animais silvestres, como o lobo-guará e, ocasionalmente, onças, apesar de os caçadores da região terem dizimado bastante a população desses animais e alterado o ecossistema.

Não havia iluminação elétrica. Isso animou ainda mais os rapazes, que queriam mesmo sentir a natureza de perto sem a interferência do excesso de tecnologia da cidade grande. Enquanto exploravam o local, um farol anuncia a chegada do jipe de Iracema. Ela trazia Filomena, que quando soube da chegada dos rapazes rogou para que fosse levada até eles. Iracema, que conhecia a estranha castidade da amiga até se animou, pensando que aquela seria a chance de proporcionar-lhe os prazeres do sexo. Estava redondamente enganada. Filomena estava interessada em algo bastante diferente de sexo.

Iracema saiu do carro e foi logo apresentando a amiga. Filomena os abraçou como se os conhecesse e como se os esperasse há anos. Olhou fixamente para Edgar e este entendeu que era exatamente disso que se tratava.

Aquela mulher tinha um dom estranho. Parecia saber tudo sobre os três jovens, especialmente sobre Edgar. Ele não gostou muito de sentir-se assim devassado, mas percebeu que não era possível esconder-se de sua percepção apurada. Pouco antes de ir embora, Filomena chegou perto de Ari e disse:

- Quando precisar, tire a primeira carta do baralho que está no seu bolso.

- Ah, é? E qual é a carta que está lá agora?

- No momento não é essa a carta que vai te ajudar. O que está no começo so baralho em seu bolso é a Lua.

Rômulo, incrédulo retira a carta antes de Ari. Não deu outra: Lua.

- Passem depois do almoço de amanhã lá na fazenda. Tenho muita coisa pra conversar com vocês. E, por favor, esta noite fiquem quietos aí onde estão. Essa região tem andado meio perigosa. Duas pessoas e algumas cabeças de gado foram estraçalhados há uma semana. Todo mundo acha que tem uma onça por perto, mas eu acho que é coisa bem mais letal.

PESADELOS QUASE MORTAIS,
PRECES E MAGIA

Estavam bastante cansados mas a noite fora turbulenta com o pesadelo que tiveram. Uma criatura escura e disforme, muito diferente daquele homem gigantesco que Edgar costumava ver, com um aspecto muito mais ameaçador. Foram encurralados e sentiram suas carnes serem rasgadas pelo que pareciam ser garras enormes. Os três acordaram gemendo de dor. Ao acender o lampião, Ari leva um baita susto: Edgar e Rômulo botavam sangue pelo nariz. A surpresa dos dois também não foi menor: Ari estava lacrimejando sangue.

Ari, que ultimamente estudava artes mágicas, sacou de sua mochila alguns livros, entre eles o Necronomicon, cujas indicações vinha tentando reproduzir sem sucesso. Enquanto Rômulo e Edgar se entreolhavam assustados e sem nada entender, Ari pegou um livrinho de preces. Edgar notou que estava escrito algo como “germano alguma coisa” e “chama violeta”. Não questionou. Apenas fez aquilo que Ari lhes dissera para fazer, repetindo palavra por palavra e mentalizando conforme as instruções. A tensão diminuiu e aquele sentimento nauseante que atacara a todos sumiu quase de imediato. O cansaço os venceu, apesar da curiosidade de saber o que estava acontecendo. Resolveram dormir e descobrir o que de fato estava ocorrendo quando acordassem.

No dia seguinte de manhã foram conhecer os arredores enquanto especulavam sobre o ocorrido da madrugada. Ari perscrutava tudo com suas anotações. Tirava fotos como sempre. Num bar da cidade ouviram várias conversas diferentes, coisas comuns da região, comentários sobre os candidatos à presidência, discussões sobre times de futebol, gado, falta de empregos etc. Um comentário, porém, pareceu aos rapazes algo meio anacrônico. Um jovem que não tinha jeito de quem vivia na roça falava sobre um lobisomem que tinha visto quando passava com seu carro numa das trilhas que levavam ao vale. Era um dos jipeiros da região. Os três garotos da cidade acharam graça de tudo aquilo, pois aqui e acolá alguém comentava sobre esse tal lobisomem. Era certo que isso era coisa de interior, mas curiosamente muitas das pessoas que falavam tinham ar de quem vinha da cidade grande, com todo o ceticismo característico de quem não era religioso ou supersticioso.

Enfim reencontraram Filomena, que acabara de ajudar uma égua a dar à luz. Estava um bocado fedorenta e ensangüentada, o que fez Edgar e Rômulo torcerem o nariz. Ela riu, percebendo o asco dos rapazes, mas não fez comentários. Foi lavar-se enquanto perguntava:

- Como foi a noite de vocês? Espero que tenha sido boa, porque a minha...

- A nossa não foi nada boa – antecipou-se Ari – Talvez tenhamos ficado impressionados com seu comentário do perigo e tivemos alguns pesadelos...

- Por acaso foi com uma criatura enorme e preta que correu atrás de vocês?

- Como é que você sabe? – perguntaram os três em uníssono.

A mulher abre a camisa mostrando os seios. Rômulo e Ari quase caíram para trás, mas foi de excitação sexual. Edgar imediatamente repara numa cicatriz na base do seio esquerdo, uma marca que com certeza absoluta não era de cirurgia. Pareciam vários arranhões muito profundos e concêntricos, como se algo quisesse arrancar-lhe o coração.

- Foi isso mesmo o que aconteceu, Edgar – disse Filomena.

- Isso o quê?

- Ele tentou me matar. E o fez quatro vezes.

Edgar ficara realmente surpreso dessa vez. Pensava que somente ele era capaz de perceber o que os outros pensavam, mas aquela mulher misteriosa parecia ter um talento muito mais desenvolvido que o dele.

- A primeira vez foi do jeito que aconteceu com vocês, em ataque psíquico. Fui parar na UTI com parada cardíaca. Depois disso aprendi a me defender psiquicamente e pude bloquear tal tipo de ataque. Há dois anos, no entanto, fui atacada pela coisa através de um veículo físico. E o pior é que não consigo descobrir quem foi, pois algo me impede de enxergar quem é o hospedeiro dessa criatura. Só tenho certeza de que ela ainda está por aqui, mas não consigo identificar em quem ela se esconde.

Ari olhou para Rômulo, que coçava o queixo visivelmente transtornado. “Em que bando de malucos eu fui me meter”, pensava. Filomena e Edgar imediatamente se viraram e disseram:

- Vai se acostumando com esse bando de malucos, porque é assim que você vai ficar em breve, meu chapa.
Era demais. Aristóteles caiu na gargalhada. Rômulo ainda não aprendera que todas as vezes que pensava daquele modo o pensamento era detectado pelo amigo. E agora Edgar vinha em dose dupla com Filomena.

No próximo capítulo, os rapazes são perseguidos, se perdem no meio do mato e ainda têm que enfrentar uma criatura das trevas que pode até vir a matá-los em:

“A Confraria” e “Possessão”

Carlos Hollanda