Ver
Parte 1
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ADMIRADOR EXALTADO
A sociedade industrial cunhou o termo “fã”,
uma forma reduzida da palavra “fanático”,
para designar o indivíduo que tem uma dedicação,
admiração ou amor exaltado por alguém,
em geral ligado ao meio artístico. É muito
provável que em algum momento de nossas vidas tenhamos
passado pela experiência de eleger alguém
como o “escolhido”, seja ele do nosso cotidiano,
ou de um plano mais distante, como é o caso de
um artista. Seriam dois tipos de admiração
extrema, sendo que no primeiro, relacionado a alguém
próximo, existe uma possibilidade de reciprocidade
dos sentimentos; no segundo, será a inexistência
desta possibilidade que confirmará sua condição,
pois o contato físico com o artista dificilmente
se dará de forma real. A esta admiração
colocada na prática costumamos dar o nome de “idolatria”,
ou seja, culto a um ídolo. Na impossibilidade de
ter um contato direto com o artista, o fã busca
estratégias que compensem a sua ausência
física, e despende horas de seu tempo a colecionar
fotos, recortes de revistas, gravações,
tudo que o faça sentir a presença do ser
adorado a qualquer momento. Aqui reside a grande diferença
entre a pessoa que aprecia determinado gênero de
trabalho artístico, e o fã. Para ficarmos
apenas no terreno musical, uma pessoa pode ter uma discoteca
com um número considerável de discos, entender
sobre alguns gêneros, e sua relação
se dar de forma direta com a música, ou seja, com
o trabalho do artista. A ela não interessa se o
cantor foi preso portando drogas, ou se acabou de desmanchar
seu casamento; são as canções o objeto
exclusivo de seu interesse. Já o fã não
separa trabalho e artista, ambos representam uma unidade.
E é assim que qualquer notícia envolvendo
um membro de sua banda predileta é capaz de lhe
trazer alegria ou tristeza. O fã se importa tanto
com a nova canção a ser lançada quanto
com o acidente de carro envolvendo o ídolo. Para
pensarmos melhor como se dá esta dinâmica,
se faz necessária uma pequena análise de
conceitos e idéias de alguns autores que procuraram,
de uma forma ou de outra, tratar do tema.
Sabemos que a vida em sociedade será sempre caracterizada
pela idéia de relação, ou seja, a
própria existência da sociedade já
pressupõe a relação, desejada ou
não, entre os indivíduos. Sigmund Freud
vai definir este indivíduo como um ser de horda,
como alguém que sempre necessitará de uma
liderança a lhe apontar os caminhos. O seu trabalho
Psicologia de grupo e análise do ego,
pode nos servir como espécie de texto-guia para
uma tentativa de análise dos indivíduos
inseridos em grupos. É importante frisar que não
se trata aqui de afirmar o caráter coercitivo da
liderança; a coerção é uma
possibilidade, e não necessidade da relação
entre líder e liderados. A proposta freudiana vai
em confronto aos conceitos dos chamados “psicólogos
das multidões”, muito debatidos na sua época,
passagem do século XIX ao XX. Para Freud, autores
como Gustave Le Bon (autor de Psychologie des foules)
e McDougall (The group mind), fizeram um trabalho minucioso
de pesquisa dos grupos enquanto indivíduos reunidos,
mas teriam desprezado um aspecto que deixava suas análises
incompletas: o da liderança. Todo grupo social
possui um líder, podendo ser ele um de seus membros,
ou uma figura distante fisicamente, necessidade esta que
é fundamental para a permanência do grupo
enquanto tal. Este, sem um líder, reduz-se a uma
multidão desorganizada, mera aglomeração
de indivíduos com paixões conflitantes,
sem nenhum freio.
O conceito de “instinto gregário” de
Trotter é que vai servir de ponto de partida a
Freud para a apresentação do indivíduo
como alguém essencialmente de horda. Trotter acrescentava
aos instintos considerados primários (o de auto-preservação,
de nutrição e de sexo) o instinto gregário.
A idéia básica é que o indivíduo
traria consigo, como algo inato, a necessidade de estar
em grupo, de confortar-se em seus semelhantes. Segundo
Trotter, a criança deixada sozinha, ao se amedrontar
com a solidão, já daria provas da existência
deste instinto. O exemplo dado pelo autor é posto
abaixo na análise de Freud: “O medo mostrado
pelas crianças pequenas quando são deixadas
sozinhas, e que Trotter alega constituir já uma
manifestação do instinto, (...) sugere mais
facilmente uma outra interpretação. O medo
relaciona-se à mãe da criança e,
posteriormente, a outras pessoas familiares, sendo a expressão
de um desejo irrealizado, que a criança ainda não
sabe tratar de outra maneira, exceto transformando-o em
ansiedade. O medo da criança, quando está
sozinha, tampouco é apaziguado pela visão
de qualquer fortuito membro da grei; pelo contrário,
é criado pela aproximação de um estranho
desse tipo.” (Freud: 1976 [1921], 129) Ou seja,
o ponto de referência da criança seria a
mãe, ou alguém de seu meio familiar. O indivíduo,
desde a mais tenra idade, vai necessitar de referenciais
para dar direção aos seus passos, para seguir
na vida com os seus semelhantes. Depois de adulto, estes
referenciais vão sendo substituídos, mas
continuarão como essência da vida em sociedade.
“Todos os membros devem ser iguais uns aos outros,
mas todos querem ser dirigidos por uma só pessoa.
Muitos iguais, que podem identificar-se uns com os outros,
e uma pessoa isolada, superior a todos eles: essa é
a situação que vemos realizada nos grupos
capazes de subsistir. Ousemos, então, corrigir
o pronunciamento de Trotter de que o homem é um
animal gregário, e asseverar ser ele de preferência
um animal de horda, uma criatura individual numa horda
conduzida por um chefe.” (Freud: 1976 [1921], 131)
Freud faz em seguida uma análise de dois grupos,
classificados como “artificiais”: o exército
e a igreja. A importância do líder é
enfatizada ao extremo, em oposição direta
aos estudos dos psicólogos da multidão.
O exército em guerra, diante da morte ou captura
de seu general, perde o rumo, entra em pânico, ficando
muito próximo da derrota. A certeza da queda do
líder tem o impacto de um ataque fulminante entre
os soldados. Se vasculharmos com atenção
os livros de História encontramos com facilidade
inúmeros exemplos que podem nos confirmar esta
idéia relacionada ao exército enquanto grupo.
Quanto à igreja, Freud cita um romance inglês,
When it was dark (Quando estava escuro), de Guy
Thorne, publicado em 1903, para imaginarmos o fenômeno
de dissolução de um grupo religioso: “O
romance, que pretende relacionar-se com os dias de hoje,
conta como uma conspiração de inimigos da
pessoa de Cristo e da fé cristã teve êxito
em conseguir que um sepulcro fosse descoberto em Jerusalém.
Nesse sepulcro encontra-se uma inscrição
em que José de Arimatéia confessa que, por
razões de piedade, retirou secretamente o corpo
de Cristo de sua sepultura, no terceiro dia após
o sepultamento, e enterrou-o naquele lugar. A ressurreição
de Cristo e sua natureza divina são dessa maneira
refutadas e o resultado da descoberta arqueológica
é uma convulsão na civilização
européia e um extraordinário aumento em
todos os crimes e atos de violência, os quais só
cessam quando a conspiração dos falsificadores
é revelada.” (Freud: 1976 [1921], 109-110)
Estes exemplos, apresentados de forma breve, nos ressalta
a pertinência da convicção que o liderado
deve ter na existência do líder, do “seu”
referencial, e que não necessariamente deve ser
um indivíduo. A relação de um torcedor
com o seu time representa bem este modelo: o torcedor
tem um identificação com o grupo representado
nas cores da camisa, no hino do clube, nas conquistas
diante do adversário. Neste caso, não se
trata de uma admiração a um jogador específico,
pois este, por mais admirado que seja, cada vez mais tende
a ser substituído (seja pelo avançar da
idade ou pelo interesse de outros clubes), e esta substituição
não abala a paixão da torcida, que permanece
intacta1 . “Os
jogadores passam, o clube fica”, costumam dizer
os torcedores mais apaixonados.
1-
O
jogador idolatrado pela torcida, ao se transferir para
um clube rival, leva consigo não só os seus
dribles e belas jogadas, mas todo um universo de símbolos
que o identificava com os torcedores. Ainda que permaneça
o desejo, por parte destes, pelo seu retorno, a tendência
é que a cada vez que entre em campo para enfrentar
o seu antigo clube, seja o mais hostilizado possível,
através de insultos e faixas com dizeres agressivos.
Uma prova de que a paixão pelo clube, ultrapassa
os limites do indivíduo. Ver Helal, Ronaldo &
Coelho, Maria Claudia. “Modernidade e tradição
no futebol brasileiro: o caso Bebeto”. In.: Pesquisa
de campo – revista do Núcleo de Sociologia
do Futebol/UERJ – Número 2, 1995. |
Há casos de personagens de histórias em
quadrinhos que também são capazes de movimentar
multidões de seguidores. O processo de identificação
do leitor com o personagem se constrói na seqüência
dos episódios, e pode desencadear relações
semelhantes às citadas no texto de Freud. Umberto
Eco em “O mito de Superman” analisa este processo
a partir das histórias de personagens como Superman,
Batman e Robin, entre outros. A empatia do público
leitor com seu super-herói (ou personagem) predileto
se dá em um ritmo crescente, sempre apoiada na
certeza da existência. O consumidor de revistas
em quadrinhos quer, a cada exemplar, uma aventura em que
seu herói enfrente seus inimigos e no final, seja
sempre o vencedor. Não passa pela sua cabeça
a idéia de, em um combate, por exemplo, Batman
ser assassinado pelo Pingüim, ou Superman por Lex
Luthor: a vitória sobre os inimigos será
o pressuposto para a continuidade da sua relação
de adoração. Os personagens ganham vida
própria, e seu criador pode, muitas vezes, ver-se
envolvido em dilemas quando toma certas decisões
quanto ao destino destes. Eco cita exemplos em que autores
resolveram por algum motivo, “matar” determinado
personagem, e a reação do público
é de contrariedade: milhares de cartas na redação
da revista, estudantes universitários fazendo “um
minuto de silêncio”, artigos nos jornais,
e como resultado, o autor se vendo forçado a ir
às rádios, dar entrevistas sobre a sua escolha!
Os laços de união, e aqui podemos pensar
nos “grupos artificiais” de Freud, são
rompidos e os leitores perdem seu referencial: “...
no caso das estórias em quadrinhos, trata-se de
uma reação muito mais maciça de uma
comunidade de fiéis, incapaz de suportar a idéia
do desaparecimento repentino de um símbolo que
até então encarnara uma série de
aspirações. O histerismo provém da
frustração de uma operação
empatizante, uma vez que passa a faltar o suporte físico
de projeções necessárias. Cai a imagem,
e, com ela, caem as finalidades que a imagem simbolizava.
A comunidade dos fiéis entra em crise, e a crise
não é só religiosa mas também
psicológica, porque a imagem revestia uma função
demasiado importante para o equilíbrio psicológico
dos indivíduos.” (Eco, 1979: 246)
Do que foi dito acima, é importante destacar dois
pontos:
- Primeiro, que as relações entre líderes
e liderados, exige apenas que o séquito seja
composto de indivíduos, com gosto e vontade próprios
– o líder pode estar em outro nível,
além do individual. Casos como o do torcedor
e o time de futebol e o do leitor e seu super-herói
predileto são exemplos desta idéia. Ou
seja, a liderança não é necessariamente
exercida por indivíduos.
- Segundo, que as relações entre estes
dois lados estão fortemente baseadas na certeza,
por parte dos liderados, da existência do líder.
Estas relações têm características
próprias do universo em que se insere tal relação,
podendo apresentar algumas diferenças, mas todas
conduzem à situações parecidas:
no mundo do futebol, as relações do torcedor
com o time adquirem ares de cobrança sempre que
a equipe vai mal, mas ele não consegue se ver
sem o time de coração. “Eu teria
um desgosto profundo, se faltasse o Flamengo no mundo”,
cantam os milhares de flamenguistas numa voz única
nos estádios. A inexistência do time jamais
entra como possibilidade nestas relações.
Já o soldado, se quisermos pensar no grupo artificial
de Freud mais uma vez, segue quase mecanicamente as
ordens de seu general, não havendo espaço
para cobranças por parte dos subordinados: a
voz do líder é a voz da Pátria,
cabe apenas ao soldado obedecer. E é este o seu
desejo, cumprir à risca as ordens do seu general,
pois é ele o seu ponto de referência no
campo de batalha. Perdê-lo é perder-se,
vagar sem rumo a espera do inimigo. É o “desgosto
profundo” do torcedor...
Ainda que reconheçamos, de uma maneira geral, a perda
como fator determinante para o possível desmantelamento
do grupo, no mundo artístico esta pode servir como reforço
na continuidade das relações. Sendo a relação
“fã e ídolo” uma relação
entre indivíduos, a perda é neste caso representada
de forma plena através da morte física. E muitas
vezes esta morte irá se constituir em motivo para intensificação
da adoração. Se o ídolo já possuía
o status de alguém especial, quase não humano
em vida, agora ele se inclui no rol dos semi-deuses, e o culto
permanente por parte de seu séquito será a confirmação
desta sua condição singular. José Carlos
Rodrigues em seu trabalho intitulado “Quando a morte é
festa”, exprime bem esta idéia do ser único,
e de uma forma muita feliz, utiliza-se do termo “superpessoas”
para definir estes ídolos diante da morte: “Tais
superpessoas estão a meio caminho entre deuses e mortais:
a morte representa sem dúvida uma curvatura deles diante
das forças hostis do mundo. Mas, ao mesmo tempo, por
virtude desta curvatura, ganham finalmente o absoluto, quer
dizer, a imortalidade. No momento da morte,
principia a vitória deles sobre a morte.”
(Rodrigues, 1992:59) [Os grifos são meus] Portanto, no
caso do ser que é objeto de culto, a morte vai representar
uma nova etapa na escala das relações, e sendo
assim, esta partida não é, de forma nenhuma, sem
volta. A perda ocorre apenas no nível físico.
Aqui observamos que se as análises de Freud e Eco enfatizavam
os aspectos da necessidade de certeza na existência da
figura do líder (seja ele o general, Jesus Cristo ou
Superman), devemos dar um passo além se quisermos compreender
melhor como se estabelecem as relações dadas entre
os admiradores de um artista que morre de forma prematura ou
não, como é o caso do vocalista da Legião
Urbana. Podemos pensar a morte nestes casos como representando
o início de uma vida nova, de novas relações.
Não há mais a presença física, aquela
certeza na existência concreta, mas ficam as lembranças,
resta a obra. E será justamente a impossibilidade de
dissociar obra e artista que vai confirmar o caráter
de idolatria por tanto tempo após a sua morte. O conhecimento
de detalhes da vida do ídolo, além da constante
admiração pelos trabalhos realizados (sejam estes,
canções, filmes, fotos), formam uma unidade com
a imagem eternizada na lembrança. No caso dos músicos
idolatrados na sua grande maioria por jovens, a tragédia
tem papel pertinente no reforço a este sentimento, ou
seja, a morte, de uma forma ou de outra, sempre esteve (e estará)
presente. Qualquer loja especializada em produtos de rock no
país, tem na lista das camisetas mais vendidas as que
trazem estampados os rostos de Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jim
Morrison, Raul Seixas, Renato Russo2.
2-
Durante
esta monografia, fiz visitas a algumas destas lojas, e pude
confirmar que a camiseta mais vendida entre as de artistas
brasileiros era a de Renato Russo, e entre os estrangeiros,
a de Kurt Cobain, o líder da banda americana Nirvana,
que se suicidou com um tiro na cabeça. Ambos são
seguidos a certa distância por Raul Seixas, Jim Morrison
e Jonh Lennon. Todos mortos. |
Se analisarmos as biografias de todos estes artistas, ao mesmo
tempo em que percebemos características especiais que
os distingue das pessoas ao seu redor desde a infância,
fica fácil também reconhecer que o elemento da
tragédia vai permeando muitos acontecimentos em seu dia
a dia, até interromper a trajetória através
da morte (física) de forma abrupta. Será característica
da mitificação póstuma a morte não
esperada, ainda que presente enquanto possibilidade. A opção
por um ritmo de vida intenso, e que passa muitas vezes pelo
consumo de drogas, serve como argumento para a rotulação
destes artistas por parte de setores da sociedade (um público
e mídia mais conservadores) como “malditos”,
“drogados”, “loucos”, etc. Se por um
lado a consagração através de shows e da
venda de discos representa a garantia de uma vida extremamente
confortável, por outro, a vida pessoal parece tentar
assemelhar-se ao conteúdo de muitas das letras eternizadas
pelos fãs. O próprio Renato Russo sintetizou bem
esta idéia na canção “Love in the
afternoon” em que diz “é tão estranho,
os bons morrem jovens...”
Janis Joplin, por exemplo, teria passado toda sua infância
sofrendo humilhações por parte dos colegas
em todos os colégios onde estudou – era uma
espécie de pária na pequena cidade de Port
Arthur, no sul do Texas. Com forte tendência a engordar,
seu corpo era motivo de piada entre os rapazes; na adolescência
seria votada em uma estranha eleição como
a jovem mais feia da escola. Nem o posterior sucesso alcançado
nos anos sessenta como cantora de blues, atenuaria a dor
originada nestes anos. Janis mergulharia fundo numa vida
sexual desregrada, no álcool e na heroína.
Os amigos não conseguem lembrar de muitos momentos
em que a viram feliz, sempre a tinham nas recordações
como uma jovem amargurada e muito triste. Uma dose excessiva
de heroína a mataria no dia 4 de outubro de 1970,
num quarto de hotel. Estava sozinha3.
3-
Ver
Myra Friedman, Enterrada viva – a biografia de Janis
Joplin. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1985. |
Jimi Hendrix, até hoje considerado o maior guitarrista
de todos os tempos, já teria morrido poucos meses antes,
da mesma causa, e também sozinho. Assim como Jim Morrison,
vocalista do The Doors, como Elvis Presley, e tantos outros
ídolos da juventude. No momento da morte, a solidão,
grande contradição a acompanhar a vida destas
“superpessoas”...
Desde o seu surgimento que o rock popularizou-se como
um estilo musical marcado por mortes trágicas e
prematuras. Acidentes automobilísticos e aéreos,
overdoses, suicídios, e mais recentemente, a AIDS,
interromperam muitas carreiras de sucesso mundo afora.
As décadas de 60 e 70, de certa forma imprimiram
esta marca ao rock, se levarmos em consideração
a quantidade de músicos mortos, na sua grande maioria,
de doses excessivas de drogas neste período4
. Cantar os efeitos de drogas como LSD e a heroína5
tornou-se comum nestes anos, assim como morrer de seu
uso inadequado6
. O universo composto em torno destes artistas (empresários,
músicos de acompanhamento, fãs) passaria
a conviver com a idéia da morte sempre como uma
grande possibilidade. A partir do final dos anos oitenta,
a AIDS também colheria de forma devastadora vidas
no mundo musical, como Freddy Mercury, vocalista da banda
inglesa Queen, e no Brasil, Cazuza e Renato Russo. O assassinato
de Jonh Lennon na porta de sua residência confirma
o “trágico” como elemento na sua trajetória,
mesmo sendo uma forma de morte atípica no mundo
artístico. O que temos, portanto, é a desnaturalização
da morte como a consolidação do status de
“superpessoa”, de imortal.
4-
Janis
Joplin, Jimi Hendriy, Jim Morrison e Brian Jones, o guitarrista
do Rolling Stones que disputava com Mick Jagger a preferência
das fãs, morreram todos nesta década. |
5-
Os
Beatles, com a clássica “Lucy in the Sky
with Diamonds” , e os Rolling Stones, com “Brown
Sugar” (como também é conhecida a
heroína), consagraram o tema das drogas como recorrente
nas letras de muitas canções do gênero.
Jonh Lennon, posteriormente em carreira solo, comporia
uma das mais explícitas canções tratando
dos efeitos da dependência de heroína: “Cold
Turkey”, que descreve o estado de um viciado em
um período de abstinência da droga. |
6-
Ver
McNeil, Legs & McCain, Gillian, Mate-me por favor
– uma história sem censura do punk. Porto
Alegre: Ed. L&PM, 1997. |
Um acontecimento envolvendo a morte de um ídolo
geralmente mobiliza diversos setores da sociedade, não
apenas seus fãs, e a mídia, de acordo com
o sucesso do artista, destaca espaços nos seus
programas e publicações, e procura focalizar
todos os detalhes da vida daquele ser tão adorado.
E como os meios de comunicação vivem da
novidade, logo um outro fato ocupará o espaço
daquela morte tão comentada. É no coração
do fã, que lamenta aquela morte como se fosse a
de um familiar querido, que a dor vai se prolongar diante
da idéia de jamais assistir a um show, nem ouvir
nas rádios uma música nova do seu artista
predileto. Diante do desafio de perpetuar na memória
de novos fãs o trabalho de seu ídolo, surge
a necessidade de compartilhar seu material, e de certa
forma, mostrar que aquela morte não foi em vão:
o roqueiro autêntico, eternizado pelo trinômio
“sexo, drogas e rock’n’roll”,
morto de forma prematura e trágica, no auge do
sucesso, apenas confirma as características essenciais
das relações no universo que gira em torno
do gênero musical conhecido como rock.
Não se pode dizer que estes artistas desejavam
morrer no auge do sucesso, com tantos frutos ainda por
colher. Não se trata de uma escolha pela morte.
O universo que gira em torno destes ídolos é
que clama por mortes trágicas, pois uma das suas
maiores atribuições é ser uma fábrica
de mitos. E dentro da chamada indústria cultural,
a idéia de mitificação passa indiscutivelmente
pela morte, ou pelo desaparecimento voluntário
(como o caso de Greta Garbo, por exemplo). Esta adoração
pelo ídolo morto de forma trágica encontra
paralelos na história das civilizações,
e não há nada de novo na sua situação,
a não ser as formas de morrer. Em muitos aspectos
tal situação assemelha-se à do herói
homérico, na Grécia Antiga: ser considerado
como tal estava condicionado a morrer em combate, no auge
da juventude - ou seja, era algo para a posterioridade.
Jean Pierre Vernant, no trabalho A “bela morte”
de Aquiles, salienta que haviam duas formas de morrer
para o homem grego: uma, que o relegava ao esquecimento,
seria a morte na velhice, natural; a outra, em combate,
na linha de frente, em plena juventude, que resultaria
na glória. Tratava-se de uma oposição
entre “esquecimento” e “glória”,
determinante no mundo grego. A idéia de relação
surge clara: “Numa sociedade de confronto onde,
para se fazer reconhecer, é preciso sobrepujar
seus rivais, numa contínua competição
pela glória, cada um está sob o olhar do
outro, cada um existe a partir deste olhar. Se é
o que os outros vêem de si.” Portanto o herói
vive e morre para o amanhã, para ser lembrado de
geração em geração, para ser
cantado pelos poetas. O alcance da condição
heróica, da “glória imperecível”,
passa pelo confronto direto com o inimigo, pela morte
no esplendor da juventude, a “bela morte”.
A “(...) glória imperecível, é,
na bela morte, o extremo de uma honra acima de todas as
honras, relativas e transitórias, da qual um vivente
pode se orgulhar. O agathos aner , o homem de bem, o homem
de coração, obtém com a morte heróica
um status especial: mortalidade e imortalidade, ao invés
de se oporem, se associam à sua pessoa e se interpenetram.”
Morrer na velhice estabelece o caráter dos homens
comuns, ou seja, humaniza. O herói é considerado
como tal, justamente pela idéia contrária:
por ter morrido precocemente. Nossos ídolos de
hoje parecem trazer um pouco desta carga dramática
dos gregos... Analisando com certa distância, não
teremos muitos artistas lembrados até hoje, mais
pela forma com que morreram do que por seu trabalho propriamente
dito?
O poeta a cantar a bravura do herói grego ficou
no passado, assim como o descendente que se envaidecia
contando as aventuras de um ancestral. Foram substituídos
pelos seguidores não mais ligados a laços
familiares; a proximidade física, como se dava
na Grécia homérica, não é
mais um quesito para a identificação entre
as pessoas. A relação estabelecida hoje
entre o seguidor e o líder se dá por inúmeras
vias (discos, livros, televisão), e apesar de ter
consciência de que é apenas parte de um séquito,
para o seguidor a mensagem que vem do líder é
uma dádiva exclusiva. A canção interpretada
pelo cantor no palco, “atinge” a audiência
como um todo, mas também a cada um dos presentes,
seja de maneira intensa ou não. Uns dançam;
outros ficam indiferentes. Mas alguém sempre dirá
que aquela canção estava sendo interpretada
para ele, afinal, o cantor lhe emitia sinais, olhava-o
nos olhos - cantava realmente para ele. Uma mensagem que
parte do indivíduo e é direcionada a outro,
mas que só é bem sucedida se alcançar
a coletividade, o grupo. Para pensarmos melhor a noção
de morte na idolatria, é importante destacar os
pontos essenciais desta relação, quando
o fã tem os primeiros contatos com o ídolo
ainda vivo.
Relação de sentimentos não correspondidos,
a idolatria se caracteriza pela idéia de um indivíduo
que é adorado por um grupo. O ídolo não
sabe quem são seus fãs, não os conhece
por nome, percebe-os como uma multidão de iguais.
O fã conhece todas as músicas do ídolo,
sabe detalhes de sua vida particular, festeja seus sucessos.
E mais: sonha com um possível contato com o seu
cantor predileto, deseja conhecê-lo pessoalmente,
nem que seja por um breve momento. Este desejo de encontro
com o ídolo é um dos principais pontos da
obra de Maria Claudia Coelho, A experiência
da fama – individualismo e comunicação
de massa. A autora discute a relação
de idolatria em torno de atores de televisão. Partindo
de um conjunto de cartas de fãs enviadas a estes
atores7 , Coelho
nos ajuda a compreender aquilo que chama de “a condição
de fã”. Na ânsia de ser reconhecido
pelo ídolo como um fã diferente dos outros,
ele elabora estratégias na busca pela singularização.
Nesta busca, emaranha-se ainda mais nas semelhanças,
pois todos têm o mesmo desejo, e daí surge
o dilema que irá acompanhá-lo: “Esse
dilema transforma-se em um paradoxo no exato momento em
que o fã tenta solucioná-lo. Recorrendo
a diversas estratégias de singularização
(...) o fã mergulha cada vez mais fundo em sua
condição anônima. Esse paradoxo cristaliza-se
na recorrência do uso da expressão ‘fã
número um’(...) É justamente no momento
em que o fã se esforça para ser diferente
que ele se iguala (...)”(Coelho,1999: 61) Esta relação,
segundo Coelho, teria como essência a assimetria:
muitos que desejam ser reconhecidos em sua condição
passional, ou ao menos serem vistos; um que, no seu status
de super-pessoa, deve manter-se isolado da multidão,
confirmando sua singularidade. A análise feita
sobre as cartas expõe esta essência, pois
enquanto os fãs gastam tempo elaborando frases
de efeito com o intuito de fazer-se notar pelo ídolo,
este nem ao menos dá-se ao trabalho de respondê-las.
Pedidos de fotos com dedicatória, uma simples frase,
um autógrafo, tudo isso se perde em envelopes que
muitas vezes nem chegam a ser abertos. A admiração
ao ator, ligada quase plenamente à imagem (seja
impressa ou em vídeo-gravações),
dá à foto autografada um caráter
especial, que ultrapassa o seu sentido original: “(...)
a insistência em receber uma foto autografada deve
ser entendida como parte de um pedido mais ambicioso.
A foto autografada atesta o recebimento da carta, e mais
ainda, pode também desempenhar o papel de uma resposta,
estabelecendo alguma reciprocidade na relação”
(Coelho, 2000:59). Uma frase destas cartas sintetiza a
idéia: “Enquanto não recebo resposta
continuarei a trabalhar ativamente à frente do
seu fã-clube, sem perder as esperanças de
receber uma foto, um bilhete, algo que me assegure que
recebeu e leu esta carta.”(Idem) Mesmo que o material
desejado por fãs de artistas ligados ao mundo musical
possuam diferenças em relação aos
do mundo das telenovelas8
(fonte do estudo de Coelho) todos eles sonham com o dia
em que poderão encontrar seus ídolos, encontro
este bastante improvável9,
pois não há reciprocidade na relações
de idolatria.
Teríamos, portanto, o fã convivendo com
dois desejos: um, o de ter tudo a respeito do ídolo
(fotos, reportagens, vídeos, etc.), e outro, o
de estabelecer um contato, nem que seja ao menos para
um aperto de mão, um abraço. Porém,
a idéia de reciprocidade, tão desejada nas
relações de idolatria, perde toda a razão
de ser quando o artista morre. O fã, mergulhado
em sofrimento diante do fato, sabe que agora não
há para quem escrever cartas, não há
mais shows para assistir. Resta-lhe tudo o que ficou produzido
e a admiração de outros fãs, que
serão suas motivações para continuar
em frente. Na comunhão com seus iguais encontrará
sua principal base de conforto. O fã-clube acaba
se tornando o ponto de referência para qualquer
assunto relacionado com o ídolo. A paixão
do outro funciona como reforço à sua, e
uma vez somadas, o desejo passa a ser sua propagação.
É neste sentido que todo membro de um fã-clube
trabalha com o intuito de divulgar a obra do artista entre
os que pouco a conhecem, exercendo um papel semelhante
ao dos missionários religiosos. O ídolo
passa a ser para o fã, mais que um artista, mas
uma causa a ser defendida. E não há como
se lutar por uma causa solitariamente.
7-
Coelho
teve à sua disposição um conjunto
de quase trezentas cartas de fãs cedidas por dois
dos dez atores que entrevistou. No momento em que as cartas
foram enviadas, ambos tinham papéis principais
em novelas, gozando de enorme popularidade. |
8-
Os
fãs de artistas musicais têm sempre a possibilidade
de adquirir a gravação de um show de maneira
“clandestina” – as feitas em início
de carreira, sem recursos, costumam ser as mais apreciadas.
Assim como o fã da atriz deseja uma foto autografada,
o do cantor quer a gravação de um show a
que poucos assistiram. A “posse” desta gravação
lhe garante o status de um fã com “algo mais”
que os outros, como aquele que possui a foto com dedicatória,
autografada, da atriz principal da telenovela. |
9-
Dos
fãs entrevistados para este trabalho, apenas Marcelo
teria conseguido estabelecer um contato com membros da
Legião Urbana. Acompanhando a banda em shows pelo
Brasil, diz ter sido recebido nos camarins por duas vezes,
e inclusive possui uma entrevista gravada com Dado Villa-Lobos
e Marcelo Bonfá num desses encontros. |
No capítulo seguinte procuro apresentar, através
de histórias de fãs da Legião Urbana,
fatos que podem confirmar os argumentos acima. Assim como
a idéia do termo “legião” pressupõe,
seus fãs avançam e conseguem manter a popularidade
de seu ídolo em alta entre os mais jovens, barrando
qualquer possibilidade do “seu trono” ser tomado.
Mês que vem, a conclusão deste estudo.
(aproveite para conhecer
o site "O
Sopro do Dragão", do fã-clube da
Legião)
|