A
chuva fina do entardecer já anunciava uma noite
gelada. "Brrr" - Edgar tiritou de frio enquanto
caminhava trôpego em direção à
trilha esburacada. Ela levava até um pequeno
vale onde situava-se uma antiga igrejinha já
em ruínas. Nunca havia tido curiosidade de explorar
o local. Não até aquele momento, quando
viu algo que parecia uma produção de comercial
de lingerie. Acontece que não havia equipe de
filmagem, apenas aquela mulher estranha acenando. Ela,
que vestia apenas um finíssimo véu branco,
adentrou pela mata fechada. Normalmente cenas estranhas
como aquela não o demoviam de sua rotineira caminhada
vespertina nas proximidades da floresta, mas de algum
modo aquela mulher que nunca vira despertou sua curiosidade.
Achou que era algum tipo de brincadeira de adolescentes.
Não se irritou, apenas queria entender como alguém
conseguia agüentar todo aquele frio com uma roupa
tão leve. Ademais, ele mesmo havia saído
da adolescência há poucos anos.
Foi
até a entrada da trilha em passo acelerado para
alcançar a bela jovem seminua. Ela simplesmente
desapareceu. Mas não era possível! A direção
que ela tomou a levaria direto para um paredão
de rocha de muitos metros de altura. Ela não
poderia correr tão depressa. Nem motoqueiros
que fazem rali em locais como aquele poderiam passar
no estreito com tanta velocidade sem levar um belo tombo.
E o pior é que ele não ouvia o barulho
de motores, não ouvia som algum.
Súbito,
um farfalhar à sua esquerda, na direção
do sol que já havia mergulhado nas trevas noturnas.
Correu para lá, mal sentindo os próprios
pés, tendo dificuldade para caminhar, como se
andasse e quase não saísse do lugar. Enfim
chegou numa clareira onde a lua crescente já
podia mostrar sua pálida luminosidade. No centro,
percebeu uma árvore imensa projetando-se do solo
até o que parecia ser uma altura de centenas
de metros. Começou a sentir náuseas, um
mal-estar tremendo, juntamente com aquela estranha sensação
de vazio, algo que já sentira, pouco tempo após
a morte de seu pai anos atrás. Simultaneamente
o chão estremece e as raízes da árvore
gigantesca serpenteiam em convulsão agonizante.
Ele dá um salto para trás e sua espinha
gela ao ouvir seu próprio nome.
"Edgar..."
- O vento parece sussurrar. Não, não era
o vento. Era uma voz vinda das profundezas que se abriram
à sua frente, uma voz aterrorizante, mas ao mesmo
tempo familiar.
"Edgar!"
- A voz agora toma um tom imperativo, com sonoridade
semelhante ao rugido de uma besta infernal.
Apavorado,
Edgar se esgueira por entre os arbustos, sem deixar
de perceber que a seu toque os mesmos se desfazem em
pó. Chega bem perto da cratera e vê, junto
às raízes eriçadas, duas pequenas
chamas que crescem e crescem até poder perceber
que não se tratavam de simples chamas. Eram os
olhos fumegantes de um ser que irrompe violentamente
das profundezas.
O
rapaz não pode acreditar no que vê. Da
fenda entre as raízes eleva-se um homem de estatura
elevada, vestido de preto, com uma capa semelhante a
uma mortalha suja e pestilenta e um adorno metálico
na fronte. Seu rosto é branco como papel, suas
sobrancelhas grossas e despenteadas e ele tem uma barba
negra como o véu da noite. Seu olhar direto e
fulminante faz Edgar ajoelhar-se pressionando as mãos
contra o peito e o abdome. A sensação
de náusea e de vazio atingem proporções
inimagináveis.
Mesmo
em meio ao sofrimento, não pôde deixar
de rir, não do homem que lhe causava tal desconforto,
mas do fato de ter-lhe vindo à mente um pensamento
um tanto cômico en meio à sensação
de perigo de vida. Aquele homem lembrava a figura de
Drácula ou de Darth Vader, de Guerra nas Estrelas,
só que centenas de vezes mais medonho. Lembrou
dos dois robozinhos engraçados do filme... como
era mesmo o nome deles? Argh! Nova onda de náusea.
-
Vinde a mim, Edgar! - ordenou o gigante.
-
Mas do que é que você está falando?
Que lugar é esse? Quem é você e
o que está acontecendo? Vê se não
chega perto que eu vou vomitar, hein! Sai pra lá,
mermão! Ah, não eu vou vomi... bleargh!
-
Vinde a mim... - a negra figura aproximou-se sem demonstrar
o menor desconforto ante o regurgitar não menos
escuro do jovem.
Edgar,
completamente apavorado, põe-se a correr. Pelo
menos tenta, pois embora suas pernas se movam, seu corpo
não sai do lugar. A mão ressequida daquela
coisa com aparência humana o alcança e
seu braço gela com o toque.
Triiiiiimmmmm!!!!!
Triiiiiimmmmm!!!!!
-
AimeuDeusdoCéu, AimeuDeusdoCéu,
AimeuDeusdoCéu!!!!!
Triiiiiimmmmm!!!!!
Triiiiiimmmmm!!!!!
-
Ai, meu De... hã, caramba! Foi um pesadelo! Putz,
mas eu vomitei mesmo! Mas que droga e que nojo!!! Eca!!
Assim vou me atrasar pro vestibular!
-
Edgar, anda, menino, você vai se atrasar! - grita
a avó, dona Odette.
-
Já sei, vó. Peraí que eu tô
me limpando.
Por
trás da porta dona Odette escuta a frase, faz
uma expressão de estranheza, mas dá de
ombros. Já se acostumara com as esquisitices
do neto desde que, aos doze anos de idade, ele jurara
de pés juntos que conversava com uma menina índia
pela janela do quarto. O problema era que não
havia indiazinha na janela nem em lugar algum. Era compreensível.
Na época seu pai ainda era vivo, mas vivia doente,
não podia trabalhar, nem dar atenção
ao filho. Sua mãe falecera num hospício.
A família a internou depois de vê-la toda
ensangüentada, aparentemente tendo cortado a si
mesma em auto-flagelação. Dona Odette
nunca entendeu porque a nora fez aquilo, mas também
não se satisfez com o diagnóstico de esquizofrenia.
Não. Ela conhecera esquizofrênicos antes
e o comportamento da pobre moça não batia.
Tinha um algo mais que ela não entendia, mas
tinha medo de descobrir exatamente o que era.
Odette
sabia que os pais de Luciana também nunca tiveram
uma vida que se pudesse chamar de normal. A avó
materna de Edgar, mãe de Luciana, teve uma vida
repleta de episódios semelhantes aos da filha,
mas era uma mulher de feições sombrias,
ao contrário do semblante luminoso de Luciana.
Wanda era seu nome. Era uma mestiça, filha de
um imigrante alemão com uma bugra. As pessoas
da redondeza tinham um certo temor da velha. Diziam
que era macumbeira ou bruxa, algo assim, nada que dona
Odette acreditasse muito. Não fez muito gosto
no casamento do filho com a nora, mas também
não interferiu. Sabia que seu filho tinha personalidade
forte e não arredava o pé daquilo que
desejava. E isso era motivo de orgulho para ela, que
vinha de uma família de "heróicos"
oficiais que lutaram na Guerra do Paraguai. Ela achava
que a guerra tinha sido uma série de atos heróicos
e isso lhe bastava. Não se interessava por comentários
de universitários e historiadores sobre o assunto,
pois sempre reduziam a grandeza do que fora o evento.
Gostava de ver o filho impondo sua vontade e realizando
aquilo a que se propunha da mesma forma que seus antepassados.
Infelizmente Edgar nasceu franzino e nunca pareceu ter
jeito de menino. Chegou por um bom tempo a desconfiar
de sua masculinidade, pois mal se dava com outros adolescentes
e nunca o havia visto ao lado de uma moça. Era-lhe
estranho um jovem que lia demais, que não gostava
muito de sair para as festinhas, paquerar e tudo o mais
que um garoto daquela idade faria. Mas era a avó
do menino, a responsável por ele e o amava. Ora,
menino! Ele já estava com 20 anos. Deixara de
ser menino. Era um jovem responsável que dava
duro para conseguir um lugar ao sol. Isto lhe bastava.
Era a prova de que ele era um membro da família
Lobato. Um forte, a despeito de suas feições
um tanto femininas.
Edgar
sai de casa sob protestos de dona Odette, pois ignorara
o café da manhã, que naquela altura do
campeonato não era lá essas coisas. A
vida financeira da família ia de mal a pior.
A avó vivia de pensão e ele conseguia
arrumar dinheiro com alguns bicos que fazia como entregador,
garçom e com aulas particulares que dava pros
moleques debochados da escola onde terminara o segundo
grau. Os prognósticos dos economistas não
eram lá muito favoráveis a uma melhoria
da situação. Mega-empresas falindo, o
Oriente Médio continuava em guerra e o Brasil
ainda era um país com péssima distribuição
de renda. "A gente vai levando. O que nós,
ignorantes, havemos de fazer?" - pensava ele.
Aquele
sonho não lhe saía da cabeça. Volta
e meia anotava suas mirabolantes viagens de travesseiro.
Pensava em um dia escrever um livro só com aqueles
sonhos malucos que tinha. Eles pareciam tão reais...
De alguma forma, após aquele último, ele
passou a ter uma sensação diferente, algo
que nunca havia experimentado antes e que não
lhe era muito agradável. Era como se as coisas
ao redor estivessem dizendo alguma coisa, como se formas
e objetos, gestos e coincidências tivessem uma
lógica gramatical. Esta sensação
que considerava absurda também era conhecida.
Quando criança, lá pelos sete anos, costumava
assustar os pais dizendo coisas que acabavam acontecendo.
Era como ler coincidências. Formulava frases que
lhe pareciam sair da boca sem intervenção
de sua vontade. Divertia-se muito com isso, mas pensava
ser apenas uma brincadeira para a qual os adultos impressionáveis
e supersticiosos davam crédito demais. Seu pai
dera-lhe uma tremenda surra da última vez. Nunca
mais sequer pensou em repetir a brincadeira e aquela
sensação desapareceu. Agora tudo parecia
ter voltado com uma força e com uma clareza fora
do comum.
Sua
suspeita confirmou-se ao olhar na direção
de pessoas que conversavam num ponto de ônibus.
Ao lado delas um carro estacionado refletia o céu
com algumas nuvens. O modo como as nuvens estavam dispostas
no vidro parecia formar uma pessoa agachada com a mão
prestes a tocar as costas de um senhor de terno e gravata
de olhar distraído em pé ao lado do veículo.
Conteve o ímpeto de gritar para o homem sair
dali, mas se conteve, pois o próprio Edgar percebia
o quanto seria absurdo agir daquela forma. Acontece
que a "leitura" que fizera da imagem era a
da abordagem sorrateira de um ladrão. Eis que
em questão de segundos, desde que olhou para
o carro e para o homem de terno, um rapaz surge da esquina,
empurra o homem, que bate com a cabeça no poste,
e corre com sua carteira na mão. Os transeuntes
dividiam-se entre aqueles que corriam atrás do
punguista e os que tentavam ajudar o homem com a cabeça
sangrando.
Em
meio ao tumulto, Edgar, boquiaberto, não conseguiu
esboçar reação alguma. Apenas continuou
a caminhar após voltar a si. Tentou mais uma
vez afastar a idéia de que aquilo que aconteceu
ele pôde "ler" no ambiente, como pensava
fazer quando criança. Ele nunca acreditara nessas
coisas e não seria agora que iria se enganar.
Tinha muita estrada pela frente para se deixar enlouquecer
como aconteceu com sua mãe. Sabia que estava
atrasado nos estudos. Ah, e como lhe doía saber
que na idade em que estava ainda não tinha entrado
na faculdade e não sabia dirigir um automóvel!
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