Centro do Rio de Janeiro, setembro de 1984. Junto à estátua em homenagem a Mahatma Gandhi, na Cinelândia, o grupo de teatro Coração Alberto convoca transeuntes. Bumbo, tarol, máscaras, fantasias e muita alegria, que fluía não só através das marchas de carnaval adaptadas (onde as letras pediam, agora, pelo fim da violência), mas também das brincadeiras que o “guerrilheiro da arma azul” aprontava com observadores mais afastados.
Cerca de 50 pessoas já estavam reunidas às 11:30 da manhã para participar. Muitos não tinham a menor idéia do que se passava:
–Ei. Que peça é que vocês vão apresentar? De que grupo de teatro vocês são? É alguma faculdade fazendo manifestação? Ah. Deve ter alguma coisa a ver com o movimento pacifista. Olha só quanta gente de branco.
Na verdade, preparavam-se corações e mentes para mais uma explosão da Bomba da Paz, uma iniciativa bastante original e atrevida, lançada em Quebec, Canadá, por Jean Hudon. Em novembro de 83, Hudon decidiu enviar por Correio, com ajuda de alguns amigos, mais de 1.500 cartas aos meios de comunicação social, líderes religiosos, entidades em defesa da ecologia e organizações pacifistas de todo o mundo. O canadense convidava pessoas dos mais diferentes países a se unirem em pensamento às 15:00 (Meridiano de Greenwich) do dia 21 de dezembro, solstício de inverno no Hemisfério Norte, para, simplesmente, enviar mensagens telepáticas de Amor e Paz para a Humanidade.
–Freqüentemente desvalorizamos a força do pensamento – como explica Jean Hudon. Do mesmo modo que o pânico e a angústia provenientes do medo de uma guerra nuclear podem detonar algumas reações irracionais conducentes ao que procuramos evitar a todo custo, uma firme confiança e otimismo criativo podem abrir o difícil caminho para a Paz.
Com o apoio entusiasta de alguns grupos pacifistas locais, foi criada a Rede Planetária de Pensamento Positivo. A Rede enviou, em fevereiro, mais 2000 cartas, com guia completo de instruções operativas. A meta era formar, em cada cidade, núcleos que se encarregassem de convidar toda a população para que participasse, em cada equinócio, do lançamento dessas Bombas.
Formaram-se objetivos claros: detonar uma Bomba de 10 megamores (10 milhões de pessoas pensando em paz e amor) em 21 de março deste ano; 100 megamores em 21 de junho; 500 megamores em 21 de setembro; e 1000 megamores em 21 de dezembro.
No Rio, a organização do movimento ficou a cargo do Coletivo de Entidades em Defesa da Vida, do qual participam Raízes, COOVIDA, COONATURA, Samyama Grupo de Yoga, Movimento Pacifista Brasileiro, dentre outras.
Carlos Ralph, ex-editor de Rádice e Luta e Prazer, atualmente um dos coordenadores do Raízes, é quem nos fala da Bomba:
–É importante lembrar que essa é uma iniciativa planetária. Exatamente ao meio-dia, milhões de pessoas vão estar fazendo a mesma coisa que a gente, pelo mundo inteiro. Então, é um movimento muito amplo e que visa congregar esse tipo de energia que a gente acredita que pode transformar alguma coisa. Porque é um tipo de energia, veja bem, que funciona independentemente de estar conglomerada. Muita gente, agora, tá lançando a Bomba no trabalho, em casa, em uma porção de lugares. Qualquer um pode participar e difundir, esteja onde estiver, esse pensamento.
Muitos não acreditam que uma manifestação suave, mais tranqüila, mais aquariana, possa trazer a paz. Um atento observador, que só se identificou como sendo Aurélio, 33 anos, é um desses descrentes:
–É interessante. Mas eu acho que conseguir a paz dessa forma é muito difícil. Quem faz a guerra não somos nós, o povo, mas os governantes, que tem o poder na mão. Pra sensibilizar um cara como o nosso querido Reagan, que pra mim é o precursor da 3ª Guerra, pra sensibilizar um cara desses tem que botar um revólver na cabeça da mãe dele, sei lá, uma coisa assim…
Mas Tuíka, presidente da COONATURA, acredita não só na força de manifestações não violentas e suaves, como também no fortalecimento de movimentos dessa ordem:
–Eu tenho muita fé que esse tipo de manifestação vai crescer. Primeiro: o movimento é sazonal; em toda mudança de estação vai ocorrer essa mentalização. Segundo: fazer celebração e festejo em mudança de estação sempre foi hábito e patrimônio da humanidade. Ela tava apenas esquecida. Isso vai ser um tipo de resgate desse hábito através da utopia da paz.
O relógio digital quase em frente informava: 11h55. A grande roda já estava formada. Continuavam os esforços para aglutinar mais e mais gente:
–Vem cá, meu irmão. Vem se unir à gente. Vem irradiar tua energia pela Paz Mundial.
–Que nada. Eu tô é com fome.
Meio-dia. O sino da Igraja Santa Luzia repicou repetidas vezes. A grande roda, de mãos dadas, silenciou. Homens, mulheres, crianças, jeans, paletó e gravata, calça de algodão e linho branco – até o tal mendigo e sua fome, todos juntos. Dos mais variados pontos, ouvem-se, agora, gritos e pedidos: Paz. Os balões de gás, que alguns seguravam, foram soltos. Os gritos passaram a ser ritmados e a roda girava.
–Pela vida. Pela Paz. Hiroshima nunca mais.
–Arroz, feijão. Bomba, não.
Então, era só olhar à volta e ver como todos se emocionaram. Em meio a todo o tumulto que é o Centro do Rio em hora de almoço, apareceram lágrimas, abraços e muita energia. Um vendendor de cafezinho afirmou:
–Eu acho que, pra mim, todos os brasileiros tinham que fazer como a gente fez aqui, hoje.
Tuíka ficou surpreso:
–Puxa. Surpreendeu. A gente não tava com essa expectativa, não. De repente, a coisa cresceu, e cresceu principalmente em qualidade. Aconteceu até com emoção. O sino bater ao meio-dia, sem dúvida, ajudou muito. Pintou um clima alegre. Foi bonito.
O presidente da COONATURA explicou que em Florianópolis, Santa Catarina, a Igreja assumiu todo o movimento, os padres falavam na Bomba da Paz durante os sermões e pediam a participação de todos. Então, todas as Igrejas da cidade decidiram repicar os sinos ao meio-dia, que foi a hora que coube ao Brasil para sintonizar com o resto do mundo. A partir daí, veio a idéia da Igraja Santa Luzia detonar a Bomba com seu sino.
Ralph espera que, até dezembro. O Coletivo de Entidades se fortaleça e possa proporcionar uma Bomba de Verão muito mais tocante e potente que a da primavera:
–É a primeira vez que a gente trabalhou junto. Até 21 de dezembro vamos ver se a gente viabiliza nossos sonhos de uma maneira mais eficiente para colaborar com a paz do mundo.
O que aconteceu depois
O canadense Jean Hudon (foto), nascido em Quebec em 19.6.1952, é um ativista social desde os anos 80. Em 1981 uniu-se a um grupo ambientalista de sua cidade para protestar contra a chuva ácida; no ano seguinte, implementou uma versão local do movimento Iniciativa Planetária. Em 1983 desenvolveu a ideia da Bomba da Paz. Nos anos seguintes, escreveu livros e continuou idealizando e liderando iniciativas de natureza pacifista e ambientalista. Em 1993 filiou-se ao Partido Verde Canadense e, mais tarde, ao Partido Québécois, onde foi encarregado de desenvolver a plataforma para questões ambientais. Em 1997 foi co-fundador de um movimento chamado Earth Rainbow Network, uma rede informações sobre consciência espiritual e ambiental. Nos últimos anos, vem-se dedicando ao Global Meditation Focos Group, um movimento de meditação voltado para a assistência espiritual e para a paz.
A Bomba da Paz não teve continuidade no Brasil, mas sua concepção – a ideia de um happening em local público acontecendo sincronicamente em diversas partes do mundo – inspirou outras manifestações pacifistas em anos posteriores.