Insólito - Parte 1
por Carlos Hollanda


Ilustração: Carlos Hollanda

A chuva fina do entardecer já anunciava uma noite gelada. "Brrr" - Edgar tiritou de frio enquanto caminhava trôpego em direção à trilha esburacada. Ela levava até um pequeno vale onde situava-se uma antiga igrejinha já em ruínas. Nunca havia tido curiosidade de explorar o local. Não até aquele momento, quando viu algo que parecia uma produção de comercial de lingerie. Acontece que não havia equipe de filmagem, apenas aquela mulher estranha acenando. Ela, que vestia apenas um finíssimo véu branco, adentrou pela mata fechada. Normalmente cenas estranhas como aquela não o demoviam de sua rotineira caminhada vespertina nas proximidades da floresta, mas de algum modo aquela mulher que nunca vira despertou sua curiosidade. Achou que era algum tipo de brincadeira de adolescentes. Não se irritou, apenas queria entender como alguém conseguia agüentar todo aquele frio com uma roupa tão leve. Ademais, ele mesmo havia saído da adolescência há poucos anos.

Foi até a entrada da trilha em passo acelerado para alcançar a bela jovem seminua. Ela simplesmente desapareceu. Mas não era possível! A direção que ela tomou a levaria direto para um paredão de rocha de muitos metros de altura. Ela não poderia correr tão depressa. Nem motoqueiros que fazem rali em locais como aquele poderiam passar no estreito com tanta velocidade sem levar um belo tombo. E o pior é que ele não ouvia o barulho de motores, não ouvia som algum.

Súbito, um farfalhar à sua esquerda, na direção do sol que já havia mergulhado nas trevas noturnas. Correu para lá, mal sentindo os próprios pés, tendo dificuldade para caminhar, como se andasse e quase não saísse do lugar. Enfim chegou numa clareira onde a lua crescente já podia mostrar sua pálida luminosidade. No centro, percebeu uma árvore imensa projetando-se do solo até o que parecia ser uma altura de centenas de metros. Começou a sentir náuseas, um mal-estar tremendo, juntamente com aquela estranha sensação de vazio, algo que já sentira, pouco tempo após a morte de seu pai anos atrás. Simultaneamente o chão estremece e as raízes da árvore gigantesca serpenteiam em convulsão agonizante. Ele dá um salto para trás e sua espinha gela ao ouvir seu próprio nome.

"Edgar..." - O vento parece sussurrar. Não, não era o vento. Era uma voz vinda das profundezas que se abriram à sua frente, uma voz aterrorizante, mas ao mesmo tempo familiar.

"Edgar!" - A voz agora toma um tom imperativo, com sonoridade semelhante ao rugido de uma besta infernal.

Apavorado, Edgar se esgueira por entre os arbustos, sem deixar de perceber que a seu toque os mesmos se desfazem em pó. Chega bem perto da cratera e vê, junto às raízes eriçadas, duas pequenas chamas que crescem e crescem até poder perceber que não se tratavam de simples chamas. Eram os olhos fumegantes de um ser que irrompe violentamente das profundezas.

O rapaz não pode acreditar no que vê. Da fenda entre as raízes eleva-se um homem de estatura elevada, vestido de preto, com uma capa semelhante a uma mortalha suja e pestilenta e um adorno metálico na fronte. Seu rosto é branco como papel, suas sobrancelhas grossas e despenteadas e ele tem uma barba negra como o véu da noite. Seu olhar direto e fulminante faz Edgar ajoelhar-se pressionando as mãos contra o peito e o abdome. A sensação de náusea e de vazio atingem proporções inimagináveis.

Mesmo em meio ao sofrimento, não pôde deixar de rir, não do homem que lhe causava tal desconforto, mas do fato de ter-lhe vindo à mente um pensamento um tanto cômico en meio à sensação de perigo de vida. Aquele homem lembrava a figura de Drácula ou de Darth Vader, de Guerra nas Estrelas, só que centenas de vezes mais medonho. Lembrou dos dois robozinhos engraçados do filme... como era mesmo o nome deles? Argh! Nova onda de náusea.

- Vinde a mim, Edgar! - ordenou o gigante.

- Mas do que é que você está falando? Que lugar é esse? Quem é você e o que está acontecendo? Vê se não chega perto que eu vou vomitar, hein! Sai pra lá, mermão! Ah, não eu vou vomi... bleargh!

- Vinde a mim... - a negra figura aproximou-se sem demonstrar o menor desconforto ante o regurgitar não menos escuro do jovem.

Edgar, completamente apavorado, põe-se a correr. Pelo menos tenta, pois embora suas pernas se movam, seu corpo não sai do lugar. A mão ressequida daquela coisa com aparência humana o alcança e seu braço gela com o toque.

Triiiiiimmmmm!!!!! Triiiiiimmmmm!!!!!

- AimeuDeusdoCéu, AimeuDeusdoCéu, AimeuDeusdoCéu!!!!!

Triiiiiimmmmm!!!!! Triiiiiimmmmm!!!!!

- Ai, meu De... hã, caramba! Foi um pesadelo! Putz, mas eu vomitei mesmo! Mas que droga e que nojo!!! Eca!! Assim vou me atrasar pro vestibular!

- Edgar, anda, menino, você vai se atrasar! - grita a avó, dona Odette.

- Já sei, vó. Peraí que eu tô me limpando.

Por trás da porta dona Odette escuta a frase, faz uma expressão de estranheza, mas dá de ombros. Já se acostumara com as esquisitices do neto desde que, aos doze anos de idade, ele jurara de pés juntos que conversava com uma menina índia pela janela do quarto. O problema era que não havia indiazinha na janela nem em lugar algum. Era compreensível. Na época seu pai ainda era vivo, mas vivia doente, não podia trabalhar, nem dar atenção ao filho. Sua mãe falecera num hospício. A família a internou depois de vê-la toda ensangüentada, aparentemente tendo cortado a si mesma em auto-flagelação. Dona Odette nunca entendeu porque a nora fez aquilo, mas também não se satisfez com o diagnóstico de esquizofrenia. Não. Ela conhecera esquizofrênicos antes e o comportamento da pobre moça não batia. Tinha um algo mais que ela não entendia, mas tinha medo de descobrir exatamente o que era.

Odette sabia que os pais de Luciana também nunca tiveram uma vida que se pudesse chamar de normal. A avó materna de Edgar, mãe de Luciana, teve uma vida repleta de episódios semelhantes aos da filha, mas era uma mulher de feições sombrias, ao contrário do semblante luminoso de Luciana. Wanda era seu nome. Era uma mestiça, filha de um imigrante alemão com uma bugra. As pessoas da redondeza tinham um certo temor da velha. Diziam que era macumbeira ou bruxa, algo assim, nada que dona Odette acreditasse muito. Não fez muito gosto no casamento do filho com a nora, mas também não interferiu. Sabia que seu filho tinha personalidade forte e não arredava o pé daquilo que desejava. E isso era motivo de orgulho para ela, que vinha de uma família de "heróicos" oficiais que lutaram na Guerra do Paraguai. Ela achava que a guerra tinha sido uma série de atos heróicos e isso lhe bastava. Não se interessava por comentários de universitários e historiadores sobre o assunto, pois sempre reduziam a grandeza do que fora o evento. Gostava de ver o filho impondo sua vontade e realizando aquilo a que se propunha da mesma forma que seus antepassados. Infelizmente Edgar nasceu franzino e nunca pareceu ter jeito de menino. Chegou por um bom tempo a desconfiar de sua masculinidade, pois mal se dava com outros adolescentes e nunca o havia visto ao lado de uma moça. Era-lhe estranho um jovem que lia demais, que não gostava muito de sair para as festinhas, paquerar e tudo o mais que um garoto daquela idade faria. Mas era a avó do menino, a responsável por ele e o amava. Ora, menino! Ele já estava com 20 anos. Deixara de ser menino. Era um jovem responsável que dava duro para conseguir um lugar ao sol. Isto lhe bastava. Era a prova de que ele era um membro da família Lobato. Um forte, a despeito de suas feições um tanto femininas.

Edgar sai de casa sob protestos de dona Odette, pois ignorara o café da manhã, que naquela altura do campeonato não era lá essas coisas. A vida financeira da família ia de mal a pior. A avó vivia de pensão e ele conseguia arrumar dinheiro com alguns bicos que fazia como entregador, garçom e com aulas particulares que dava pros moleques debochados da escola onde terminara o segundo grau. Os prognósticos dos economistas não eram lá muito favoráveis a uma melhoria da situação. Mega-empresas falindo, o Oriente Médio continuava em guerra e o Brasil ainda era um país com péssima distribuição de renda. "A gente vai levando. O que nós, ignorantes, havemos de fazer?" - pensava ele.

Aquele sonho não lhe saía da cabeça. Volta e meia anotava suas mirabolantes viagens de travesseiro. Pensava em um dia escrever um livro só com aqueles sonhos malucos que tinha. Eles pareciam tão reais... De alguma forma, após aquele último, ele passou a ter uma sensação diferente, algo que nunca havia experimentado antes e que não lhe era muito agradável. Era como se as coisas ao redor estivessem dizendo alguma coisa, como se formas e objetos, gestos e coincidências tivessem uma lógica gramatical. Esta sensação que considerava absurda também era conhecida. Quando criança, lá pelos sete anos, costumava assustar os pais dizendo coisas que acabavam acontecendo. Era como ler coincidências. Formulava frases que lhe pareciam sair da boca sem intervenção de sua vontade. Divertia-se muito com isso, mas pensava ser apenas uma brincadeira para a qual os adultos impressionáveis e supersticiosos davam crédito demais. Seu pai dera-lhe uma tremenda surra da última vez. Nunca mais sequer pensou em repetir a brincadeira e aquela sensação desapareceu. Agora tudo parecia ter voltado com uma força e com uma clareza fora do comum.

Sua suspeita confirmou-se ao olhar na direção de pessoas que conversavam num ponto de ônibus. Ao lado delas um carro estacionado refletia o céu com algumas nuvens. O modo como as nuvens estavam dispostas no vidro parecia formar uma pessoa agachada com a mão prestes a tocar as costas de um senhor de terno e gravata de olhar distraído em pé ao lado do veículo. Conteve o ímpeto de gritar para o homem sair dali, mas se conteve, pois o próprio Edgar percebia o quanto seria absurdo agir daquela forma. Acontece que a "leitura" que fizera da imagem era a da abordagem sorrateira de um ladrão. Eis que em questão de segundos, desde que olhou para o carro e para o homem de terno, um rapaz surge da esquina, empurra o homem, que bate com a cabeça no poste, e corre com sua carteira na mão. Os transeuntes dividiam-se entre aqueles que corriam atrás do punguista e os que tentavam ajudar o homem com a cabeça sangrando.

Em meio ao tumulto, Edgar, boquiaberto, não conseguiu esboçar reação alguma. Apenas continuou a caminhar após voltar a si. Tentou mais uma vez afastar a idéia de que aquilo que aconteceu ele pôde "ler" no ambiente, como pensava fazer quando criança. Ele nunca acreditara nessas coisas e não seria agora que iria se enganar. Tinha muita estrada pela frente para se deixar enlouquecer como aconteceu com sua mãe. Sabia que estava atrasado nos estudos. Ah, e como lhe doía saber que na idade em que estava ainda não tinha entrado na faculdade e não sabia dirigir um automóvel!

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