Renato Russo e a Legião Urbana no Contexto Cultural Brasileiro - Parte 2
Por Paulo Henrique Dantas

Ver Parte 1

CONSIDERAÇÕES SOBRE O ADMIRADOR EXALTADO

A sociedade industrial cunhou o termo “fã”, uma forma reduzida da palavra “fanático”, para designar o indivíduo que tem uma dedicação, admiração ou amor exaltado por alguém, em geral ligado ao meio artístico. É muito provável que em algum momento de nossas vidas tenhamos passado pela experiência de eleger alguém como o “escolhido”, seja ele do nosso cotidiano, ou de um plano mais distante, como é o caso de um artista. Seriam dois tipos de admiração extrema, sendo que no primeiro, relacionado a alguém próximo, existe uma possibilidade de reciprocidade dos sentimentos; no segundo, será a inexistência desta possibilidade que confirmará sua condição, pois o contato físico com o artista dificilmente se dará de forma real. A esta admiração colocada na prática costumamos dar o nome de “idolatria”, ou seja, culto a um ídolo. Na impossibilidade de ter um contato direto com o artista, o fã busca estratégias que compensem a sua ausência física, e despende horas de seu tempo a colecionar fotos, recortes de revistas, gravações, tudo que o faça sentir a presença do ser adorado a qualquer momento. Aqui reside a grande diferença entre a pessoa que aprecia determinado gênero de trabalho artístico, e o fã. Para ficarmos apenas no terreno musical, uma pessoa pode ter uma discoteca com um número considerável de discos, entender sobre alguns gêneros, e sua relação se dar de forma direta com a música, ou seja, com o trabalho do artista. A ela não interessa se o cantor foi preso portando drogas, ou se acabou de desmanchar seu casamento; são as canções o objeto exclusivo de seu interesse. Já o fã não separa trabalho e artista, ambos representam uma unidade. E é assim que qualquer notícia envolvendo um membro de sua banda predileta é capaz de lhe trazer alegria ou tristeza. O fã se importa tanto com a nova canção a ser lançada quanto com o acidente de carro envolvendo o ídolo. Para pensarmos melhor como se dá esta dinâmica, se faz necessária uma pequena análise de conceitos e idéias de alguns autores que procuraram, de uma forma ou de outra, tratar do tema.

Sabemos que a vida em sociedade será sempre caracterizada pela idéia de relação, ou seja, a própria existência da sociedade já pressupõe a relação, desejada ou não, entre os indivíduos. Sigmund Freud vai definir este indivíduo como um ser de horda, como alguém que sempre necessitará de uma liderança a lhe apontar os caminhos. O seu trabalho Psicologia de grupo e análise do ego, pode nos servir como espécie de texto-guia para uma tentativa de análise dos indivíduos inseridos em grupos. É importante frisar que não se trata aqui de afirmar o caráter coercitivo da liderança; a coerção é uma possibilidade, e não necessidade da relação entre líder e liderados. A proposta freudiana vai em confronto aos conceitos dos chamados “psicólogos das multidões”, muito debatidos na sua época, passagem do século XIX ao XX. Para Freud, autores como Gustave Le Bon (autor de Psychologie des foules) e McDougall (The group mind), fizeram um trabalho minucioso de pesquisa dos grupos enquanto indivíduos reunidos, mas teriam desprezado um aspecto que deixava suas análises incompletas: o da liderança. Todo grupo social possui um líder, podendo ser ele um de seus membros, ou uma figura distante fisicamente, necessidade esta que é fundamental para a permanência do grupo enquanto tal. Este, sem um líder, reduz-se a uma multidão desorganizada, mera aglomeração de indivíduos com paixões conflitantes, sem nenhum freio.
O conceito de “instinto gregário” de Trotter é que vai servir de ponto de partida a Freud para a apresentação do indivíduo como alguém essencialmente de horda. Trotter acrescentava aos instintos considerados primários (o de auto-preservação, de nutrição e de sexo) o instinto gregário. A idéia básica é que o indivíduo traria consigo, como algo inato, a necessidade de estar em grupo, de confortar-se em seus semelhantes. Segundo Trotter, a criança deixada sozinha, ao se amedrontar com a solidão, já daria provas da existência deste instinto. O exemplo dado pelo autor é posto abaixo na análise de Freud: “O medo mostrado pelas crianças pequenas quando são deixadas sozinhas, e que Trotter alega constituir já uma manifestação do instinto, (...) sugere mais facilmente uma outra interpretação. O medo relaciona-se à mãe da criança e, posteriormente, a outras pessoas familiares, sendo a expressão de um desejo irrealizado, que a criança ainda não sabe tratar de outra maneira, exceto transformando-o em ansiedade. O medo da criança, quando está sozinha, tampouco é apaziguado pela visão de qualquer fortuito membro da grei; pelo contrário, é criado pela aproximação de um estranho desse tipo.” (Freud: 1976 [1921], 129) Ou seja, o ponto de referência da criança seria a mãe, ou alguém de seu meio familiar. O indivíduo, desde a mais tenra idade, vai necessitar de referenciais para dar direção aos seus passos, para seguir na vida com os seus semelhantes. Depois de adulto, estes referenciais vão sendo substituídos, mas continuarão como essência da vida em sociedade. “Todos os membros devem ser iguais uns aos outros, mas todos querem ser dirigidos por uma só pessoa. Muitos iguais, que podem identificar-se uns com os outros, e uma pessoa isolada, superior a todos eles: essa é a situação que vemos realizada nos grupos capazes de subsistir. Ousemos, então, corrigir o pronunciamento de Trotter de que o homem é um animal gregário, e asseverar ser ele de preferência um animal de horda, uma criatura individual numa horda conduzida por um chefe.” (Freud: 1976 [1921], 131)

Freud faz em seguida uma análise de dois grupos, classificados como “artificiais”: o exército e a igreja. A importância do líder é enfatizada ao extremo, em oposição direta aos estudos dos psicólogos da multidão. O exército em guerra, diante da morte ou captura de seu general, perde o rumo, entra em pânico, ficando muito próximo da derrota. A certeza da queda do líder tem o impacto de um ataque fulminante entre os soldados. Se vasculharmos com atenção os livros de História encontramos com facilidade inúmeros exemplos que podem nos confirmar esta idéia relacionada ao exército enquanto grupo. Quanto à igreja, Freud cita um romance inglês, When it was dark (Quando estava escuro), de Guy Thorne, publicado em 1903, para imaginarmos o fenômeno de dissolução de um grupo religioso: “O romance, que pretende relacionar-se com os dias de hoje, conta como uma conspiração de inimigos da pessoa de Cristo e da fé cristã teve êxito em conseguir que um sepulcro fosse descoberto em Jerusalém. Nesse sepulcro encontra-se uma inscrição em que José de Arimatéia confessa que, por razões de piedade, retirou secretamente o corpo de Cristo de sua sepultura, no terceiro dia após o sepultamento, e enterrou-o naquele lugar. A ressurreição de Cristo e sua natureza divina são dessa maneira refutadas e o resultado da descoberta arqueológica é uma convulsão na civilização européia e um extraordinário aumento em todos os crimes e atos de violência, os quais só cessam quando a conspiração dos falsificadores é revelada.” (Freud: 1976 [1921], 109-110)

Estes exemplos, apresentados de forma breve, nos ressalta a pertinência da convicção que o liderado deve ter na existência do líder, do “seu” referencial, e que não necessariamente deve ser um indivíduo. A relação de um torcedor com o seu time representa bem este modelo: o torcedor tem um identificação com o grupo representado nas cores da camisa, no hino do clube, nas conquistas diante do adversário. Neste caso, não se trata de uma admiração a um jogador específico, pois este, por mais admirado que seja, cada vez mais tende a ser substituído (seja pelo avançar da idade ou pelo interesse de outros clubes), e esta substituição não abala a paixão da torcida, que permanece intacta1 . “Os jogadores passam, o clube fica”, costumam dizer os torcedores mais apaixonados.

1- O jogador idolatrado pela torcida, ao se transferir para um clube rival, leva consigo não só os seus dribles e belas jogadas, mas todo um universo de símbolos que o identificava com os torcedores. Ainda que permaneça o desejo, por parte destes, pelo seu retorno, a tendência é que a cada vez que entre em campo para enfrentar o seu antigo clube, seja o mais hostilizado possível, através de insultos e faixas com dizeres agressivos. Uma prova de que a paixão pelo clube, ultrapassa os limites do indivíduo. Ver Helal, Ronaldo & Coelho, Maria Claudia. “Modernidade e tradição no futebol brasileiro: o caso Bebeto”. In.: Pesquisa de campo – revista do Núcleo de Sociologia do Futebol/UERJ – Número 2, 1995.

Há casos de personagens de histórias em quadrinhos que também são capazes de movimentar multidões de seguidores. O processo de identificação do leitor com o personagem se constrói na seqüência dos episódios, e pode desencadear relações semelhantes às citadas no texto de Freud. Umberto Eco em “O mito de Superman” analisa este processo a partir das histórias de personagens como Superman, Batman e Robin, entre outros. A empatia do público leitor com seu super-herói (ou personagem) predileto se dá em um ritmo crescente, sempre apoiada na certeza da existência. O consumidor de revistas em quadrinhos quer, a cada exemplar, uma aventura em que seu herói enfrente seus inimigos e no final, seja sempre o vencedor. Não passa pela sua cabeça a idéia de, em um combate, por exemplo, Batman ser assassinado pelo Pingüim, ou Superman por Lex Luthor: a vitória sobre os inimigos será o pressuposto para a continuidade da sua relação de adoração. Os personagens ganham vida própria, e seu criador pode, muitas vezes, ver-se envolvido em dilemas quando toma certas decisões quanto ao destino destes. Eco cita exemplos em que autores resolveram por algum motivo, “matar” determinado personagem, e a reação do público é de contrariedade: milhares de cartas na redação da revista, estudantes universitários fazendo “um minuto de silêncio”, artigos nos jornais, e como resultado, o autor se vendo forçado a ir às rádios, dar entrevistas sobre a sua escolha! Os laços de união, e aqui podemos pensar nos “grupos artificiais” de Freud, são rompidos e os leitores perdem seu referencial: “... no caso das estórias em quadrinhos, trata-se de uma reação muito mais maciça de uma comunidade de fiéis, incapaz de suportar a idéia do desaparecimento repentino de um símbolo que até então encarnara uma série de aspirações. O histerismo provém da frustração de uma operação empatizante, uma vez que passa a faltar o suporte físico de projeções necessárias. Cai a imagem, e, com ela, caem as finalidades que a imagem simbolizava. A comunidade dos fiéis entra em crise, e a crise não é só religiosa mas também psicológica, porque a imagem revestia uma função demasiado importante para o equilíbrio psicológico dos indivíduos.” (Eco, 1979: 246)

Do que foi dito acima, é importante destacar dois pontos:

- Primeiro, que as relações entre líderes e liderados, exige apenas que o séquito seja composto de indivíduos, com gosto e vontade próprios – o líder pode estar em outro nível, além do individual. Casos como o do torcedor e o time de futebol e o do leitor e seu super-herói predileto são exemplos desta idéia. Ou seja, a liderança não é necessariamente exercida por indivíduos.

- Segundo, que as relações entre estes dois lados estão fortemente baseadas na certeza, por parte dos liderados, da existência do líder. Estas relações têm características próprias do universo em que se insere tal relação, podendo apresentar algumas diferenças, mas todas conduzem à situações parecidas: no mundo do futebol, as relações do torcedor com o time adquirem ares de cobrança sempre que a equipe vai mal, mas ele não consegue se ver sem o time de coração. “Eu teria um desgosto profundo, se faltasse o Flamengo no mundo”, cantam os milhares de flamenguistas numa voz única nos estádios. A inexistência do time jamais entra como possibilidade nestas relações. Já o soldado, se quisermos pensar no grupo artificial de Freud mais uma vez, segue quase mecanicamente as ordens de seu general, não havendo espaço para cobranças por parte dos subordinados: a voz do líder é a voz da Pátria, cabe apenas ao soldado obedecer. E é este o seu desejo, cumprir à risca as ordens do seu general, pois é ele o seu ponto de referência no campo de batalha. Perdê-lo é perder-se, vagar sem rumo a espera do inimigo. É o “desgosto profundo” do torcedor...

Ainda que reconheçamos, de uma maneira geral, a perda como fator determinante para o possível desmantelamento do grupo, no mundo artístico esta pode servir como reforço na continuidade das relações. Sendo a relação “fã e ídolo” uma relação entre indivíduos, a perda é neste caso representada de forma plena através da morte física. E muitas vezes esta morte irá se constituir em motivo para intensificação da adoração. Se o ídolo já possuía o status de alguém especial, quase não humano em vida, agora ele se inclui no rol dos semi-deuses, e o culto permanente por parte de seu séquito será a confirmação desta sua condição singular. José Carlos Rodrigues em seu trabalho intitulado “Quando a morte é festa”, exprime bem esta idéia do ser único, e de uma forma muita feliz, utiliza-se do termo “superpessoas” para definir estes ídolos diante da morte: “Tais superpessoas estão a meio caminho entre deuses e mortais: a morte representa sem dúvida uma curvatura deles diante das forças hostis do mundo. Mas, ao mesmo tempo, por virtude desta curvatura, ganham finalmente o absoluto, quer dizer, a imortalidade. No momento da morte, principia a vitória deles sobre a morte.” (Rodrigues, 1992:59) [Os grifos são meus] Portanto, no caso do ser que é objeto de culto, a morte vai representar uma nova etapa na escala das relações, e sendo assim, esta partida não é, de forma nenhuma, sem volta. A perda ocorre apenas no nível físico.

Aqui observamos que se as análises de Freud e Eco enfatizavam os aspectos da necessidade de certeza na existência da figura do líder (seja ele o general, Jesus Cristo ou Superman), devemos dar um passo além se quisermos compreender melhor como se estabelecem as relações dadas entre os admiradores de um artista que morre de forma prematura ou não, como é o caso do vocalista da Legião Urbana. Podemos pensar a morte nestes casos como representando o início de uma vida nova, de novas relações. Não há mais a presença física, aquela certeza na existência concreta, mas ficam as lembranças, resta a obra. E será justamente a impossibilidade de dissociar obra e artista que vai confirmar o caráter de idolatria por tanto tempo após a sua morte. O conhecimento de detalhes da vida do ídolo, além da constante admiração pelos trabalhos realizados (sejam estes, canções, filmes, fotos), formam uma unidade com a imagem eternizada na lembrança. No caso dos músicos idolatrados na sua grande maioria por jovens, a tragédia tem papel pertinente no reforço a este sentimento, ou seja, a morte, de uma forma ou de outra, sempre esteve (e estará) presente. Qualquer loja especializada em produtos de rock no país, tem na lista das camisetas mais vendidas as que trazem estampados os rostos de Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jim Morrison, Raul Seixas, Renato Russo2.

2- Durante esta monografia, fiz visitas a algumas destas lojas, e pude confirmar que a camiseta mais vendida entre as de artistas brasileiros era a de Renato Russo, e entre os estrangeiros, a de Kurt Cobain, o líder da banda americana Nirvana, que se suicidou com um tiro na cabeça. Ambos são seguidos a certa distância por Raul Seixas, Jim Morrison e Jonh Lennon. Todos mortos.

Se analisarmos as biografias de todos estes artistas, ao mesmo tempo em que percebemos características especiais que os distingue das pessoas ao seu redor desde a infância, fica fácil também reconhecer que o elemento da tragédia vai permeando muitos acontecimentos em seu dia a dia, até interromper a trajetória através da morte (física) de forma abrupta. Será característica da mitificação póstuma a morte não esperada, ainda que presente enquanto possibilidade. A opção por um ritmo de vida intenso, e que passa muitas vezes pelo consumo de drogas, serve como argumento para a rotulação destes artistas por parte de setores da sociedade (um público e mídia mais conservadores) como “malditos”, “drogados”, “loucos”, etc. Se por um lado a consagração através de shows e da venda de discos representa a garantia de uma vida extremamente confortável, por outro, a vida pessoal parece tentar assemelhar-se ao conteúdo de muitas das letras eternizadas pelos fãs. O próprio Renato Russo sintetizou bem esta idéia na canção “Love in the afternoon” em que diz “é tão estranho, os bons morrem jovens...”

Janis Joplin, por exemplo, teria passado toda sua infância sofrendo humilhações por parte dos colegas em todos os colégios onde estudou – era uma espécie de pária na pequena cidade de Port Arthur, no sul do Texas. Com forte tendência a engordar, seu corpo era motivo de piada entre os rapazes; na adolescência seria votada em uma estranha eleição como a jovem mais feia da escola. Nem o posterior sucesso alcançado nos anos sessenta como cantora de blues, atenuaria a dor originada nestes anos. Janis mergulharia fundo numa vida sexual desregrada, no álcool e na heroína. Os amigos não conseguem lembrar de muitos momentos em que a viram feliz, sempre a tinham nas recordações como uma jovem amargurada e muito triste. Uma dose excessiva de heroína a mataria no dia 4 de outubro de 1970, num quarto de hotel. Estava sozinha3.

3- Ver Myra Friedman, Enterrada viva – a biografia de Janis Joplin. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.

Jimi Hendrix, até hoje considerado o maior guitarrista de todos os tempos, já teria morrido poucos meses antes, da mesma causa, e também sozinho. Assim como Jim Morrison, vocalista do The Doors, como Elvis Presley, e tantos outros ídolos da juventude. No momento da morte, a solidão, grande contradição a acompanhar a vida destas “superpessoas”...

Desde o seu surgimento que o rock popularizou-se como um estilo musical marcado por mortes trágicas e prematuras. Acidentes automobilísticos e aéreos, overdoses, suicídios, e mais recentemente, a AIDS, interromperam muitas carreiras de sucesso mundo afora. As décadas de 60 e 70, de certa forma imprimiram esta marca ao rock, se levarmos em consideração a quantidade de músicos mortos, na sua grande maioria, de doses excessivas de drogas neste período4 . Cantar os efeitos de drogas como LSD e a heroína5 tornou-se comum nestes anos, assim como morrer de seu uso inadequado6 . O universo composto em torno destes artistas (empresários, músicos de acompanhamento, fãs) passaria a conviver com a idéia da morte sempre como uma grande possibilidade. A partir do final dos anos oitenta, a AIDS também colheria de forma devastadora vidas no mundo musical, como Freddy Mercury, vocalista da banda inglesa Queen, e no Brasil, Cazuza e Renato Russo. O assassinato de Jonh Lennon na porta de sua residência confirma o “trágico” como elemento na sua trajetória, mesmo sendo uma forma de morte atípica no mundo artístico. O que temos, portanto, é a desnaturalização da morte como a consolidação do status de “superpessoa”, de imortal.

4- Janis Joplin, Jimi Hendriy, Jim Morrison e Brian Jones, o guitarrista do Rolling Stones que disputava com Mick Jagger a preferência das fãs, morreram todos nesta década.

5- Os Beatles, com a clássica “Lucy in the Sky with Diamonds” , e os Rolling Stones, com “Brown Sugar” (como também é conhecida a heroína), consagraram o tema das drogas como recorrente nas letras de muitas canções do gênero. Jonh Lennon, posteriormente em carreira solo, comporia uma das mais explícitas canções tratando dos efeitos da dependência de heroína: “Cold Turkey”, que descreve o estado de um viciado em um período de abstinência da droga.

6- Ver McNeil, Legs & McCain, Gillian, Mate-me por favor – uma história sem censura do punk. Porto Alegre: Ed. L&PM, 1997.

Um acontecimento envolvendo a morte de um ídolo geralmente mobiliza diversos setores da sociedade, não apenas seus fãs, e a mídia, de acordo com o sucesso do artista, destaca espaços nos seus programas e publicações, e procura focalizar todos os detalhes da vida daquele ser tão adorado. E como os meios de comunicação vivem da novidade, logo um outro fato ocupará o espaço daquela morte tão comentada. É no coração do fã, que lamenta aquela morte como se fosse a de um familiar querido, que a dor vai se prolongar diante da idéia de jamais assistir a um show, nem ouvir nas rádios uma música nova do seu artista predileto. Diante do desafio de perpetuar na memória de novos fãs o trabalho de seu ídolo, surge a necessidade de compartilhar seu material, e de certa forma, mostrar que aquela morte não foi em vão: o roqueiro autêntico, eternizado pelo trinômio “sexo, drogas e rock’n’roll”, morto de forma prematura e trágica, no auge do sucesso, apenas confirma as características essenciais das relações no universo que gira em torno do gênero musical conhecido como rock.

Não se pode dizer que estes artistas desejavam morrer no auge do sucesso, com tantos frutos ainda por colher. Não se trata de uma escolha pela morte. O universo que gira em torno destes ídolos é que clama por mortes trágicas, pois uma das suas maiores atribuições é ser uma fábrica de mitos. E dentro da chamada indústria cultural, a idéia de mitificação passa indiscutivelmente pela morte, ou pelo desaparecimento voluntário (como o caso de Greta Garbo, por exemplo). Esta adoração pelo ídolo morto de forma trágica encontra paralelos na história das civilizações, e não há nada de novo na sua situação, a não ser as formas de morrer. Em muitos aspectos tal situação assemelha-se à do herói homérico, na Grécia Antiga: ser considerado como tal estava condicionado a morrer em combate, no auge da juventude - ou seja, era algo para a posterioridade. Jean Pierre Vernant, no trabalho A “bela morte” de Aquiles, salienta que haviam duas formas de morrer para o homem grego: uma, que o relegava ao esquecimento, seria a morte na velhice, natural; a outra, em combate, na linha de frente, em plena juventude, que resultaria na glória. Tratava-se de uma oposição entre “esquecimento” e “glória”, determinante no mundo grego. A idéia de relação surge clara: “Numa sociedade de confronto onde, para se fazer reconhecer, é preciso sobrepujar seus rivais, numa contínua competição pela glória, cada um está sob o olhar do outro, cada um existe a partir deste olhar. Se é o que os outros vêem de si.” Portanto o herói vive e morre para o amanhã, para ser lembrado de geração em geração, para ser cantado pelos poetas. O alcance da condição heróica, da “glória imperecível”, passa pelo confronto direto com o inimigo, pela morte no esplendor da juventude, a “bela morte”. A “(...) glória imperecível, é, na bela morte, o extremo de uma honra acima de todas as honras, relativas e transitórias, da qual um vivente pode se orgulhar. O agathos aner , o homem de bem, o homem de coração, obtém com a morte heróica um status especial: mortalidade e imortalidade, ao invés de se oporem, se associam à sua pessoa e se interpenetram.” Morrer na velhice estabelece o caráter dos homens comuns, ou seja, humaniza. O herói é considerado como tal, justamente pela idéia contrária: por ter morrido precocemente. Nossos ídolos de hoje parecem trazer um pouco desta carga dramática dos gregos... Analisando com certa distância, não teremos muitos artistas lembrados até hoje, mais pela forma com que morreram do que por seu trabalho propriamente dito?

O poeta a cantar a bravura do herói grego ficou no passado, assim como o descendente que se envaidecia contando as aventuras de um ancestral. Foram substituídos pelos seguidores não mais ligados a laços familiares; a proximidade física, como se dava na Grécia homérica, não é mais um quesito para a identificação entre as pessoas. A relação estabelecida hoje entre o seguidor e o líder se dá por inúmeras vias (discos, livros, televisão), e apesar de ter consciência de que é apenas parte de um séquito, para o seguidor a mensagem que vem do líder é uma dádiva exclusiva. A canção interpretada pelo cantor no palco, “atinge” a audiência como um todo, mas também a cada um dos presentes, seja de maneira intensa ou não. Uns dançam; outros ficam indiferentes. Mas alguém sempre dirá que aquela canção estava sendo interpretada para ele, afinal, o cantor lhe emitia sinais, olhava-o nos olhos - cantava realmente para ele. Uma mensagem que parte do indivíduo e é direcionada a outro, mas que só é bem sucedida se alcançar a coletividade, o grupo. Para pensarmos melhor a noção de morte na idolatria, é importante destacar os pontos essenciais desta relação, quando o fã tem os primeiros contatos com o ídolo ainda vivo.

Relação de sentimentos não correspondidos, a idolatria se caracteriza pela idéia de um indivíduo que é adorado por um grupo. O ídolo não sabe quem são seus fãs, não os conhece por nome, percebe-os como uma multidão de iguais. O fã conhece todas as músicas do ídolo, sabe detalhes de sua vida particular, festeja seus sucessos. E mais: sonha com um possível contato com o seu cantor predileto, deseja conhecê-lo pessoalmente, nem que seja por um breve momento. Este desejo de encontro com o ídolo é um dos principais pontos da obra de Maria Claudia Coelho, A experiência da fama – individualismo e comunicação de massa. A autora discute a relação de idolatria em torno de atores de televisão. Partindo de um conjunto de cartas de fãs enviadas a estes atores7 , Coelho nos ajuda a compreender aquilo que chama de “a condição de fã”. Na ânsia de ser reconhecido pelo ídolo como um fã diferente dos outros, ele elabora estratégias na busca pela singularização. Nesta busca, emaranha-se ainda mais nas semelhanças, pois todos têm o mesmo desejo, e daí surge o dilema que irá acompanhá-lo: “Esse dilema transforma-se em um paradoxo no exato momento em que o fã tenta solucioná-lo. Recorrendo a diversas estratégias de singularização (...) o fã mergulha cada vez mais fundo em sua condição anônima. Esse paradoxo cristaliza-se na recorrência do uso da expressão ‘fã número um’(...) É justamente no momento em que o fã se esforça para ser diferente que ele se iguala (...)”(Coelho,1999: 61) Esta relação, segundo Coelho, teria como essência a assimetria: muitos que desejam ser reconhecidos em sua condição passional, ou ao menos serem vistos; um que, no seu status de super-pessoa, deve manter-se isolado da multidão, confirmando sua singularidade. A análise feita sobre as cartas expõe esta essência, pois enquanto os fãs gastam tempo elaborando frases de efeito com o intuito de fazer-se notar pelo ídolo, este nem ao menos dá-se ao trabalho de respondê-las. Pedidos de fotos com dedicatória, uma simples frase, um autógrafo, tudo isso se perde em envelopes que muitas vezes nem chegam a ser abertos. A admiração ao ator, ligada quase plenamente à imagem (seja impressa ou em vídeo-gravações), dá à foto autografada um caráter especial, que ultrapassa o seu sentido original: “(...) a insistência em receber uma foto autografada deve ser entendida como parte de um pedido mais ambicioso. A foto autografada atesta o recebimento da carta, e mais ainda, pode também desempenhar o papel de uma resposta, estabelecendo alguma reciprocidade na relação” (Coelho, 2000:59). Uma frase destas cartas sintetiza a idéia: “Enquanto não recebo resposta continuarei a trabalhar ativamente à frente do seu fã-clube, sem perder as esperanças de receber uma foto, um bilhete, algo que me assegure que recebeu e leu esta carta.”(Idem) Mesmo que o material desejado por fãs de artistas ligados ao mundo musical possuam diferenças em relação aos do mundo das telenovelas8 (fonte do estudo de Coelho) todos eles sonham com o dia em que poderão encontrar seus ídolos, encontro este bastante improvável9, pois não há reciprocidade na relações de idolatria.

Teríamos, portanto, o fã convivendo com dois desejos: um, o de ter tudo a respeito do ídolo (fotos, reportagens, vídeos, etc.), e outro, o de estabelecer um contato, nem que seja ao menos para um aperto de mão, um abraço. Porém, a idéia de reciprocidade, tão desejada nas relações de idolatria, perde toda a razão de ser quando o artista morre. O fã, mergulhado em sofrimento diante do fato, sabe que agora não há para quem escrever cartas, não há mais shows para assistir. Resta-lhe tudo o que ficou produzido e a admiração de outros fãs, que serão suas motivações para continuar em frente. Na comunhão com seus iguais encontrará sua principal base de conforto. O fã-clube acaba se tornando o ponto de referência para qualquer assunto relacionado com o ídolo. A paixão do outro funciona como reforço à sua, e uma vez somadas, o desejo passa a ser sua propagação. É neste sentido que todo membro de um fã-clube trabalha com o intuito de divulgar a obra do artista entre os que pouco a conhecem, exercendo um papel semelhante ao dos missionários religiosos. O ídolo passa a ser para o fã, mais que um artista, mas uma causa a ser defendida. E não há como se lutar por uma causa solitariamente.

7- Coelho teve à sua disposição um conjunto de quase trezentas cartas de fãs cedidas por dois dos dez atores que entrevistou. No momento em que as cartas foram enviadas, ambos tinham papéis principais em novelas, gozando de enorme popularidade.

8- Os fãs de artistas musicais têm sempre a possibilidade de adquirir a gravação de um show de maneira “clandestina” – as feitas em início de carreira, sem recursos, costumam ser as mais apreciadas. Assim como o fã da atriz deseja uma foto autografada, o do cantor quer a gravação de um show a que poucos assistiram. A “posse” desta gravação lhe garante o status de um fã com “algo mais” que os outros, como aquele que possui a foto com dedicatória, autografada, da atriz principal da telenovela.

9- Dos fãs entrevistados para este trabalho, apenas Marcelo teria conseguido estabelecer um contato com membros da Legião Urbana. Acompanhando a banda em shows pelo Brasil, diz ter sido recebido nos camarins por duas vezes, e inclusive possui uma entrevista gravada com Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá num desses encontros.

No capítulo seguinte procuro apresentar, através de histórias de fãs da Legião Urbana, fatos que podem confirmar os argumentos acima. Assim como a idéia do termo “legião” pressupõe, seus fãs avançam e conseguem manter a popularidade de seu ídolo em alta entre os mais jovens, barrando qualquer possibilidade do “seu trono” ser tomado.

Mês que vem, a conclusão deste estudo.

(aproveite para conhecer o site "O Sopro do Dragão", do fã-clube da Legião)