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- Paranóia
e Poder:
Política e Psicologia de Massa - Parte 1
Por Emanuel Tadeu Borges
Dois aspectos marcam o exercício do poder político
em sua forma totalitária (nas tiranias e ditaduras):
o expurgo dos que pensam diferente, dos que se opõem,
criticam ou simplesmente questionam o Estado e em certos
casos, o extermínio em massa dos adversários
(como o fizeram Stalin, Hitler, Mao, Pol Pot, Ceaucescu,
entre outros); e a necessidade de suprimir qualquer idéia
ou forma de ideologia que seja diferente daquela professada
e posta em prática pelo Estado (a queima de livros
é a manifestação, a um só
tempo, concreta e simbólica desta atitude).
O absolutismo ou totalitarismo dos regimes ditatoriais
é a paranóia projetada no plano político:
“solidão coletiva”, sempre liderada
por um indivíduo que nega a alteridade e estende
projetivamente seu ódio sobre uma massa apta a
captá-lo e realizá-lo; sempre uma coletividade
agindo de modo homogeneamente irracional e portanto em
condições de disseminar e desencadear esse
ódio no plano social. A paranóia é
uma forma patológica de egocentrismo: medo do outro
e busca da solidão, medo da noite e da escuridão,
da morte e de tudo o que é exterior. O mal, inexoravelmente,
acaba por exterminar a si próprio. O mal, a paranóia,
a solidão, o medo e o ódio formam um composto.
São, talvez, o resultado da ausência de amor
e de apoio, de nutrição, de princípios
éticos, de carinho, de diálogo, de confiança,
de limite vividos, principalmente na infância.
A outra característica a que aludimos é
a queima de livros e a eliminação de toda
e qualquer instituição ou grupo que desenvolva
idéias que não interessem aos poderes constituídos
(como no caso da queima da biblioteca de Alexandria por
Nabucodonosor ou dos livros “subversivos”,
em praça pública, durante o nazismo, para
citar apenas dois exemplos historicamente marcantes, dentre
tantos outros). “Contrário à nossa
ideologia”, nesses casos, significa: “não
deve ser simplesmente possível pensar uma só
idéia diferente das nossas”. É proibido
pensar ou pelo menos, comunicar o que se pensa. E não
pensar significa perder a capacidade de analisar, a possibilidade
de problematizar (quer dizer, pôr em questão
o real), de exercitar o pensamento para abrí-lo
a novas perspectivas, lançá-lo na descoberta
de novas alternativas.
Nos totalitarismos, a pluralidade de pensamentos deve
dar lugar ao “Pensamento Único”, essa
figura tão assustadora, estático, estagnado,
morto. A morte do pensamento corresponde à morte
do novo, da possibilidade de criação, da
vontade individual e dá lugar ao comportamento
de massa, irracional, instinto cego guiado pelos impulsos
mais baixos, pelas pulsões animalescas, pela vontade
de homogeneidade e igualdade .mecânicas. A morte
do pensamento é a vida do instinto de massa e de
um sinistro desejo de morte, bestialização
do comportamento coletivo. Aquele que lidera através
do medo e do terror, quer a aniquilação
dos adversários mas traz, também, latente
em si, a destruição dos aliados, a destruição
de qualquer outro e em última instância,
a destruição total, o silêncio, o
vazio e no episódio final de seu delírio,
a morte de si mesmo, pois já realizou seu projeto
de negação total e pode enfim dormir, abolir-se,
lançar-se no vazio, negar a si próprio,
como corolário de seu projeto. Deleuze e Guatari:
É curioso como, desde o início,
os nazistas anunciavam para a Alemanha o que traziam:
núpcias e morte ao mesmo tempo, inclusive a sua
própria morte e a dos alemães. Eles pensavam
que pereceriam mas que seu empreendimento seria de toda
maneira recomeçado: a Europa, o mundo, o sistema
planetário. E as pessoas gritavam ‘bravo!’,
não porque não compreendiam mas porque queriam
essa morte que passava pela dos outros. (...) O romance
de Klaus Mann, ‘Mephisto’, oferece amostras
de discursos ou de conversas nazistas perfeitamente habituais:
‘O heroísmo patético fazia cada vez
mais falta em nossa vida.[...] Na realidade, não
caminhamos a passo militar, avançamos titubeando.[...]
Nosso amado Führer nos arrasta para as trevas e o
nada.[...] Como nós, poetas, que mantemos relações
particulares com as trevas e o abismo, não o admiraríamos
por isto.[...] Raios de fogo no horizonte, valetas de
sangue em todos os caminhos, e uma dança de possuído
dos sobreviventes, daqueles que ainda estão poupados,
em torno dos cadáveres.’ O suicídio
não aparece como castigo mas como coroamento da
morte dos outros. É sempre possível dizer
que se trata de um discurso confuso e de ideologia, nada
mais que ideologia. Mas não é verdade: a
insuficiência das definições econômicas
e políticas do fascismo não implica a simples
necessidade de se acrescentar a elas vagas determinações
ditas ideológicas. (...) Reencontramos sempre nesses
enunciados o grito estúpido e repugnante, ‘Viva
a morte!’, até no nível econômico,
onde a expansão do rearmamento substitui o aumento
do consumo, e onde o investimento se desloca dos meios
de produção para os meios de pura destruição.
(...) O telegrama 71_ ‘Se a guerra está perdida,
que pereça a nação’ _ no qual
Hitler decide somar seus esforços aos de seus inimigos
para consumar a destruição de seu próprio
povo, aniquilando os últimos recursos de seu habitat,
reservas civis de toda natureza (água potável,
carburantes, víveres, etc.) é o desfecho
normal... (DELEUZE e GUATARI, 1996; p.113,114 e 115)
Estão dados aí os principais elementos:
um certo messianismo, um certo ritualismo e o espírito
suicida do “mal”. Usando a expressão
cunhada por Deleuze e Guatari: paixão de abolição.
AS PALAVRAS E A MEMÓRIA
EM “1984” ( O FILME )
Podemos identificar as duas formas fundamentais de resistência
em OCEANIA, ante o jugo da INGSOC (a instituição
representativa do poder do “BIG BROTHER”,
no drama de Orwell):
O pensamento, como potência de verificação
da realidade, problematização do real e
a linguagem não-oficial como forma de expressão
potencialmente revolucionária “dialeto de
gueto”, com sua carga de humor e seu caráter
sugestivo, isto é, motivador e fortalecedor do
pensamento, estreitando sua relação com
o concreto.
Em segundo lugar, a memória, como forma de resgatar
os laços afetivos, meios naturais de interatividade
e solidariedade entre os indivíduos, rompendo assim
o isolamento amedrontado, a solidão paranóica
gerada pela vigilância anônima e onipresente
e trazendo à cena o até então abolido
campo das possibilidades, da criação, o
virtual, o “futuro em pessoa”. As modalidades
da memória, as atividades retrospectiva e criativa,
isto é, a memória do passado e a memória
do futuro, respectivamente, são acionadas pelo
contato dos corpos, os gestos e as melodias (em substituição
ao isolamento dos corpos, aos maneirismos, catatonias
e às palavras-de-ordem). São os três
modos do sentimento: o contato dos corpos ou sensualidade,
desperta o afeto; os gestos são sempre dirigidos
a outros; dizer “eu gosto de você” é
uma forma de melodia, constitui um “território
afetivo”.
Ambas as formas de resistência, o pensamento e a
memória, confundem-se com um exercício que
as articula e as atualiza: o do desejo ou da vida como
movimento incessante de ligação dos fluxos
ou linhas de expressão da Natureza: homens, animais,
coisas. EXPERIMENTAÇÃO.
Como romper com a necessidade de reconhecer as fórmulas
que nos são inculcadas e com as quais nos identificamos,
naquilo que presenciamos? Como escapar de recorrer a essas
receitas prontas, dispostas em fila no nosso cotidiano
como um pelotão de decodificadores, analisadores
e que se antecipam a um fundo mais àgil e plástico,
que se move sem cessar num nível mais profundo
do pensamento? Parece que reside aí a importância
de parar o diálogo interno (Castaneda): esse conjunto
de idéias pré-concebidas, convicções,
gostos, opiniões, que constituem os “postos
avançados de nossa subjetividade”, os reais
mantenedores de nossa identidade pessoal a ressoar nas
câmaras de nossa consciência.
Há uma cena no filme em que se coloca a necessidade
de purgar a linguagem dos termos nela introduzidos pelo
“inimigo interior”, denominados “crimes
de pensamento”, através de uma renovação
compulsória e constante do vocabulário a
ser utilizado, possibilitada pela sucessão vertiginosa
de edições revisadas do dicionário
contendo a língua oficial (“Já estamos
na décima edição...”). É
óbvio que isso nos remete ao caráter revolucionário
do patoá, da gíria, dos dialetos, que exprimem
as condições materiais reais dos grupos
nos quais são produzidos, mesmo sob condições
de repressão, expondo os problemas, os movimentos
e as práticas, pela incessante renovação
dos termos, respondendo diretamente ao devir criativo
das ações concretas que se efetuam no grupo.
Além do mais, o caráter codificado da linguagem
mantém o sigilo, o ocultamento necessário
a qualquer forma de resistência, restringindo a
eficácia da mensagem àqueles que detêm
o sentido das palavras. Isto mantém o opressor
sempre um passo atrás, vendo-se obrigado a forjar
meios que levem à descoberta dos segredos daquele
linguajar (problema da manutenção do segredo
e da necessidade de renovação constante
dos termos e do seu sentido e cuidado com o risco da traição
ou da infiltração do inimigo, para a minoria
em posição de resistência ).
A memória, por sua vez, está ligada ao afeto.
Talvez possamos dizer que memorizamos apenas o que nos
afeta, em maior ou menor grau. Talvez possamos ir mais
longe e afirmar que memorizamos mais nitidamente quanto
mais intenso for o afeto. Se isto for correto, para que
as pessoas percam a faculdade de produzir uma memória
e assim fiquem mais facilmente à mercê dos
mecanismos de submissão, torna-se necessário
impedir que elas se toquem ou pelo menos que não
se afaguem, mesmo que este afago seja um aperto de mão...
Em outras palavras: é preciso formar soldados e
não cidadãos, pois a função
do soldado é negar o outro, eliminá-lo;
“matar ou morrer”. Ou então que uma
intensidade limite produza a necessidade de esquecer.
Ser forçado a agir contra a sua própria
natureza. É preciso que a tortura, a dor e a humilhação
venham junto a palavras- de- ordem. Que a violência
mais profunda, mais secreta, mais íntima abra caminho
para o opressor e esmague o querer (como uma bota enorme
esmagando o rosto de um homem: o emblema do poder, forjado
por Orwell). O dever esmaga o desejo, o rosto se dissolve
na multidão de iguais. Pois o dever se exprime
por meio de dogmas detendo as potências da vida,
bloqueando-as e impedindo sua expressão. O dogma
impede a experimentação, condição
da criação, enquanto produção
do novo. Impede a mudança.O DEVER atinge o paroxismo:
Nada de memória! (Nada de passado!) Nada de ambição!
(Nada de futuro!) Nada de sentimento ou emoção!
( Nada de presente! ) NADA DE PENSAMENTO! A liberdade
passa a ser um vão estreito em meio a centenas
de olhares controladores. Em cada cabeça a mesma
sentença. Em cada corpo o mesmo impulso, os membros
na mesma ação sincronizada (trabalho). Atividade
produtiva. Aumento da produção. Guerra eternizada.
Volto-me para mim mesmo: vejo o PARTIDO. Olho adiante:
há o INIMIGO. Não há mais verdade
e erro, apenas CERTEZA. Mas não é isso o
DEVER: “não ter porque pensar, não
precisar pensar?” O dever chega a seu cúmulo:
NÃO HÁ MEMÓRIA. “2+2 são
5,4,3,2...qualquer coisa...” O inimigo de hoje é
o aliado de amanhã; o aliado de hoje, o inimigo
de amanhã, portanto cuidado! A amizade é
um risco mortal. “Eles podem te obrigar a dizer
o que quizerem mas não podem mudar teu sentimento”,
diz, todavia, a personagem Julia.
E como folhas ao vento, a vida esvoaça. O DESEJO
vaza pela menor das frestas. No vão entre inúmeras
cabeças, em meio à propaganda do partido,
que ressoa dos alto-falantes por toda parte, Julia e Simpson
se entreolham. O sentimento se faz melodia no som da canção
da velha lavadeira e no seu andar ondulante. Música
e dança. Um canto pode marcar um território
de caça, demarcar um habitat, acompanhar uma prática
específica (lavar roupa), enunciar ou despertar
um DESEJO... (como nos ensina, belamente, a Etologia).
A lavadeira é “de uma outra espécie”.
Como um pássaro emitindo seu trinado, a lavadeira
canta. Simpson escreve na poeira: 2+2= ... O desejo problematiza...
O homem AINDA... Este “AINDA” é o coeficiente
de liberdade no fundo de toda escravidão, pronto
a ser detonado do nada, por um trinado que seja. Simpson
volta-se para o Vazio que tem diante de si, não
como um “Nada” mas como um puro PORVIR e diz
“Eu te amo.” As rodas do seu desejo giram
no vazio, soltas e loucas. Mas observemos sua posição:
ele encontra-se de costas para o telão com a imagem
do “Big Brother” e de costas, também,
para os alto-falantes e suas “palavras-de-ordem”
que não cessam de jorrar, porém de frente
para a porta, por onde saíra Julia. De frente,
também para a câmera, para nós, os
audiência, sempre transitória, para o VIRTUAL,
por onde desfilam as “possibilidades de conexão
do desejo”. De costas para o poder, de frente para
a VIDA. De costas para o ódio, de frente para o
AMOR. O DESEJO VAZA PELAS BORDAS, NAS BEIRADAS E NOS CANTOS
( VÃOS OU MELODIAS ). O mecânico “I
LOVE YOU” de Simpson é um insano YES girando
solto no ar.
Mês
que vem, a seqüência deste estudo.
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