Continuação
Parte 1
A viagem de ônibus até a UERJ, onde Edgar
faria a prova, não foi demorada. Conseguiu chegar
a tempo. Fizera vestibular antes e não passara.
Queria entrar para a faculdade de comunicação.
Não conseguiu. Muitos candidatos, número
normal de vagas e uma cabeça onde nada do que
estudasse entrava. Só pensava em sexo, sexo,
sexo e nos bicos que tinha que fazer para ajudar em
casa. Desta vez estava decidido. Pelo menos achava que
estava. Resolveu fazer sociologia. Na verdade queria
ser antropólogo, como o Betinho, irmão
do Henfil. A escolha foi uma mescla de admiração
por Betinho, com toda sua história de exílio
e participação política, e uma
influência direta das composições
do Legião Urbana. Edgar adorava aquele conjunto,
especialmente Renato Russo, o vocalista, que adorava
ver dançando daquele jeito louco no palco. Também
tinha o sonho de conhecer as tribos menos acessíveis
da Amazônia. Lembrava dos irmãos Villas
Boas, especialmente o Orlando, sobre quem leu havia
poucos anos. Era uma aventura e tanto fazer o que eles
faziam.
Não somente sua avó, mas todos os homens
da vizinhança perturbaram bastante o rapaz por
sua escolha. “Vai estudar o quê??!!!”
– era a pergunta que ouvia mais freqüentemente.
Pudera. Num bairro onde parecia que ninguém tinha
ouvido falar em outra coisa senão medicina, engenharia
e direito, para fazer outra coisa alguém tinha
que ser militar. O resto era coisa de filme, “bobagem”.
Teimoso, o jovem prosseguiu em sua escolha. Claro que
estava inseguro. Se era realmente certo, que seguiria
em frente como cientista social não tinha a menor
idéia, mas havia uma certeza íntima, uma
esperança ou uma pretensão megalômana
de que poderia mudar o país de algum modo.
O ano era 1988. Edgar vivera a efervescência
do movimento das “Diretas Já”, em
85 e a morte de Tancredo Neves antes de assumir o mandato.
Via o rebuliço em torno das eleições
diretas para presidente que só aconteceriam em
1989. Ele já estava com vinte anos de idade e
torcia para que Lula fosse presidente, muito embora
a maioria das pessoas rissem dele e passassem a mão
em sua cabeça compreensivamente. “Que é
isso, garoto, você tem muito o que aprender de
política. Não saia correndo pra votar
no Lula. Ele não tem o menor preparo...”
O fato é que Edgar se identificava com tudo
o que era rebelde e contra o sistema e se Lula naquela
época era símbolo de resistência
contra o domínio das elites, era nele que votaria.
Pouco importava o que os mais velhos achavam. “Hipócritas!”
– pensava ele, ao saber da “quantidade de
nada” que fizeram para mudar as próprias
situações, conformando-se como gado ao
que se lhes impunha goela abaixo.
Mas nossa história realmente começa quando
o rapaz chega às portas da UERJ. Uma hora antes
da prova do vestibular, Edgar encontra o local, como
seria de se esperar, repleto de estudantes, uns loucos
por uma vaga e outros ali somente para satisfazer as
pressões da família.
Ele aguardava sentado num canto um pouco mais vazio.
Como sempre, apesar da já relativamente bem desenvolvida
consciência política, tinha dificuldades
em abordagens iniciais e no contato com pessoas de sua
própria idade. Aliás, pensava ele, já
não era alguém da mesma idade da maioria.
Estava errado. Ao seu lado, simultaneamente, sentam
dois outros rapazes, provavelmente tão “velhos”
quanto ele. Um deles, um magricela bem comprido e muito
branco, de óculos fundo de garrafa e com um jeito
agitado. Ele o cutuca no ombro sem mais nem menos e
aponta para um homem de seus quarenta anos encostado
numa pilastra.
- Olha só aquele cara. Já é a
terceira vez que ele vem fazer vestibular. O cara é
persistente...
Edgar surpreendeu-se com a brancura do rapaz. Ficou
pensando também por que cargas d’água
ele estaria falando aquilo? O que ele tinha a ver com
a vida daquele “velho”?
- Fiquei sabendo disso pelo segurança ali do
portão – tornou a falar o branquelo agitando
os braços de um modo engraçado - Ele falou
que aquele cara viveu muitos anos numa favela e que
o conhecia, pois morava lá perto. É persistente
mesmo. Foi pedreiro quando ainda era moleque. Depois
foi promovido a mestre de obras. Resolveu estudar. Quase
se matava de tanto esforço. A mulher o largou,
levando os filhos. Que coisa, né?
Edgar ainda não se apercebera de sua autopiedade
e de seu pessimismo. Achava que aquele homem era um
coitado. Se ele teria menos chances de conquista do
que os outros candidatos, imagine aquele “velho”.
Aquele rapaz desconhecido, mas estranhamente engraçado,
pelo menos fê-lo rir.
O outro jovem que se sentara ao lado era um rapaz negro,
pouca coisa mais alto que Edgar, mas com musculatura
definida, embora não anabolizado. Usava roupas
normais, não era como os marombeiros que adoravam
se exibir com roupas apertadas e mostrando os braços
tão logo seus músculos começassem
a aparecer. Falou numa voz um tanto grossa para suas
feições de garoto:
- E eu que pensava que era velho pra voltar a estudar.
Estou com 23 anos e já estava me sentindo o último
dos manés. Eu vou fazer prova pra sociologia.
E vocês?
O magricela e Edgar fizeram uma ligeira expressão
de espanto e de identificação. Era a mesma
formação que iriam tentar. Continuaram
a bater papo sobre os outros candidatos, sobre o que
os motivou a escolher aquela formação
universitária, e, é claro, sobre as moças
“gostosas” que passavam no corredor. Até
Edgar, tímido, lançou olhares e deu alguns
pareceres sobre o formato do corpo de algumas. Mas o
magricela realmente era engraçado e tagarela.
Quase monopolizou a conversa. Falava muito e bastante
depressa, sempre agitando aqueles brações
compridos como varetas. Mexia com as meninas de uma
forma não ofensiva. Elas riam e se afastavam.
Ele fazia piadas engraçadíssimas enquanto
falava sobre coisa sérias. Uma coisa verdadeiramente
surreal. O rapaz negro sorria suavemente, meio de lado.
Tinha um olhar cansado, bem mais maduro do que seus
poucos anos de vida. Falava de forma inteligente, cheio
de conhecimento de causa. Era externamente calmo, mas
Edgar tinha a impressão de que nele havia uma
fornalha oculta constantemente fabricando aço
dos mais resistentes.
Soou o sinal. Era a hora da prova. Para surpresa dos
rapazes, os três ficaram na mesma sala. Desejaram
boa sorte entre si e começaram. Edgar olhou de
canto de olho para seus dois recentes companheiros.
Ambos escreviam e rabiscavam sem parar. Pelo jeito puderam
estudar muito e sabiam tudo. O negro sorria, como quem
dissesse: “tá no papo”. O magricela
fazia bico com os lábios e com a maior tranqüilidade
passava de folha em folha. Edgar, ao contrário
dos dois, não lembrava absolutamente de nada.
Passava também de folha em folha, mas era porque
não conseguia responder as questões. Começou
a ter ódio de si mesmo. Sabia que estudara pouco,
mas não o suficiente para tirar zero. “Só
eu mesmo para conseguir uma proeza dessas. Mais um ano
sem faculdade...” – repetia para si mesmo.
Estava já para desistir, quando após
sentir um suave formigamento do lado direito da cabeça,
olha um jovem com pinta de professor entrar pela sala.
Ninguém saiu da posição em que
estava. Nem mesmo os fiscais de prova. Todos continuaram
impassíveis. Tudo indicava que ninguém
ouvira sua entrada, nem mesmo viram a porta abrir.
O tal professor, que tinha algo de familiar, colocou-se
a seu lado e perguntou:
- Oi, Edgar. Lobato, hein! Nome de escritor. Não
era de esquerda, mas fez umas coisas legais. Está
fazendo uma boa prova?
- Estou sim... droga. Está uma porcaria. Estudei
e não lembro nada. Tome, estou desistindo. Não
tem motivo pra eu ficar aqui.
- Epa, epa, epa! Pode ficar sentadinho onde está!
Estou aqui para ajudá-lo, meu jovem. Volte para
a primeira página. Vamos fazer a prova juntos.
Se alguém pudesse ver a cara de espanto de Edgar
naquele momento quase morreria de tanto rir. Nada naquele
dia nada parecia ser normal. Não bastassem as
esquisitices de casa até o local, o jovem corria
o risco de ter a prova confiscada. Como ele poderia
adivinhar que no meio da prova de física aquele
professor maluco ficaria lhe dando cola? Absurdo dos
absurdos! Ele olhou para os lados, mas todos continuavam
agindo como se nada anormal estivesse acontecendo.
- Que é isso, moço! O que está
havendo? – perguntou em voz alta.
Um dos fiscais se levantou e foi até o local
onde ele estava sentado.
- Algum problema? Olha, é melhor você
sentar aqui na frente, senão você prejudica
a si mesmo e a quem estiver perto de você. Você
não quer que sua prova seja anulada, quer?
- Não senhor, mas é que este outro senhor...
– ao olhar para o lado o tal professor sumira.
- Que senhor? Anda, menino, vem aqui pra frente ou
entrega sua prova, vai.
- Mas, mas...
- Vem.
Contrariado, sentindo-se injustiçado e ao mesmo
tempo com aquele tão conhecido medo de estar
enlouquecendo, Edgar resolveu que tentaria mais uma
vez. Não demorou cinco minutos e novamente aquele
formigamento na cabeça veio seguido da voz do
tal professor misterioso:
- Bom, agora que estamos prontos, siga minhas instruções.
Edgar se rendeu. Ou era uma baita sacanagem que estavam
fazendo com ele ou ele realmente estava ficando louco.
De onde aquele maldito professorzinho viera? O que estava
acontecendo ali? Tentou falar alto uma vez mais para
reclamar, mas sua voz não saía. Notou
que o professor estava com dois dedos suavemente encostados
em seu pescoço e fazia sinal de silêncio
com o indicador da outra mão na boca. Ele sorria
brandamente. Sobreveio, então, uma leve sensação
de paz e Edgar aquietou-se. Olhou para o fiscal, que
o fitava, concluindo que seu desassossego se devia a
uma péssima prova e a uma tentativa de cola.
O “professor” disse que nunca fora muito
bom em matemática ou em física, mas que
podia ajudá-lo a não zerar aquelas provas.
Biologia não era seu forte, mas dava para alcançar
um bom resultado. Já em ciências humanas
a coisa era diferente. Disse-lhe para preparar-se para
gabaritar nesses assuntos.
E assim foi. Toda a prova lhe foi ditada passo a passo.
Edgar foi um dos últimos a terminar, sob o olhar
desconfiado do fiscal, que olhara a prova e fez cara
de surpresa pelo fato de estar toda preenchida.
Meio abilolado, Edgar foi saindo sem se dar conta de
onde estava ou do que estava fazendo. Sentia-se sonolento
e seu braço direito estava dormente. Estava muito
mais cansado do que realmente poderia estar. Só
queria dar uma parada e relaxar um pouco. Estava até
então se indagando sobre o que estava acontecendo
e sentia em si aquele espectro de depressão tomar
conta de seu ser. “Eu sou burro mesmo” –
pensou. “Será que alguém viu o que
aconteceu? Pombas, eu não estudei muito, é
verdade, mas ter a prova toda feita por outro cara e
outro cara que não existe é dose pra elefante!
Imagina se eu passar. Claro que será legal, mas
vou continuar sendo uma besta quadrada!"
Seus pensamentos foram interrompidos pela tagarelice
do magricela que veio todo sorridente junto com o aquele
rapaz negro.
- Oi... como é mesmo seu nome? O meu é
Ari. Bom, é Aristóteles. Meu pai é
filósofo, sabe como é... e este aqui é
o Rômulo. Sabia que ele joga capoeira? Legal,
né? Um cara estudioso que pratica esportes...
por isso ele tem cara de malhador. Pensei que era um
daqueles retardados que desenvolvem músculos
e atrofiam o cérebro, quando vi, he, he...
- Oi... sou Edgar. Vocês se deram bem?
- Acho que sim – respondeu Rômulo - Me
dediquei bastante. Pelo jeito o Ari nem precisou de
muito esforço. Os pais dele são professores.
O que houve contigo, cara? Você ficou resmungando
o tempo todo na sala. Pensei que o fiscal ia tirar sua
prova. Você viu a cara dele quando levantou pela
segunda vez?
- Uai, ele só levantou uma vez!
- Duas – confirmou Ari.
- Rapaz, você está mais branco que o Ari
– gracejou Rômulo - O fiscal levantou, deu
meia volta e sentou como se fosse um boneco de marionete.
A turma inteira riu. Ele deve ter ficado puto da vida.
- Eu... eu... – Edgar não sabia o que
dizer. Ficara com medo de ser tachado de débil
mental pelos dois. Mal fazia amigos, talvez nunca mais
viesse a ver aqueles dois outra vez, mas preferia não
dar margem a rejeições.
- Eu estava tentando responder às perguntas.
É meu jeito, sabe. Só sei fazer prova
direito assim.
Os três já estavam indo embora, quando
passaram por uma fotografia num corredor. Era o tal
professor que fizera a prova com Edgar. Ele gelou, depois
ficou feliz, pois ali estava a prova de que não
estava louco como pensava. Perguntou a Ari se sabia
quem era aquele homem da foto, pois fora ele quem o
fizera ficar resmungando durante a prova. Ari deu uma
gargalhada.
- Eu, hein! Tá doido, cara! Aquele ali é
o falecido professor Antônio Pestana. Tive aula
com ele num pré-vestibular. Ele era bastante
conhecido e foi professor de antropologia aqui da UERJ.
Morreu na metade deste ano. Ha, ha, ha, vai ver que
de tão nervoso você acabou fazendo a prova
no além.
Rômulo naquele momento pensou: “Que babaca,
ficar zoando o cara. Ele deve ser meio lelé mesmo.
Bom, cara de bichinha ele tem, mas deve ser bicha e
lelé ”.
- Não ligo pra isso, Rômulo, e não
sou gay – respondeu Edgar, sem perceber que Rômulo
não dissera nada, pelo menos nada saíra
de sua boca – Eu... estava só brincando.
Gosto de fazer esse tipo de pegadinha.
Edgar então entendera porque achava o homem familiar.
Já o havia visto na foto de uma reportagem sobre
cultura e religião, onde ele dissertava sobre
as facetas indígenas e africanas do Brasil. Não
sabia que tinha morrido, o que o assustou sobremaneira.
O que ele viveu na sala da prova foi tão real...
Ele só saberia se havia mesmo uma relação
entre uma coisa e outra quando chegasse o resultado
das provas. Até então, já se considerava
praticamente internado no Pinel.
Rômulo, por sua vez, após ouvir Edgar
revelar aquilo que pensara, levantou a sobrancelha esquerda
numa característica expressão de confusão.
Como ele sabia o que ele tinha pensado? Ou será
que ele falou baixo e o Edgar ouviu? Mas tinha quase
certeza de que pensara e não falara. Rômulo
resolveu não prolongar mais aquelas dúvidas.
Estava com pressa, pois ainda iria encontrar-se com
o grupo de capoeira naquele fim de semana. Deu de ombros
e despediu-se de seus dois estranhíssimos acompanhantes
na porta do campus. Algo estava lhe dizendo que se encontrariam
novamente. Essa sensação o incomodou um
pouco. Era muita maluquice para dois garotos tão
magricelas e ele não estava com vontade de aturar
essas coisas estranhas. Já pensou se os três
acabam caindo na mesma turma?
Rômulo mal sabia que seu papel naquele trio já
estava definido e ele não imaginava o que viria
então.
Parte
1 | Parte
3 |
NOTA AO LEITOR:
Apesar da maior parte desta história tratar-se
de ficção, há nela diversas citações
de fatos e pessoas reais, como Betinho e Renato Russo.
Se você quer saber um pouco mais sobre Herbert
de Souza, o Betinho, clique
aqui. Sobre Renato Russo, a seção
Astro-Síntese tem o primeiro de uma série
de artigos de Paulo Henrique Dantas, que pesquisou a
fundo os fã-clubes e a relação
entre mito, religião e a adoração
sobre personalidades do mundo pop. Conheça esse
trabalho clicando
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