- Renato
Russo e a Legião Urbana no Contexto Cultural Brasileiro
- Conclusão
Paulo Henrique Dantas - fale
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HISTÓRIAS DE FÃS
“Como quase todos os jovens dos Estados Unidos,
eu gostava de Elvis, embora não com o fanatismo
de muitas de minhas amigas na Escola Secundária
Del Valley. Todas tinham camisas de Elvis, chapéus
de Elvis e meias soquetes de Elvis, além de batons
em cores como ‘Hound dog orange’ e ‘Hearthbreak
Pink’. Elvis estava em toda parte, nas figurinhas
de goma de mascar e em bermudas, em diários e carteiras,
em fotografias que brilhavam no escuro. Os garotos na
escola começavam a tentar parecer com ele, com
os cabelos penteados para trás, com muita gomalina,
costeletas compridas e golas levantadas. Havia uma garota
tão louca por Elvis que dirigia o seu fã-clube
local. Ela disse que eu poderia ingressar por 25 cents,
o preço de um livro que encomendara para mim pelo
reembolso postal. Ao recebê-lo, fiquei chocada ao
deparar com uma fotografia de Elvis autografando os seios
de duas garotas, um ato sem precedentes na ocasião.
E depois o vi na televisão, no Stage Show, de Jimmy
e Tommy Dorsey. Ele era sensual e bonito, olhos profundos
e mediativos, lábios espichados, sorriso insinuante.
Ele avançou para o microfone, abriu as pernas,
inclinou-se para trás e dedilhou a guitarra. Pôs-se
a cantar com extrema confiança, remexendo o corpo
numa sensualidade desenfreada. Contra a vontade, eu em
senti atraída.”
O depoimento acima descreve os primeiros contatos de
Priscilla Beaulieu, uma jovem americana de quatorze anos
à época, com o ídolo Elvis Presley.
Num caso atípico nos relacionamentos entre fã
e ídolo, Priscilla se casaria mais tarde com Elvis,
e teriam uma vida em comum durante dezoito anos. É
interessante perceber como o comportamento do cantor a
chocava e ao mesmo tempo a atraía, “contra
a vontade”. Dançar da forma como ele dançava
e dar autógrafos nos seios das fãs eram
motivo para ataques de setores da conservadora sociedade
americana, que viam no cantor um expoente da rebeldia
juvenil, uma verdadeira ameaça aos valores tradicionais
daquele período. O rebolado de Elvis, proibido
de ser mostrado na televisão (os programas só
deveriam focalizá-lo da cintura para cima), renderia-lhe
o apelido de Elvis, the Pelvis, e faria sua fama
ultrapassar as fronteiras dos Estados Unidos. Hoje, vinte
e cinco anos após sua morte, Elvis ainda é
adorado em boa parte do mundo, e a mansão em que
viveu se transformou num verdadeiro santuário,
visitado diariamente por centenas de pessoas.
Na música brasileira ainda não tivemos
um artista que tenha alcançado o sucesso internacional
da forma que Elvis alcançou. Produtos com a sua
“marca” até hoje movimentam, de forma
impressionante, milhões de dólares em todo
o mundo. São admiradores de todas as idades possíveis,
que ajudam a perpetuar a obra daquele a quem acostumamos
chamar de “O rei do rock”. Um título
dado a um, por muitos. Ainda que os meios de comunicação
tenham um papel importante nestas definições
(“rei do rock”, “rei do soul”,
etc), será o fã quem “eternizará”
o ídolo (e sua obra), indiferentes ou não
ao papel da mídia.
Este capítulo se resume a três pequenas histórias,
com o intuito de apresentar alguns aspectos do cotidiano
de fãs que optaram em dedicar um tempo de suas
vidas para a adoração de seus ídolos
através de fã-clubes. São jovens
que procuram organizar encontros, festas, estabelecer
contatos, tudo que tenha relação com a Legião
Urbana e que sirva como pretexto para extravasarem
paixões e conhecimentos. Esta opção,
como foi dito na introdução, segue a linha
do trabalho Writing women’s worlds – bedouin
stories, de Lila Abu-Lughod, que aponta novos caminhos
para a produção do texto etnográfico.
Abu-Lughod, teria passado quase dois anos em uma comunidade
beduína do Egito, e do contato estabelecido com
o grupo, publicou o livro Veiled sentiments –
honour and poetry in a Bedouin society. Ao optar
por um enfoque mais teórico nesta obra, a autora
se viu deixando de lado histórias de vida que possuíam
detalhes riquíssimos para uma compreensão
maior do dia a dia daquela comunidade, e que não
podiam, segundo ela própria, permanecer em seu
arquivo particular. Estas histórias, além
do livro, deram origem a um projeto antropológico
que tem como iniciativa dar voz aos membros do grupo estudado,
diminuindo assim, a participação do autor
no texto .
Depoimento
1
Verônica Rangel é uma jovem catarinense
de 18 anos, que trabalha como modelo e estuda odontologia.
Também faz estágio em um consultório
na capital, sonha em ser dentista. Como toda jovem, além
dos sonhos, tem alguma desilusões. Parece não
gostar muito do universo da moda que a cerca, segundo
ela cheio de intrigas e disputas particulares, centralizado
na busca frenética pela boa forma. Isso a faz ter
muitas vezes vontade de desistir do serviço, de
apenas estudar; reconhece, porém, que é
com o dinheiro que ganha posando para fotos que consegue
pagar a faculdade. Além de estudar odontologia
e trabalhar como modelo, Verônica tem uma outra
atividade que a enche de prazer e orgulho: preside um
fã-clube da Legião Urbana, chamado Legionários.
Com 306 sócios espalhados pelo Brasil, o grupo
se dedica fervorosamente a divulgar notícias sobre
seus ídolos e a promover discussões em torno
de acontecimentos envolvendo os mesmos. O veículo
principal para estas atividades é a internet. Verônica
e os outros membros da direção do fã-clube
(Fê, Daniel e Rafinha) toda semana selecionam um
tema para ser apresentado aos outros sócios em
seu site, na intenção de saber e divulgar
o posicionamento de todos nos assuntos referentes aos
ídolos. Um dos últimos temas era a aprovação,
por parte da gravadora do grupo, para que uma música
deles fosse incluída na trilha sonora de uma telenovela.
Os fãs concordavam ou não? A grande maioria,
conhecedora da opinião de Renato Russo sobre a
Rede Globo, reprovava a atitude da gravadora: “Se
Renato fosse vivo, jamais aprovaria!!!” era a frase
mais repetida. E este assunto era exaustivamente debatido
nas salas de bate-papo, e na troca, muitas vezes diárias,
de e-mails.
Os quatro “diretores” do fã-clube
dizem-se apaixonados por poesia: costumam realizar colóquios
na faculdade onde estudam, no intuito de apresentar e
discutir versos de Russo e de autores admirados pelo cantor.
Segundo Verônica, estes encontros estão sendo
o maior sucesso na faculdade, com as salas sempre lotadas.
Alguns professores começam a dar apoio.
“O nosso trabalho é uma missão
de perpetuar a obra da Legião entre os mais jovens.
Muita gente só conhece as músicas que estão
no Acústico[álbum póstumo]. Elas
têm que ouvir o trabalho todo, pra perceber a importância
da Legião pra música brasileira, pro rock.
Pô, quase todo mundo já gravou Legião
[Verônica fala sobre outros artistas que teriam
gravado canções do grupo]. Sinceramente,
não vejo a possibilidade de surgir um cantor que
consiga captar os nossos sentimentos da forma que Renato
conseguiu. Essa coisa nossa, de adolescente, sabe? Não
tem como, ele é único. E será único
pra sempre.”
Quando tem algum problema no emprego ou na faculdade,
Verônica costuma entoar baixinho a frase “a
vida continua e se entregar é uma bobagem”,
trecho de uma canção de Russo. É
a sua predileta. As músicas da Legião seriam
um estímulo especial para a jovem enfrentar seus
problemas:
“Tem aqueles dias que tudo é cinza,
tudo tá horrível, daí você
ouve Legião e percebe que não está
sozinho, que muita gente passou ou está passando
pelo mesmo estado que você, sabe? (...) Eu sou modelo,
e esse é um mundo diferente... daí tem dias
que você quer se jogar pela janela e deixar tudo
para trás e de repente vem alguém te falando
que ‘a vida continua e se entregar é uma
bobagem’... São coisas simples mas que às
vezes precisamos ouvir e ninguém nos disse... Como
o Renato falou em uma entrevista: ‘Tem grupos que
gostam de dizer que ‘mulher é tudo vaca’,
nós precisamos dizer que ‘ter bondade é
ter coragem’...’ então essas pequenas
mensagens são capazes de grandes mudanças...
Pode parecer loucura, mas é a realidade que eu
sinto, sabe?”
Depoimento 2
André Bueno tem quinze anos e estuda em um colégio
particular de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Adora Geografia
e História e torce o nariz diante da palavra “Química”.
O grande desafio que enfrenta neste momento é conseguir
conciliar seu tempo entre estudar as matérias em
que não vai muito bem, e reunir o material que
precisa para a manutenção de mais um fã-clube
da Legião Urbana. Sua mãe não cansa
de recomendar: “Deixa esse ‘negócio’
de Renato Russo pra suas férias! Você vai
repetir de ano!” André reconhece que os pais
pagam as mensalidades do colégio com certa dificuldade,
mas sua paixão pela banda está falando mais
alto. E os colegas de turma lhe cobram sobre o andamento
do fã-clube, principalmente as carteirinhas, já
que lhe entregaram as fotos solicitadas. Ele responsabiliza
a demora na entrega por um problema em seu computador:
“Este troço adora me deixar na mão
nas horas em que eu mais preciso dele”, diz, entre
um sorriso e outro. Não esconde o orgulho em falar
de seu fã-clube, o “Cavaleiros Urbanos”:
“Somos o primeiro fã-clube da Legião
de nossa cidade, e todos querem fazer parte dele. Estamos
com o projeto da camiseta, pra colocar pra vender e levantar
um dinheiro para ajudar na nossa manutenção.
Estamos coletando material com um pessoal lá de
São Paulo, acredito que nosso site já estará
no ar lá para o mês que vem! A princípio
vai ser uma página bem simples, depois a gente
vai melhorando...”
Com muita insistência, André conseguiu que
a mãe reservasse um espaço na garagem para
a sede do fã-clube. Uma mesa, seis cadeiras e um
sofá antigo dividem espaço com dois violões,
um aparelho de som, cd's e pôsteres da Legião
Urbana. Há uma lista na parede com os nomes de
cantores e grupos que podem ser tocados naquele aparelho,
todos artistas que Renato também admirava: The
Smiths, Beatles, os grupos de Brasília... A gravação
que no momento está fazendo o maior sucesso entre
a turma é uma fita-cassete “muito mal gravada”
contendo um show do Aborto Elétrico, no distrito
federal. Eles não se cansam de ouvir a todo volume
antigas versões de canções que mais
tarde seriam sucesso em todo o país. Dona Ivone,
a mãe de André, surge de vez em quando na
porta: pede para que abaixem o som. Eles concordam, mas
basta que inicie alguma de suas músicas prediletas,
para que o som toque mais uma vez no volume máximo.
Aos sábados, André costuma reunir os membros
do fã-clube, para juntos, tocarem violão
e reunirem todo o material coletado durante a semana sobre
o grupo, seja em jornais, revistas e internet. Leila,
uma fã, chega com a notícia de um novo livro
sobre Renato Russo*
. Já começam a fazer planos para comprá-lo.
Na sede há uma pequena prateleira reservada para
material impresso da banda como revistas e livros, e um
bem cuidado álbum de fotos e recortes. Por votação,
definiram como próxima prioridade do fã-clube,
a compra de uma televisão de 29 polegadas.
*
Trata-se de Depois do fim – Vida, amor e morte
nas canções da Legião Urbana,
de Angélica Castilho e Erica Schluder, lançado
recentemente pela Editora Hama. |
“A gente tá com planos de a cada mês
exibir alguma coisa da Legião... aqui na sede mesmo...
shows, especiais de tv, estas coisas. E de outros artistas
que influenciaram eles também! O Juliano tem uma cópia
de Syd e Nancy*
. Minha mãe já autorizou. Ela só não
quer ouvir falar nesse negócio de comprar a televisão
no nome dela. A gente tá vendo se consegue comprar
à vista, mas tá muito cara... vai ter que ser
na prestação mesmo... O irmão da Leila,
talvez... A gente vai começar a levantar uma grana
este mês ainda... Tem muita gente que gosta da Legião
aqui, mas não tem acesso às novidades... a gente,
por ter computador, tá sempre mais por dentro, consegue
material...”
*
Longa metragem que conta o romance de Syd Vicious, baixista
do Sex Pistols, com Nancy Spungen, ambos mortos por overdose
de heroína. |
André e seus colegas acabaram se tornando uma espécie
de “consultores musicais”: nos intervalos, ficam
cercados por outros jovens, que solicitam uma gravação
de um álbum do Sex Pistols, a letra de uma “certa
música” da Legião... Só resta saber
como ficará o andamento do fã-clube depois do
boletim final de André e Leila: ambos foram reprovados
em Física e em Química.
Depoimento
3
Leonardo Marinho, um paulista de dezenove anos, trabalha
em uma loja de instrumentos musicais, no bairro do Bexiga.
Sua namorada, Aline, que está grávida de
sete meses, decidiu abandonar os estudos na semana passada.
Com dezesseis anos e cursando a sétima série,
ela queria dedicar mais tempo à gravidez, a cuidar
do enxoval e do quarto do bebê. Leonardo a princípio
não concordou com a opção dela em
interromper os estudos, mas a promessa de retorno assim
que a criança deixasse de amamentar o convenceu.
Aline era estudiosa, queria se formar em letras. O casal
costuma percorrer as ruas de São Paulo sempre de
mãos dadas, orgulhosos daquela barriga que cresce
a cada dia. Os dois se vestem com camisetas pretas, estampando
o rosto de Renato Russo e trechos de suas canções.
Bem-humorados, já escolheram o nome do filho (a
ultrasonografia feita ontem confirmou o sexo masculino):
Renato, uma homenagem clara ao ídolo. Foi a paixão
pelo trabalho da Legião Urbana que os uniu. Ele
conta:
“Eu tinha enviado um anúncio para a
ShowBizz, querendo me corresponder com legionários,
trocar material, informações. Cara, depois
deste anúncio eu recebia carta todo dia. Tem carta
que até hoje não respondi. Carta de não
sei quantos anos atrás... A carta da Aline me chamou
atenção porque tinha um poema que ela havia
feito pro Renato Russo. Carta feita a mão... Eu
adorei, amei. Ela escreve muito bem, e tem a letra bonita.
E morava pertinho também. Nos conhecemos assim,
sem mais nem menos, eu tinha prometido tocar pra ela no
violão a música que eu tinha feito em cima
do poema dela. Numa festa na casa do Almir, que também
é do fã-clube, eu toquei pra ela... Acho
que foi amor à primeira vista... (...) E todo mundo
do fã-clube dá força, meus pais...
O nosso “pra sempre”*
nunca vai acabar, não...”
*
Aqui Leo faz uma alusão à canção
“Por enquanto”, onde Renato Russo canta:
Se lembra quando
a gente chegou um dia a acreditar ,
que tudo era pra sempre, sem saber,
que o pra sempre, sempre acaba
|
Leo (como gosta de ser chamado), dirige um pequeno fã-clube
do Legião Urbana, com sede em um quarto espaçoso
de sua casa. Recebe apoio incondicional dos pais, ambos antigos
fãs da banda. Foi o contato com o disco “Dois”,
em vinil, de seu pai, que o despertou para aquela admiração
desenfreada. “Faço tudo pra ter tudo do Legião”,
afirma, sempre com Aline ao seu lado. O quarto do bebê
já está pronto. Na parede ao lado do berço
há um quadro de Renato Russo, vestido de preto, segurando
um buquê de flores. Apesar do casal não ter decidido
onde irão se estabelecer, os cuidados da mãe
de Leo em reservar um quarto para o futuro neto apontam para
a casa do rapaz. Os pais de Aline são separados e se
enfrentam há três anos em um conflito judicial.
Ela diz que a canção “Pais e filhos”
foi feita em sua homenagem*
. Faz planos para breve:
*
A letra fala sobre o problema de jovens com pais separados. |
“A gente sonha com uma festa assim que o bebê
chegar, depois que eu tiver andando, legal. O contato dele
com a Legião vai ser logo nos primeiro dias, na primeira
semana. No nosso caso a gente vai poder falar que a paixão
legionária passou de pai pra filho, por três
gerações! Por enquanto!! O Almir [membro do
fã-clube e melhor amigo de Leo] já pintou uma
camisetinha pequenininha pro neném, preta, com o rosto
do Renato. Pra minha felicidade ser completa, meus pais vão
voltar [Aline fala sobre a separação dos pais]
quando olharem para o netinho, pequenininho. Quando eles tiverem
entrando eu vou colocar ‘Pais e filhos’, eles
sabem que eu adoro essa música, que eu falo que é
a minha música, sempre falei... Eles vão voltar
a morar juntos, tenho certeza.”
Um tempo depois, Leo fala eufórico ao telefone
sobre o nascimento do filho. Sua casa vive em festa, com
os membros do fã-clube e familiares enchendo o
bebê de presentes. No entanto, pouco se ouve a música
que vem do aparelho de som, situação diferente
de meses atrás, em que o volume permanecia no máximo.
“A gente vai acostumando o ouvido dele aos poucos”,
diz. O ponto triste a destacar é sobre o pai de
Aline: “ele foi embora para o Rio de Janeiro, sem
fazer questão de conhecer o neto.”
Percebe-se um dado em comum entre estas três histórias,
que seria a forma com que estes fãs vêem
o trabalho mantido à frente de seus respectivos
fã-clubes: como uma verdadeira missão. Seja
enfrentando problemas de ordem profissional (Verônica),
educacional (André) ou familiar (Leo e Aline),
todos eles se dispõem a buscar tempo em suas vidas,
na intenção de tornar a obra de seu ídolo
mais conhecida entre os mais jovens. Nenhum deles teria
assistido à uma apresentação ao vivo
da banda, tiveram contato com as canções
através dos pais (caso de Leo), da irmã
mais velha (como Verônica) e do álbum Acústico
(caso do fã mais novo, André). Todos têm
convicção da singularidade de Renato Russo,
não acreditam na sua substituição
- daí julgarem ser de tanta importância o
trabalho dos fã-clubes. E uma vez estabelecido
o contato com os novos fãs, dá-se o processo
de continuidade da adoração, reforçada
no entusiasmo típico adolescente.
CONCLUSÃO
- Penso que de acordo com os argumentos das páginas
anteriores, o que fica como possível conclusão
caminha para uma situação que Michel Maffesoli
define como “o retorno das tribos”. Por mais que
os meios de comunicação insistam em destacar
a necessidade do indivíduo de ser diferente, singular,
as condições do próprio ambiente industrial
e urbano em que vive trata de empurrar este mesmo indivíduo
para algum grupo (ou “tribo”). Maffesoli destaca
o surgimento, a partir destas relações cada
vez mais grupais, de um novo ethos. Não é uma
questão de opção apenas, e isto vale
tanto para o fã, que se vê, na ausência
física do ídolo, buscando consolo entre seus
iguais, quanto para o próprio ídolo, quando
morre prematuramente, com tanto ainda por aproveitar: “O
indivíduo não é, ou não é
mais, mestre de si. Ele o é, na verdade, mas à
maneira daquele que recita um texto escrito por outra pessoa.
Ele pode acrescentar a entonação, com mais ou
menos calor, eventualmente introduzir uma réplica,
no entanto ele continua prisioneiro de uma forma que ele não
pode, em nenhuma hipótese, modificar por vontade própria.”
(Maffesoli: 2000, 8) Morrer de formas similares acaba sendo
uma prova que a genialidade de qualquer artista, tão
reverenciada, não lhe confere uma condição
singular plena, como muitos imaginavam: vidas singulares,
mortes semelhantes.
Ao fã o caminho da reunião com seus iguais
lhe confere a condição de membro de um grupo
determinado: a identificação entre os indivíduos,
que antes era baseada em laços familiares, na proximidade
física, passa a se dar a partir de seus gostos
e preferências, sejam eles ligados ao vestuário,
à prática de esportes, aos gêneros
musicais. E estes gostos passam a romper os elos que os
originaram: passamos então a falar em estilos de
vida. O gênero conhecido como punk rock, a princípio
uma saída para os roqueiros que pouco sabiam sobre
acordes musicais, torna-se um universo a apontar maneiras
de se vestir, surge toda uma literatura marginal a tratar
de questões e temas que giram em torno das drogas,
filmes são produzidos a partir desta estética.
E o individual tão valorizado na sociedade industrial
perde-se com a tendência cada vez maior da necessidade
de pertencimento a um grupo.
A influência de certos artistas no comportamento
da juventude do meio urbano é um excelente objeto
de estudos, ainda que tenha merecido pouca atenção
por parte do mundo acadêmico. O fenômeno da
idolatria pode ser uma ótima oportunidade para
a compreensão das relações entre
os indivíduos e uma sociedade como a nossa, fortemente
influenciada pelos meios de comunicação.
Nossos ídolos trazem muito de nossos anseios, ou
seja, não o que possuímos, mas justamente
aquilo que nos falta. Não se trata entretanto de
definirmos estes fãs apenas como jovens necessitados
de algo que não conseguem expressar facilmente
por palavras. É possível que o desejo de
muitos deles esteja representado (no caso do nosso trabalho)
nas letras de Renato Russo. E muito provavelmente a atitude
deles em buscar respostas através de letras e depoimentos
do artista não seja tão diferente da daquele
estudioso que se debruça horas seguidas sobre as
obras de Karl Marx ou Émile Durkheim. É
neste sentido que o ensaio de Joli Jenson intitulado “Fandom
as pathology: the consequences of characterization”,
trata de retirar o rótulo atribuído ao fã
de alguém que se guia apenas pela paixão
desenfreada por seu ídolo. Que sua admiração
classificada como exaltada é determinante no seu
cotidiano não resta dúvidas, mas esta, de
forma nenhuma, impede-o de ter uma vida como a de qualquer
jovem. Assim como os interesses dos membros dos diversos
grupos sociais não os impedem de dar continuidade
às suas vidas. A condição de fã
não é tão diferente da do colecionador
de objetos de arte, nem daquele que aprecia uma boa ópera,
diz Jenson. O problema, segundo a autora, é que
existiria uma tentativa da parte dos próprios meios
de comunicação de apresentar este fã
como alguém obcecado por seu ídolo. A indústria
cinematográfica teria grande papel nesta definição*
negativa, aliada a uma imprensa ávida em dar destaques
ao número de mortos em algum show de rock, pisoteados
ou por excesso de drogas. E o mundo acadêmico teria
seguido pelo mesmo caminho que Jenson aponta, a meu ver
corretamente, como equivocado. Idolatria não é
sinônimo de obsessão.
*
Maria Cláudia Coelho em A experiência
da fama destaca dois longa-metragens que apresentariam
o fã como um psicopata, disposto a tudo para
conquistar a atenção do ídolo:
The fan (O fã – obsessão
cega), de 1981, e Misery (Louca Obsessão),
de 1990. |
Vale ressaltar que o engajamento de artistas conhecidos mundialmente
nas questões dos povos menos favorecidos (o caso de
Bono Vox, cantor do U-2 é emblemático) retira
estes rótulos negativos de ambos os lados: o roqueiro
passa a ser visto como não apenas alguém de
talento que usa substâncias ilegais, mas como uma pessoa
preocupada com seu semelhante; o fã, conhecedor e de
alguma forma influenciado pelos atos do ídolo, passa
a não se guiar apenas pela rebeldia contra tudo e todos.
É neste ambiente que as mensagens de alguns artistas
ganham dimensões que vão além das imaginadas
quando foram criadas. E enquanto umas passam, outras permanecem
incrivelmente atuais. A história da música pop
comprova esta idéia através da trajetória
de alguns de seus maiores ídolos.
Temos, portanto, os dois principais “atores”
da relação de idolatria – o ídolo
e o fã - desempenhando papéis que são
interpretados individualmente, mas definidos a partir
do coletivo, do grupo. Partindo da idéia de que
estes ídolos podem representar algo de que sentimos
falta, tentar entender a dinâmica destas “tribos”
pode ser uma chave para entendermos o próprio meio
social em que vivemos.
Paulo Henrique Dantas - fale
com o autor
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