RIO
CONSTELAR |
A
CONSTRUÇÃO Paulo Henrique Dantas |
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As citações acima, todas
a respeito de grandes ídolos da música pop, expõem
o fascínio que tais artistas são capazes de exercer,
mesmo depois de mortos, sobre uma legião de admiradores.
E como conseguem manter um público ávido por qualquer
novidade a seu respeito, passando incólumes pelas diversas
tendências que a indústria cultural ano a ano lança
no mercado. A sociedade pós-industrial, através
de seus veículos de comunicação de massa,
tem o poder de transformar o indivíduo comum em alguém
notório da noite para o dia. Cria seus heróis e
vilões. E, em um caráter que muitas vezes beira
o sagrado, delega a alguns indivíduos o espaço de
protagonista de um mito. Figuras distintas, que extrapolam seu
próprio universo, e que através da morte, alcançam
a imortalidade. Artista e obra são então relembrados
de geração em geração, entes inseparáveis
para um séqüito sempre crescente de fiéis.
A idéia fundamental do presente trabalho será discutir o processo de construção destes novos mitos ligados à indústria cultural. O foco se encontra em sua plenitude voltado para o universo do gênero musical denominado “rock”, consagrado mundialmente a partir dos Estados Unidos, no final dos anos 50. Dito isto, creio ser necessário alguns comentários. O primeiro, diz respeito ao próprio termo (“rock”), que pode sugerir uma idéia muito vaga do objeto analisado. Atualmente falar em gêneros musicais, requer alguns cuidados, devido a uma gama considerável de estilos e subdivisões “criados” pela indústria cultural. E provavelmente o rock se inclui entre os gêneros possuidores do maior número de estilos ou divisões. Ouvimos falar em “rock progressivo”, “punk rock”, “rock pesado”, “soft rock”, entre outros tantos, que qualquer definição pode soar, a priori, imprecisa. Situar brevemente o surgimento deste gênero musical em seu contexto histórico, destacando alguns elementos, pode contribuir para atenuar estas imprecisões. Desde sua origem afro-americana, no blues negro interpretado pelos descendentes de escravos na América do Norte(2), ao período áureo nos anos 60 e 70, o rock pode ser definido como um fenômeno exclusivo dos grandes públicos, ou seja, das massas. Falar do surgimento do rock é falar também em blues. Mas se o rock nasce como uma expressão da alegria juvenil nos anos do pós-guerra, o blues tem origem na dor infligida ao corpo e à alma de populações negras trazidas à força para as plantações do sul dos Estados Unidos. Gérard Herzhaft, em seu livro intitulado Blues, diz a respeito de uma definição para o gênero: “Uma definição completa e exata do blues é difícil, pois se ele é (...) um gênero musical, foi também muito mais que isso para o povo negro americano que o criou.”(1989, p.11) E cita um trecho de uma canção antiga, “Walkin’ blues”: “Alguns lhe dirão que este blues atormentado não é tão terrível, mas é o pior sentimento que um homem pode jamais experimentar.”(Idem, p.12), para então falar sobre o primeiro registro do termo:
O blues enquanto gênero musical será a expressão maior deste sentimento de tristeza registrado no diário de Charlotte Forten. E a indústria fonográfica dos anos 20, ávida por lançar sucessos para um mercado cada vez mais promissor, não demoraria a prestar atenção em um número cada vez maior de negros que empunhavam banjos e guitarras acústicas, fazendo sucesso em bares e ruas de Chicago e do Harlem. Entoando canções impregnadas de tristeza, estes artistas traziam experiências próprias que, colocadas como manifestação musical, logo encontraram um público fiel entre indivíduos com histórias semelhantes. Muitos deles ex-escravos ou descendentes.
Posteriormente, com a introdução da guitarra elétrica nas bandas de blues, o gênero foi dando origem a novos estilos, onde a tristeza era deixada um pouco de lado. O jump band jazz(3) e o rhythm blues(4) são alguns exemplos, e dariam passagem para um novo gênero, que, a princípio dominado por artistas negros, logo receberia a contribuição de músicos brancos. Este gênero iria ficar conhecido como rock and roll, e coincidiria com um período de efervescência do consumo nos países capitalistas. As letras tristes do blues, populares à época da Depressão, dariam lugar ao convite à diversão:
Assim como em relação ao blues, a indústria fonográfica logo investirá em músicos do novo gênero que surgia, e que de imediato receberia atenção da juventude, ávida por diversão. Fats Domino, Chuck Berry, Little Richards, entre outros, serão os líderes deste movimento musical, que assim como atraíam os jovens, causavam repulsa nos cidadãos conservadores. Estes não escondiam a insatisfação diante do sucesso de artistas negros dançando sensualmente para um público formado em sua grande maioria pela juventude branca. Não à toa, a indústria fonográfica conduziria muitas destas carreiras como se preparasse o terreno para um artista que pudesse ser aceito pelos pais de família incomodados àquela altura com imagens das simulações de Little Richards fazendo sexo com seu piano. Este artista será Elvis Presley.
A carreira de Elvis será conduzida de forma a agradar estes setores conservadores: ele manterá a imagem de um jovem de família, sempre aparecendo ao lado dos pais, e prestará serviço militar no auge da carreira, numa demonstração (planejada pelo empresário) de patriotismo que só serviria para aumentar seu séqüito de fãs, neste período obrigados a matar as saudades com a série de longas-metragens estrelados pelo ídolo. Todos filmados para serem exibidos enquanto o cantor servia na Alemanha. Mesmo com estes cuidados, a ala conservadora da sociedade norte-americana não hesitou em se mostrar incomodada com o rebolado de Elvis, o que obrigaria os canais de televisão a mostrá-lo apenas da cintura para cima. Tal situação serve para mostrar como rock e polêmica foram parceiros inseparáveis desde os primórdios. Durante os anos seguintes esta ligação ganharia contornos cada vez mais amplos: bebedeiras, destruição de quartos de hotéis, acidentes automobilísticos, prisão por porte de drogas, brigas conjugais, overdoses, tumultos em apresentações, são todas situações que, exploradas pela indústria cultural, ficaram como uma marca registrada deste gênero musical. O uso de drogas passou a ser uma das categorias mais associadas à imagem do músico de rock. A banda inglesa Rolling Stones, que surge nos anos 60 como uma alternativa mal comportada aos Beatles, dará talvez a maior contribuição na construção desta imagem do roqueiro “cabeludo”, “sujo” e “drogado”. As freqüentes prisões por posse de drogas, a morte misteriosa de Brian Jones(5), o guitarrista que disputava com o cantor Mick Jagger a liderança do grupo, e uma declarada atração por temas satânicos, serão o combustível essencial nesta construção, que servirá como modelo para inúmeras trajetórias de artistas deste gênero musical(6). O surgimento de uma leva de artistas de São Francisco, também nos anos 60, acrescentaria os elementos finais a esta imagem do artista roqueiro mantida até hoje, também estabelecendo o discurso midiático que ligaria o músico a algum lugar(7). Janis Joplin, Jefferson Airplane, Grateful Dead, entre outros, explorariam ao máximo esta união de música com o uso de drogas. As mortes por overdose, neste momento, passam a fazer parte deste universo. Ainda que o rock tenha nascido como um veículo de diversão, e com o tempo dado origem a tantos estilos diferentes, este não será um assunto tratado nestas páginas. A vertente enfatizada neste trabalho será a do lado mais transgressor deste gênero musical, onde a morte parece caminhar lado a lado com os artistas. Dito em outras palavras: o rock aqui analisado nada tem de divertido. Tendo feito esta observação, creio ser necessário destacar mais dois pontos, para que não pairem dúvidas a respeito desta análise. O primeiro é bem simples: em nenhum momento estarei preocupado com discussões a respeito da qualidade ou não da obra dos artistas aqui enfatizados. Quando houver a necessidade de me referir a qualquer trabalho por eles realizado, será no intuito apenas de explicitar uma argumentação de cunho teórico. E o segundo ponto diz respeito aos artistas escolhidos para a exposição dos elementos constituintes do processo de mitificação. Estes artistas são o músico norte-americano Kurt Cobain, líder da banda Nirvana, e o compositor e cantor brasileiro Renato Russo: ambos precocemente mortos(8), e com trajetórias que possuem os ingredientes que os colocam como representantes da imagem de roqueiro citada, além de os alçar a categorias de protagonistas de seus próprios mitos(9). Pensar o processo de “construção” da trajetória destes artistas como um modelo de mito urbano da sociedade pós-industrial é o objetivo deste trabalho. Para isso é importante uma revisão das análises sobre indústria cultural e mitologia, o que será feito a seguir. A indústria cultural:
O conceito de indústria cultural, elaborado por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer e empregado pela primeira vez no livro Dialektik der Aufklärung (Dialética do Esclarecimento), de 1947, foi criado com o intuito de rebater um outro conceito, o de cultura de massas. Para os autores haveria limitações gritantes neste último, que deixava entendido um caráter de espontaneidade às próprias massas, como se elas possuíssem algum domínio ou participação ativa no processo. Em um texto posterior, intitulado “A indústria cultural”, Adorno procura evidenciar esta posição, destacando a impossibilidade das massas desempenharem tal papel, diante da força com que se movem os interesses capitalistas por trás de toda produção cultural. Seria o produto, anteriormente adaptado ao consumo das massas, que passaria agora a determinar este consumo. Inverte-se a antiga situação, o que não significa que a indústria cultural passa a criar novas necessidades, mas sim que se incumbe de organizá-las, de modo a manter o consumidor aprisionado eternamente a esta condição. Adorno identifica na sociedade pós-industrial um processo de padronização no consumo, nos gostos, nas preferências, onde tudo é engolido pelo caráter da mercadoria. Não é que um disco ou um livro, quando concluídos, transformam-se em mercadoria - eles já nascem mercadorias, sua existência está vinculada exclusivamente a este fato. E deve-se levar em consideração, lembra o autor, o termo “indústria” não apenas em seu sentido literal, mas em seus aspectos relacionados à estandardização e à racionalização das técnicas de distribuição. Cada mercadoria cultural é projetada, elaborada e direcionada a um público específico, que a ele chega como uma grande novidade:
Em um mundo pretensamente caótico
a indústria cultural seria vista pelos seus representantes
como um importante fator de ordem. Através de produtos
que pregam a liberdade e o indivíduo como alguém
capaz de adquirir o que deseja, fica estabelecida a vitória
do conformismo diante da consciência. Como, de acordo com
Adorno, seria a formação de indivíduos autônomos
a condição elementar para a constituição
de uma sociedade democrática, a indústria cultural
se afirma enquanto instrumento das classes dirigentes, que têm
como maior desejo justamente manter as multidões sempre
condicionadas, portanto, incapazes de modificar sua realidade.
A ordem social se mantém, e todos os gostos, sejam eles
no vestuário, no esporte, na música, em qualquer
manifestação cultural, já se encontram previamente
relacionados a uma decisão vinda de cima.
A análise de outros
autores não seria menos amarga que a de Adorno. Robert Merton
e Paul Lazarsfeld, ambos da escola sociológica norte-americana,
escrevendo praticamente no mesmo momento que os frankfurtianos,
também não viam a chamada indústria cultural
com bons olhos. Autores de tradição funcionalista,
Merton e Lazarseld, no texto “Comunicação de
massa, gosto popular e a organização da ação
social”, de 1948, utilizam-se do termo mass media, para denominar
o que seria o produto desta indústria cultural. Pesquisas
que procuravam quantificar o número de pessoas que gastavam
seu tempo com determinados meios de comunicação de
massa, como o rádio, por exemplo, no entendimento deles teriam
pouca importância. Não se tratava de saber quantas
pessoas estavam ouvindo programas radiofônicos na hora de
almoço, mas sim descobrir os efeitos de tal audição
nestas pessoas. E este era um fenômeno de grande alcance na
sociedade norte-americana, cada vez mais industrializada:
Numa visão puramente elitista, Merton e Lazarsfeld demonstram neste trabalho todo seu preconceito contra manifestações de cunho popular, que conquistariam gradualmente maior espaço através dos meios de comunicação. E vão atribuir a má qualidade das produções ao acesso crescente das camadas populares a setores que antes lhes eram proibidos. O processo de popularização da educação, que consegue alfabetizar um número elevado de pessoas, não daria conta de “refinar” seus gostos. Este indivíduo alfabetizado, segundo estes autores, seria capaz de ler um romance até o final, no entanto, sem compreendê-lo. O surgimento desta massa ávida por produtos culturais, ou os mass media, culminaria num declínio cada vez maior do gosto popular. “As platéias de massa provavelmente incluem uma proporção maior de pessoas com padrões estéticos desenvolvidos, porém ela é tragada pela grande massa que constitui a nova e inculta platéia de arte” (Idem, p.111). Ainda que haja diferenças na linha que conduz o pensamento dos autores acima citados, penso que a forma com que ambos descrevem o processo de expansão das manifestações culturais, seja através dos conceitos “indústria cultural” ou “mass media” carregam consigo um grande teor de pessimismo. Se destacarmos a massa vista por Adorno como um objeto das grandes empresas, jamais como um sujeito do processo, e a massa analisada por Merton e Lazarsfeld, grande motivadora da queda do nível das produções culturais, portanto, ausente de senso crítico, incapaz de ação modificadora, esta também emerge com força em um objeto inerte. É óbvio que não podemos deixar de lado o contexto em que as obras destes autores foram elaboradas, principalmente Adorno e Horkheimer, que como outros companheiros da Escola de Frankfurt, viram-se forçados ao exílio nos Estados Unidos para escapar às forças nazistas de Hitler. É como diz Renato Ortiz: “o pessimismo frankfurtiano se liga, de algum modo, à conjuntura política dos anos 30. A presença do fascismo influi no tom da análise”(1986:44)(10). E Merton e Lazarsfeld, ansiosos por definirem as conseqüências sociais dos mass media, pressupõem que a sociedade como um todo tenha a necessidade, consciente, de ser politicamente ativa, daí atribuírem a estes (os mass media) a manutenção da massa inerte e alienada. Considerado um dos expoentes da Escola de Frankfurt, assim como Adorno e Horkheimer, Walter Benjamin já não teria uma visão tão negativa em relação à indústria cultural. Sua análise, de certa forma, vai em sentido contrário à de seus companheiros, e ele não teria hesitado, por exemplo, em dar sua contribuição a jornais e programas de rádio(11), tratando de temas os mais variados. Benjamin via o alcance às produções culturais por parte das camadas populares como algo positivo e democrático. Edvaldo Souza Couto, em seu artigo “A Escola de Frankfurt e a dupla face da cultura” diz que:
Na análise de Benjamin, a obra de arte, com o processo de dominação tecnológica, perderia sua função ritual, predominando agora o caráter de algo a ser exposto. Antes relegada ao interior dos templos e igrejas, a escultura dos deuses e santos ganha espaço na sala de visitas. “À medida que as obras de arte se emancipam de seu uso ritual, tornam-se mais numerosas as ocasiões de serem expostas” (1982, p.219). Ao contrário de Adorno, Benjamin vê este processo como um sinal de ampliação dos ideais democráticos: “a técnica pode transportar a reprodução para situações nas quais o próprio original jamais poderia se encontrar. Sob a forma de foto ou de disco, ela permite sobretudo aproximar a obra do espectador e do ouvinte.” (Idem, p.213) Não se trata de afirmar que o fenômeno da reprodutibilidade imprimiu à obra de arte o caráter de mercadoria, mas que ele apenas expandiu o seu mercado, antes restrito ao clero e à burguesia. A arte, portanto, passa a ser acessível a um número cada vez maior de pessoas; o que era elitista converte-se em popular. E este processo, na visão de Benjamin, era irreversível. Considerando a possibilidade de trabalhar com os mass media, Umberto Eco irá discordar da corrente de pensamento a qual denomina “apocalíptica” (os frankfurtianos seriam os principais representantes desta corrente), que veria tais produtos como material degradado. A questão para Eco não era posicionar-se de um lado ou de outro (daí o título de seu livro Apocalípticos e integrados): os mass media, quer se queira ou não, eram uma realidade inerente à sociedade pós-industrial, e sendo assim, nenhum fenômeno poderia ser excluído como objeto de análise, dentro da antiga dicotomia “erudito” e “popular”:
E completando, Eco dirá que “o sistema de condicionamentos denominado indústria cultural não apresenta a cômoda possibilidade de dois níveis independentes, um da comunicação de massa, outro da elaboração aristocrática que a precede sem ser por ela condicionada. (Idem: p.15). O indivíduo em sua análise não seria aquele ser inerte de Adorno e Horkheimer, mas alguém que irá exercer um papel de co-responsável em todo este processo. “Essas massas impuseram um ethos próprio, fizeram valer, em diversos períodos históricos, exigências particulares, puseram em circulação uma linguagem própria, isto é, elaboraram propostas saídas de baixo”(Ibidem, p.24) Ainda que os modelos culturais adotados pelas massas sejam os modelos burgueses, serão estes mantidos dentro de uma “expressão autônoma própria”. Eco sugere para lidar com tal situação o termo “civilização de massa”, onde o indivíduo seria um consumidor ativo de mensagens transmitidas pelas produções culturais em um movimento para lá de intenso, sempre determinado pelas leis da oferta e da procura. É evidente que dos tempos em que estes autores realizaram suas análises, aos dias de hoje, muita coisa mudou. Ainda que a indústria cultural, no sentido de Adorno, continue a exercer um papel ativo na padronização das mentes da grande maioria dos grupos sociais(12), outros campos se abriram para a realização de produtos culturais. A possibilidade de um artista, hoje, ter o próprio estúdio em seu apartamento, produzir e comercializar seus cds via internet, rompendo com uma antiga relação - produtor, empresário, contrato, gravadora, etc – seria algo impensável décadas atrás. O fenômeno da troca de músicas em formato de arquivos eletrônicos, também via internet, é o atual fantasma a assombrar as grandes empresas do ramo. E, assim como Benjamin já previa em relação à reprodutibilidade das obras de arte, este também parece ser um fenômeno irreversível, de caráter altamente democrático, que abre a um grande número de pessoas um universo de produções antes praticamente inacessíveis(13). No entanto, é importante frisar que estes fenômenos não representam uma diminuição do poder da indústria cultural, pois se tratam, sim, de desdobramentos de um modelo que ainda não deu sinais de dobrar os joelhos. E que continua atendendo, de maneira inequívoca, às necessidades dos grupos sociais, em seus múltiplos aspectos. A
morte no auge:
Vale recordar que Cobain havia se apresentado
no Brasil (em São Paulo e no Rio de Janeiro) em janeiro
de 1993, no Hollywood Rock Festival. Durante a entrevista dada
pelo artista à época, ao jornal citado, era visível
seu estado de saúde precário: “calafrios em
pleno verão carioca provocados por crise de privação
da heroína”, dizia a matéria. A pergunta que
a mídia brasileira fez a alguns de nossos artistas após
a notícia do suicídio era se Cobain poderia ser
considerado um mito, se ele entraria para a história, assim
como outros artistas, também mortos em circunstâncias
trágicas. No mundo do rock, claro, unanimidade nunca foi
a tônica. Alguns diziam acreditar na dimensão da
obra de Cobain, prevendo um capítulo reservado ao músico
na história do gênero. Outros não enxergavam
tal relevância, criticando o espaço dado à
questão. Gostaria de destacar uma entre tantas opiniões
para dar prosseguimento a este texto: a de Léo Jaime, compositor
de antigos sucessos e atualmente dedicado à carreira jornalística.
Léo Jaime dizia que “Cobain, Hendrix, Janis Joplin
não são mitos. Apenas artistas bem-sucedidos que
morreram cedo. Lennon era um mito, deixou uma obra completa.”
Penso que esta resposta é um excelente ponto de partida
para discutirmos a questão do mito na sociedade moderna
ocidental.
Junito de Souza Brandão
em Mitologia grega analisa o mito do herói grego e dá
uma definição em que destaca elementos que servem
na elaboração de um modelo:
Encontra-se com facilidade
no modelo acima, elementos que se encaixariam perfeitamente na figura
do ídolo de rock da sociedade pós-industrial. Sua
condição sobre-humana, por exemplo, tão alardeada
pela mídia: não existe a preocupação
em saber se tudo o que é dito a respeito do ídolo
tem relação ou não com a realidade. Feitos
simplórios do dia a dia ganham dimensões de grandes
descobertas. Em biografias de músicos, por exemplo, é
comum encontrar relatos chamando atenção para a pouca
idade com que aprenderam a tocar seus respectivos instrumentos:
“Quando [Kurt Cobain] estava com quatro anos, depois de voltar
de um passeio até o parque com Meri, [uma tia] sentou-se
ao piano e fez uma canção rudimentar sobre a aventura.
‘Fiquei simplesmente atônita’, lembrou Meri. ‘Eu
devia ter ligado o gravador, provavelmente foi sua primeira canção’.”(Cross,
2002, p.18) Relatos como esse têm espaço em praticamente
todas as biografias publicadas sobre artistas, onde se destacam
também a pouca atenção dos próximos
diante da “genialidade precoce”, o sofrimento familiar,
a luta para chegar à sua condição de ídolo.
Figuras transgressoras, como o herói grego, a elas quase
tudo é permitido: do abuso de drogas às orgias sexuais,
dos acidentes de carro por excesso de velocidade a agressões
aos próprios fãs. Trajetória de contrastes:
sucesso na vida pública, fracasso na vida privada. A felicidade
nas relações pessoais geralmente não é
enfatizada pela indústria cultural, e ainda que isso aconteça,
seu espaço é sempre reduzido diante de dramas familiares,
amorosos, do próprio contato com as drogas. Nesta reedição
da vida dos artistas, é fácil perceber que os elementos
destacados não variam muito.
Pensar a idéia de mito nos centros urbanos já foi tarefa de alguns autores. Umberto Eco, autor já citado anteriormente, analisou o consumo de revistas de histórias em quadrinhos, e mostrou como o processo de identificação do público com determinados super-heróis pode atingir contornos de veneração explícita. Em “O mito de Superman” Eco define o processo de mitificação como uma “simbolização incônscia, identificação do objeto com uma soma de finalidades nem sempre racionalizáveis, projeção na imagem de tendências, aspirações e temores particularmente emergentes num indivíduo, numa comunidade, em toda uma época histórica”(1979, p.239). Os super-heróis representariam, dentro desta perspectiva, os anseios do “leitor médio”, o indivíduo comum que almeja um dia ter os seus sonhos realizados. No cotidiano, Clark Kent; nos sonhos, Superman.
São os ídolos da sociedade pós-industrial então vistos como heróis, deuses ou semideuses. Edgar Morin, analisando o processo de construção dos mitos de Hollywood em As estrelas – mito e sedução no cinema, define o mito numa linha parecida:
Assim como Eco, Morin destaca
o papel dos anseios individuais e coletivos na idolatria aos artistas
cinematográficos. As estrelas de cinema, “heroicizadas,
divinizadas, (...) são mais do que objetos de admiração.
São também motivo de culto. Constitui ao seu redor
um embrião de religião” (Idem, p.50) Atento
ao papel da juventude neste processo, Morin reconhece em James Dean
o modelo do herói adolescente que, uma vez morto, renascerá
mais tarde no rock.
A morte trágica de Dean o alça ao grupo seleto dos imortais, personagens únicos da sociedade pós-industrial. Mas algo chama atenção: ele era “pouco mais do que um garoto ao morrer, aos 24 anos, em uma auto-estrada perto de Paso Robles, na Califórnia, em 30 de setembro de 1955. Até sua morte, fizera três filmes – Vidas amargas, Juventude transviada e Assim caminha a humanidade, e apenas o primeiro deles havia sido lançado”. (Martinetti, 1995, p.11). Como pode um ator, morto aos 24 anos e tendo feito apenas três filmes em sua breve carreira, ser lembrado com tanta veneração até os dias de hoje? Raphael Patai em sua obra O mito e o homem moderno, faz uma análise reunindo vários mitos, como Hércules, Mickey Mouse, Che Guevara e, claro, James Dean. Nestes dois últimos, o elemento da morte precoce surge como possível resposta:
Seria neste sentido, inverter a ordem biológica: morrer para continuar vivendo. O ator Humprhey Bogart uma vez disse a respeito de James Dean: “Dean morreu na hora certa. Ele deixou para trás um mito. Se não tivesse morrido, nunca teria sido capaz de viver à altura de sua imagem”(Martinetti, 1995, p.12). Impossível saber se determinados artistas continuariam desfrutando de popularidade se ainda fossem vivos. Porém, não resta dúvida de que a morte exerce um papel determinante no processo de mitificação conduzido pela indústria cultural(14). Uma vez que não há registro de determinadas situações sempre lembradas como grandes feitos do artista idolatrado, o que é dito assume caráter de realidade, independente de ter acontecido ou não.
São histórias contadas por quem, de uma forma ou de outra, conviveu com o ídolo, ainda que apenas como um sonho não realizado. E tais histórias são transmitidas como se tivessem vida própria. Vão de um lado a outro, “editadas” pela indústria cultural e pelos próprios fãs. Claude Lévi-Strauss trabalhará com esta idéia do mito que é contado através dos grupos sociais, e considerará a “história narrada” a base essencial de todos os mitos.
O autor também atenta, em El hombre desnudo, o último volume de sua obra Mitológicas, para o fato da origem do mito se dar em um nível individual, mas que para condicionar-se enquanto tal, este nível deve ser ultrapassado:
O mito, portanto, sobrepõe-se a atributos individuais, e torna-se independente, para sua condição, do elemento original. Não importa onde ou como se iniciou, mas sim que ele não se prende mais a um lugar ou tempo originais. É neste sentido que Lévi-Strauss dirá que “todo mito é por natureza uma tradução” (Idem, p.582), importando sempre reconhecer que a história narrada pelo mito não pode ser tomada por partes, ou lidas como um artigo de jornal ou revista.
Lévi-Strauss conseguiu, num espaço de vinte anos, recolher narrativas míticas de várias partes do mundo, narrativas estas já consolidadas na tradição de suas populações, que contam histórias de um período distante. Na sociedade pós-industrial uma análise mitológica não poderia ser muito diferente, não havendo como pensar o mito no exato momento em que os fatos transcorrem. Pode-se, no máximo, vislumbrar uma potencialidade, que só o tempo se incumbirá de confirmar. Inconclusão Estudar detalhadamente todos os elementos deste processo de mitificação seria, portanto, um caminho para compreender os motivos pelos quais continuamos até hoje consumindo produtos de determinados artistas mortos há décadas, enquanto a outros reservamos o esquecimento. O que faz certos artistas continuarem despertando interesse até hoje? Por que alguns cantores têm “direito” a programas especiais de televisão, reportagens, publicações e biografias, enquanto muitos, sequer são lembrados, seja pelo público ou pela indústria cultural? Por que uma coletânea dos Beatles, com músicas para lá de conhecidas, quando lançada, fica semanas como o álbum mais vendido? O que faz com que adolescentes nas grandes cidades brasileiras adorem desfilar com camisetas estampando o rosto de Renato Russo, se enquanto este artista vivia o auge do seu sucesso estes mesmos adolescentes eram ainda embalados no colo por seus pais? O discurso em favor da qualidade da obra, assim como um possível favorecimento da indústria cultural, não parecem ser explicações satisfatórias. É notório o fato de que entre um sem número de artistas esquecidos na história, existem exímios músicos, virtuoses de seus instrumentos ou vozes. Assim como muitos que tanto espaço tiveram na mídia, hoje enfrentam dificuldades na luta pela sobrevivência(15). O grande sociólogo Norbert Elias diz ser esta uma das grandes questões não respondidas da sociedade pós-industrial:
Sendo o mito, como nos ensina Lévi-Strauss, o conjunto de todas as suas versões, está excluída a questão sobre se o que se narra seria verdade ou não. Creio ser este um dado fundamental para uma análise desta mitologia em torno de alguns artistas da sociedade pós-industrial, onde os veículos de comunicação de massa, a cada momento têm uma nova história a contar, de um caso que na maioria das vezes, nada possui de novo. Versões de uma mesma história, que passam de boca em boca através do público consumidor: afinal, Kurt Cobain realmente cometeu suicídio ou foi assassinado? Nos EUA, livros são publicados tentando provar que o músico teria sido assassinado a mando de sua esposa, Courtney Love. O detetive contratado por ela para localizar Cobain (que havia fugido de uma clínica para desintoxicação dias antes de sua morte) possui uma página na internet onde apresenta suas impressões do caso. Contrariando informações de médicos, afirma que seria impossível Cobain ter conseguido apertar o gatilho de sua arma, depois da dose de heroína que consumiu. Detalhe: o cantor era conhecido também pela sua impressionante capacidade de tomar doses cavalares de heroína. Médicos já mostraram casos de pessoas que tomaram o dobro da dose de Cobain e se comportavam normalmente. O detetive também insiste em que não havia impressões digitais na arma de Cobain, além do seu cartão de crédito ter sido utilizado no período em que ele já estava morto. O motivo para sua luta em provar tal teoria é curioso: encerrar a onda de suicídios entre jovens americanos e europeus, que teve início com a notícia da morte de Cobain. Para a análise aqui proposta, não importa o motivo real da sua morte, mas sim, como e porque estas histórias são contadas, o que elas dizem a respeito dos grupos sociais pelos quais “se falam”. E não se deve cobrar dos mitos que tragam uma chave explicativa que corresponda à realidade dos fatos. Se todas estas histórias pudessem ser comprovadas, o mito, enquanto tal estaria anulado. Nesta lógica peculiar, mais vale pensar nas possibilidades de um fato ter acontecido como realmente é narrado, pois para o admirador não há nada mais frustrante que descobrir que seu ídolo pode ser um indivíduo com hábitos comuns. Não deixa de ser inesquecível a cena de inúmeros jovens desapontados, na noite de 19 de janeiro de 1985, ao fim da apresentação do cantor inglês Ozzy Osbourne, no Festival Rock in Rio. Além de não ter feito nada com uma galinha atirada viva no palco, Ozzy não cansou de repetir ao término das canções a frase “God bless you” (Deus abençoe vocês).(16) Rio de Janeiro, 19.05.2004
NOTAS: 1. Ainda que hoje em dia
seja comum ouvirmos de alguns artistas ditos “independentes”,
discursos contra o universo da indústria cultural (alguns
grupos de rap, como Racionais Mcs, de São Paulo, por exemplo),
tal prática será sempre conduzida, de alguma forma,
por esta indústria. Negar-se como parte deste processo
apenas serve como um elemento a mais na construção
da sua trajetória, e tal fato não deixará
de ser explorado pela indústria cultural. 3. “O jump band
jazz (…) emergiu no rastro do fim da era das grandes bandas
no final da Segunda Guerra Mundial; um estilo animado com um conjunto
formado por cinco ou seis instrumentos e um saxofone proeminente.
O tamanho escondia seu poder; essa pequena banda de jazz fazia
realmente dançar. A batida geralmente suingada e os solos
de saxofone foram dois elementos que jovens músicos trouxeram
do jazz para o R&B [rhythm blues]”. (Friendlander, 2003,
p.34) 14. A notícia da morte de um ídolo costuma ser sucedida por uma busca desenfreada de parte dos seus admiradores por produtos que tragam seu nome, enquanto a indústria cultural tenta de todas as formas suprir esta demanda. Em se tratando da indústria fonográfica, os álbuns desaparecem das prateleiras das lojas, as redações das revistas especializadas ficam abarrotadas de cartas com o lamento dos fãs, as rádios repetem seguidamente os maiores sucessos. Mas neste ponto algo também chama atenção: ainda que a morte de um artista recordista de vendas possa representar um choque inicial para a empresa que o tinha como contratado, ficam os representantes desta com um controle mais amplo sobre a carreira do artista. As chamadas “sobras de estúdio”, gravações renegadas pelos músicos, ganham status de grande novidade: uma única canção é veiculada nas rádios e trilhas de novela, para então ser lançada em um álbum repleto de sucessos antigos. Este um excelente filão para a indústria fonográfica, ao lado dos chamados “discos ao vivo”. 15. Em todos os setores da indústria cultural este é um acontecimento comum: o ostracismo que se segue a muitas carreiras de grande sucesso. São atores e atrizes que não conseguem um papel mínimo em uma nova produção; músicos que na juventude eram venerados como reis, e hoje, tocam os antigos sucessos em pequenos bares - todos fenômenos comuns. 16. Ozzy Osbourne ainda hoje é um dos mais populares cantores de rock, tendo se consagrado no grupo Black Sabbath no início dos anos 70, até partir para um bem-sucedida carreira solo. Cantando músicas com temas relacionados ao satanismo e à magia negra, a veneração a Ozzy aumentaria ainda mais depois dele ter supostamente arrancado com os dentes a cabeça de um morcego vivo durante um show. Apesar desta “história” nunca ter sido comprovada, e do cantor dizer em entrevistas não se lembrar do fato, a mídia não cansa de se referir a ele como “o comedor de morcegos”. Referências bibliográficas ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max.
“A industria cultural”. In: COHN, Gabriel (Org.) Comunicação
e indústria cultural. São Paulo, Ed. Nacional, 1975. |