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Parte 1
( III ) O MAL EM “ALUCINAÇÕES DO PASSADO”
( “JACOB’S LADDER”
)
Jacob é ferido por uma estocada de fuzil ao tentar
escapar de uma chacina, saberemos mais tarde, promovida
por um companheiro enlouquecido que massacra toda sua
própria tropa (cena típica e tristemente
americana). O filme, que assim se inicia, busca a partir
daí um desvendamento do acontecido, tendo como
foco e protagonista, Jacob, e como tema ou problema, o
“mal”. Jacob, mortalmente ferido, empreende
um acerto de contas consigo mesmo, uma retrospectiva se
desencadeia (daquelas que, diz-se, ocorre com os moribundos,
que passariam à limpo as imagens de toda a sua
vida, antes de morrer): uma fantástica aventura
de auto-conhecimento, elucidação. Percorre-se
toda uma galeria de afetos, emoções, alegrias
e tristezas, fantasmas, monstros, mêdos, dúvidas
e certezas. Um violento confronto entre os poderes da
dúvida, do ocultamento, das trevas e da destruição,
em uma palavra: da morte, de um lado (“Você
já está morto”, escuta repetidamente
Jacob); e de outro lado, as forças da luz, da lucidez,
do destemor, do amor, isto é, da vida: “Os
demônios só são demônios quando
nos deixamos perturbar por eles, se os acolhemos em paz
eles tornam-se os anjos da nossa purificação.”
Estranha colocação, em princípio,
que se tornará, no entanto, a chave do problema,
como veremos.
As cicatrizes no espírito de Jacob, são
as verdades que as experiências, boas ou más,
depositam numa linguagem secreta em nossa memória.
Os afetos ganham corpos humanos a representá-los,
logo trocam de corpos; toda uma imagética onírica
se desenrola na qual, por sua vez, os corpos, variam de
afetos e assim a situação vivida é
resgatada e reprocessada e se alinhava a cadeias de acontecimentos
não vividos, produzidos pela imaginação,
no intuito de acelerar a compreensão, como se fosse
um “acelerador de partículas” da consciência.
Alucinações, rostos que trazem idéias,
trechos de sonhos, lembranças reais e situações
artificiais. Os demônios são a queima e destruição
do mal, pois o mal acaba por destruir-se. É esta
a cena nuclear do filme: “Irmão destruindo
irmão”, a chacina dos próprios companheiros,
no enlouquecimento da guerra e da droga denominada, a
“escada”. O mal é auto-destrutivo,
a violência precisa da violência. O mal é
a distorção da sensibilidade e da percepção.
A guerra e a “escada”, a droga para “estimular
os soldados no combate”, é o “tiro
pela culatra”, foge ao controle. Mas a “escada”,
nada mais é que a aceleração da insanidade
da guerra . Jacob descobre que trata-se de uma experiência
do governo americano, cujas cobaias são os próprios
soldados americanos que ingerem a droga sem o saber. Soa-nos
familiar: “Rambo”, “Duro de matar”,
“O Predador”, “Mad Max”. Carnificina
de imagens e um modelo de heroísmo. Livre comércio
de armas. A política externa americana. Estética
de guerra. Escutemos Benjamim: “A guerra e somente
a guerra permite dar um objetivo aos grandes movimentos
de massa, preservando as relações de produção
existentes.” Em seguida ele cita o manifesto sobre
a guerra colonial da Etiópia, formulado por Marinetti,
que nos parece uma concepção cenográfica
de uma dessas produções belicistas da indústria
cinematográfica norte-americana atual:
“Há 27 anos,
nós futuristas contestamos a afirmação
de que a guerra é antiestética...Por isso,
dizemos:...a guerra é bela, porque graças
às máscaras de gáz, aos megafones
assustadores, aos lança-chamas e aos tanques, funda
a supremacia do homem sobre a máquina subjugada.
A guerra é bela, porque inaugura a metalização
onírica do corpo humano. A guerra é bela,
porque enriquece um prado florido com as orquídeas
de fogo das metralhadoras. A guerra é bela, porque
conjuga numa sinfonia os tiros de fuzil, os canhoneios,
as pausas entre duas batalhas, os perfumes e os odores
de decomposição.
A guerra é bela,
porque cria novas arquiteturas, como a dos grandes tanques,
dos esquadrões aéreos em formação
geométrica, das espirais de fumaça pairando
sobre as aldeias incendiadas, e muitas outras...Poetas
e artistas do futurismo...lembrai-vos desses princípios
de uma estética da guerra, para que eles iluminem
vossa luta por uma nova poesia e uma nova escultura!”
( Benjamim, 1986; p.195/196 )
Como é que esse tipo de proposta vinga? Em que
condições essas “flores do mal”
podem vir a florescer? O que é o mal senão
os sentimentos que recusamos, aprisionamos, humilhamos
e que perdem o caminho, por assim dizer, em nosso espírito,
corpo, coração, ao mesmo tempo que recusamos,
também, o seu reflexo, o seu duplo no mundo? O
que já não é tão simples como
apenas reprimir em si mesmo.
A consciência ou “luz” é a possibilidade
de reagrupar e religar, segundo uma nova composição,
numa nova disposição, as populações
inumeráveis que nos habitam, fazendo com que co-habitem,
mesclem seus elementos, façam circular seus componentes:
“melting pot”. Que são os demônios,
como diz Jezie, senão “gentalha”, mendigos,
“low life people”, que ajudamos a produzir,
no mínimo por omissão e com os quais temos
que conviver? Para cada um dos que encontramos, nas ruas
ou nos becos, um outro correspondente, sob a forma de
afeto, é produzido em nossas células, difunde-se
em nosso sangue, imprime-se em nossos nervos. Que são
as “forças do mal” senão o mal
que fazemos, impomos ou simplesmente presenciamos e com
o qual convivemos, passando ao largo? A vitalidade que
trazemos pulsando em nós vai sendo conspurcada
pela vida violentada no outro, até que se torne
inconsciência, insensibilidade, depois desprezo,
ódio e finalmente crueldade. A inversão
desse desconhecimento, desse desvincular-se do mundo e
de si mesmo, desse desarticular-se do meio em que se vive,
das cenas em meio às quais se vive, reside no desapego
e determinação do anjo/médico, nas
visões de Jacob. Ele representa tudo o que leva
ao conhecimento e compreensão das idéias,
situações e sentimentos que compõem
a trama complexa da vida, realizando assim o que os escolásticos
denominavam explicatio (“explicação”,
que significa literalmente, “abrir o que estava
dobrado” e se quisermos ser mais explícitos,
“desamassar o que estava embolado”). Manobra
de descomplicação, enfim: compreender o
seu papel nos movimentos de vida que se entrelaçam.
Nesse ponto, seria interessante estabelecer uma analogia
com o conceito de cultura, segundo o filósofo francês
Michel Serres, da maneira como ele o expôs numa
entrevista na T.V. Cultura, em novembro de 1999. Dizia
ele que cultura é fundamentalmente “mestiçagem”,
sair de si e ir de encontro ao outro. Sair do “parasitismo”
e partir para uma espécie de “simbiose”.
Os indivíduos devem deixar de ser abusivos, parasitas,
no sentido de que devem desprender-se da dependência
em relação aos pais, em relação
aos professores, em relação à sociedade
e buscar entre si o que ele denomina o “contrato
natural”, ou seja, essa espécie de “simbiose”.
A Sociedade e a Cultura, não menos que a Natureza
e a Biologia são “simbiose”, isto é,
interdependência, troca de favores.
A globalização, em seu aspecto positivo,
apontaria nessa direção: Aliança,
Rede Global (se os homens vão ou não por
aí, é outra história). Mais uma vez
aparece aqui a idéia de mestiçagem, como
mescla de diferentes modos de sentir, pensar, agir, criar
soluções e formular problemas. Serres menciona
as condições já dadas na realidade
brasileira, apesar do ceticismo demonstrado por alguns
entrevistadores, todos brasileiros, valorizando a mestiçagem
étnica, real mistura de raças no Brasil,
como formação de um povo e de um homem multiracial
carregando, por conseguinte, em seu corpo, em si mesmo
enquanto indivíduo, essa soma de diferenças,
essa diversidade de cores, de tonalidades físicas,
afetivas, intelectuais, artísticas, culturais,
criativas enfim. Em seguida, perguntado à cerca
da perda de valores, da memória, do real (devido
ao advento da “realidade virtual”), por parte
dos jovens e se isso constituiria uma ameaça, respondeu:
ao deixar de ser quadrúpede e tornar-se bípede,
o homem perdeu algumas funções, as mãos
como apoio para locomoção e a boca como
órgão de prender (abocanhar). Em contrapartida,
ao tornar-se livre, a mão passa a pegar as coisas,
manuseá-las e com isso desenvolve sua capacidade
de uso, à ponto de mais tarde podermos ter o pianista,
o cirurgião e até mesmo o prestidigitador!
A boca, por sua vez, tendo sido liberada da função
de pegar os alimentos, pode tornar-se órgão
da fala! É isso a vida, só às custas
da perda de certas coisas abre-se espaço para o
surgimento de outras. Perdem-se certas condições,
inventam-se novas. O “perder” abre-se para
um “novo”: um inventar, um descobrir, um transformar.
( IV )
CONCLUSÃO: “O IMEDIATO É O SOCIAL”
Medos das ameaças e dos castigos sugeridos pelas
crenças, superstições e dogmas induzidos
por autoridades eclesiásticas, militares e científicas
através de dispositivos ideológicos, químicos,
eletrônicos, cibernéticos. Seitas, drogas,
televisão, computadores. Fantasias, ficções,
realidade virtual. Delírio, “bicho-papão”,
“mula-sem-cabeça”, demônios e
apocalipse. Sermões, discursos políticos,
imprensa. Nào seria tudo, no fundo, a mesma coisa,
com roupagens diferentemente sedutoras, na medida exata
para as mentes sugestionáveis de cada época
e de cada lugar? O “desvirtuador” usa o disfarce
próprio a cada período, o instrumento ideal
segundo cada época, o meio de comunicação
ideal.
No período medieval, por exemplo, bastava uma
boa história à cerca dos castigos infinitos
após a morte para aquele que ousasse mover um dedo
que fosse contra a ordem estabelecida, a terrível
aliança do poder pastoral com o poder temporal.
Mais recentemente, o poder de anular a vontade ganha um
novo avatar, que vem se juntar às duas outras potências
alienadoras já existentes. À via ideológica
de alienação, que se caracteriza pela união
de indivíduos em torno de idéias exclusivistas
e segregacionistas de caráter político,
étnico, religioso, etc. E à via química,
que começa com um certo uso da medicina social,
em sua relação com o problema da produtividade,
como estudado por Foucault, passa pela psiquiatria e culmina
com a difusão das substâncias psicotrópicas
como “paraísos artificiais”, à
partir dos anos 60. Vem se somar a esses dois poderes
a via cibernética, a informática, que se
desdobra no controle das atividades e funções
sociais de serviço e no desenvolvimento da chamada
“realidade virtual”, um mundo sem que seja
necessário sair do lugar, nem mesmo sair-se de
si, liberando o homem para uma passividade e inércia
de consequências insuspeitadas no que se refere
à sua liberdade criativa.
Diante desse quadro torna-se essencial a busca de meios
de resistência e oposição a essas
formas de dominação, nos campos da filosofia,
psicologia, ciências políticas e sociais
e artes. A busca de aliados que se voltem, de um lado,
no sentido de desembaraçar o novelo em que se tornou
o inconsciente, enquanto campo dos desejos e das criações,
visando uma clareza conceitual e prática e à
partir daí, melhores condições de
luta através da teoria e da prática relativas
à questão da produção da subjetividade.
E de outro lado, também aliados na área
científico-tecnológica, que se dediquem
a uma estratégia de desmontagem dos aparelhos de
dominação técnicos, tecnológicos,
sociais e cibernéticos, reorientando todo o encaminhamento
dos usos e funções desses aparelhos e instrumentos.
É preciso determinar quais os objetivos práticos
e as ações cruciais a serem desencadeados
e que aspectos nocivos das práticas sociais devem
ser analisados e eventualmente desmistificados e denunciados.
Por exemplo, o consumo de drogas como recurso questionável
para a expansão da consciência, como o foi
para muitas sociedades tribais, em seus usos religiosos
e para a juventude, nos anos 60 e 70, como forma de “liberação
da consciência”. Em primeiro lugar por ser
prejudicial ao corpo e principalmente por estar ligado
inapelavelmente, hoje em dia, ao poder financeiro e à
criminalidade (se é que não o esteve sempre).
Hoje em dia, quando uma criança maltrapilha aproxima-se
para pedir dinheiro, damo-nos conta de que não
há mais lugar para o chamado “prazer pessoal”,
ou seja, que o prazer deve tornar-se transpessoal, isto
é, fraternal (se é que há algum sentido
em se falar de uma “Nova Era”, deve ser este).
Cada ato é político, cada atitude deve ser
cunhada em solidariedade. É o que nos mostrou o
Betinho: O IMEDIATO É O SOCIAL. Não há
mais nações, instituições,
ideologias, teorias que devam ousar ser pensadas separadamente.
Estamos todos irremediavelmente “enganchados”.
Cada ato ou omissão de cada um é um nó
de força ou o desatar de um nó numa imensa
rede. As grandes cidades são excelentes lugares
para que constatemos essa realidade, basta olhar em torno
com olhar profundo, quer dizer, com “profundidade
de campo”. Todos devemos buscar essa profundidade
de olhar, não só em nossas respectivas profissões,
como no cotidiano puro e simples e mesmo nos momentos
de lazer e descontração: SOLIDARIEDADE SEM
TRÉGUAS. Fernando Pessoa nos mostra como (em algo
que talvez pudéssemos chamar “socialismo
pessoano”):
“Vou num carro elétrico,
e estou reparando lentamente, como é meu costume,
em todos os pormenores das pessoas que vão diante
de mim. Neste vestido da rapariga que vai em minha frente
decomponho o vestido em o estofo de que se compõe,
o trabalho com que o fizeram_ pois que o vejo vestido
e não estofo_ e o bordado leve que orla a parte
que contorna o pescoço separa-se-me em retrós
de seda, com que se o bordou, e o trabalho que houve de
o bordar. E imediatamente, como num livro primário
de economia política, desdobram-se diante de mim
as fábricas e os trabalhos_ a fábrica onde
se fez o tecido; a fábrica onde se fez o retrós,
de um tom mais escuro, com que se orla de coisinhas retorcidas
o seu lugar junto ao pescoço; e vejo as sessões
das fábricas, as máquinas, os operários,
as costureiras, meus olhos virados para dentro penetram
nos escritórios, vejo os gerentes procurar estar
sossegados, sigo, nos livros, a contabilidade de tudo;
mas não é só isto: vejo, para além,
as vidas domésticas dos que vivem a sua vida social
nessas fábricas e nesses escritórios...
Todo o mundo se me desenrola aos olhos só porque
tenho diante de mim, abaixo de um pescoço moreno,
que de outro lado tem não sei que cara, um orlar
irregular verde escuro sobre um verde claro de vestido.
Toda a vida social jaz
a meus olhos.
Para além disto
pressinto os amores, as secrecias[sic], a alma, de todos
quantos trabalharam para que esta mulher que está
diante de mim no elétrico, use, em torno do seu
pescoço mortal, a banalidade sinuosa de um retrós
de seda verde escura fazenda verde menos escura.
Entonteço. Os bancos
do elétrico, de um entre-tecido de palha forte
e pequena, levam-me a regiões distantes, multiplicam-se-me
em indústrias, operários, casas de operários,
vidas realidades, tudo.
Saio do carro exausto e sonâmbulo.Vivi a vida inteira.”(
Pessoa/ Soares,1995; p.93/94 )
Dois outros autores associam a condição
para a efetiva realização da solidariedade
a uma situação de extrema vulnerabilidade
dos indivíduos. Marshall Berman chama a atenção
para as circunstâncias em que se dá a transformação
do rei Lear, na tragédia de Shakespeare. Só
o homem desacomodado, isto é, destituído
de seus privilégios e salvaguardas, despido de
suas proteções e confortos, e com isso,
exposto às intempéries da vida, em uma palavra
“literalmente nu perante a natureza”, considera
Berman, é capaz de solidarizar com seus semelhantes,
especialmente os mais “dessemelhantes” dentre
eles, os miseráveis, e viver a condição
humana em sua plenitude.
“Pobres miseráveis
desnudos, onde quer que estejam,
Que aguardam o golpe dessa impiedosa tormenta,
Como suas cabeças desabrigadas, seus ventres vazios,
Seus rotos e imundos farrapos poderão protegê-los
De intempéries como estas? Oh, dei muito pouca
Atenção a isso! Toma esse remédio,
oh pompa inútil:
E tu, que possas sentir o que os miseráveis sentem,
Para que o supérfluo de tua dor se espalhe entre
eles
E mostre bem clara a justiça dos céus.”
( Rei Lear; III, 4, 28-36 )
“Seu triunfo [de Lear] consiste
em transformá-lo em algo que ele jamais havia
sonhado ser, um ser-humano. Aqui uma esperançosa
dialética ilumina a trágica intempérie
e a desgraça. Sozinho no vento, no frio e na
chuva, Lear desenvolve a visão e a coragem para
romper com sua solidão, para tocar seus semelhantes
no encalço de calor mútuo. Shakespeare
nos diz que a ameaçadora e nua realidade do ‘homem
desacomodado’ é o ponto a partir do qual
uma reacomodação pode ser conseguida,
a única base sobre a qual uma verdadeira comunidade
pode ser construída.” ( Berman, 1986; p.105
)
Em meio à luta pela sobrevivência
é possível ao homem atingir aquele “grau
zero de subjetividade”, em que deixa de ser um indivíduo,
uma pessoa e torna-se aquele ser cuja largueza de espírito
é capaz de abarcar, acolher as experiências de
todos os outros homens e ao qual todos os indivíduos,
por sua vez, sentem-se impelidos a conjugar suas próprias
experiências. Subjetividade pura, sem sujeito, ‘pura
imanência’, como diz Deleuze: “uma vida”.
“Um canalha, um malfeitor por
todos desprezado, é encontrado à morte
e eis que os que dele passam a cuidar manifestam um
certo tipo de envolvimento, de respeito e de amor ao
menor sinal de vida do moribundo. Todo mundo luta para
salvá-lo, à ponto de que, do fundo do
seu coma, o próprio vilão sente algo de
doce penetrá-lo. Mas à medida em que ele
retorna à vida, seus salvadores se fazem cada
vez mais frios, e ele reencontra toda sua grosseria,
sua malvadeza. Entre sua vida e sua morte, há
um momento em que trata-se de ‘uma’vida
lutando contra a morte. A vida do indivíduo deu
lugar a uma vida impessoal e no entanto singular, que
libera um puro acontecimento destituído dos acidentes
da vida interior e exterior, quer dizer, da subjetividade
e da objetividade do que acontece. ‘Homo Tantum’,
do qual todos se compadecem e que atinge uma espécie
de beatitude.”( Deleuze, 1995; p.5)
Profundidade de perspectiva para fora de si
mas também para dentro de si mesmo; para quebrar as
correntes do próprio passado ( que detém a visão
clara do presente ) e ajudar a construir os alicerces do futuro
coletivo deslocando-o da terceira para a primeira pessoa do
plural. Isso requer coragem e concentração,
firmeza e clareza. Por exemplo, no exato momento em que escrevo
essas linhas, ouço, em crescendo, um bloco de carnaval
que sobe a rua . O barulho aumenta progressivamente. Esse
tipo de coisa tem o poder de nos distrair. “CARNAVAL,
FUTEBOL E BEBIDA PRÁ ESQUECER”, fazem parte da
“identidade nacional”. E no entanto, tudo isso
é uma mecânica e exaustiva repetição
do que um dia foi espontaneidade, alegria e arte. “Se
a música é ruim, aumenta o volume”. “Se
a bebida não faz mais efeito, aumenta a dose”.
“Se o futebol é medíocre, briguemos nas
arquibancadas”. Mas não se trata aqui de amargura,
uma vez que há uma alternativa a essa embriaguês
coletiva em que vivemos: é o voltarmo-nos para o COTIDIANO
IMEDIATO, o que está “diante de nossos narizes”
na lucidez passível de ser construída em cada
pequeno ato.
BIBLIOGRAFIA:
BENJAMIM, WALTER. “Obras Escolhidas; Magia e técnica/Arte
e Política.” São Paulo: Brasiliense,
1986.
BERMAN, MARSHALL. “Tudo que é sólido
desmancha no ar.” São Paulo, Companhia das
Letras, 1986.
DELEUZE, GILLES_ “L’imanence: une vie...”
in Philosophie n.47, setembro de 1995; Paris, De Minuit.
DELEUZE, GILLES e GUATARI, FÉLIX_ “Mil platôs”vol.
3, São Paulo, Ed. 34, 1996.
PESSOA, FERNANDO_ “Livro do Desasossego por Bernardo
Soares”; São Paulo, Brasiliense, 1995.
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