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Todos
os Fogos O Fogo
Julio Cortázar
ed. Civilização Brasileira – 2002 –
205 páginas
Mas agora vale a pena aproveitar esta calma absurda, deixar-se
estar olhando o desenho feito pelos galhos da árvore
contra o céu mais claro, com algumas estrelas, seguindo
com os olhos semifechados esse desenho casual dos galhos e
das folhas, esses ritmos que se encontram, se sobrepõem
e se separam, e às vezes mudam suavemente quando uma
rajada de vento quente passa por cima das copas, vindo dos
pantanais. Penso em meu filho que está longe, a milhares
de quilômetros, num país onde ainda se dorme
na cama, e sua imagem me parece irreal, afina-se e perde-se
entre as folhas da árvore, e, em compensação,
me faz tanto bem lembrar o tema de Mozart, que sempre me acompanhou,
o movimento inicial do quarteto A Caça, a evocação
do halali na voz mansa dos violinos, essa transposição
de uma cerimônia selvagem para um claro gozo pensativo.
Penso-o, repito-o, cantarolo na memória e sinto, ao
mesmo tempo, como a melodia e o desenho da copa da árvore
contra o céu vão se aproximando, travam amizade,
unem-se uma e outra vez até que o desenho se arrume,
de repente, na presença visível da melodia,
um ritmo que saiu de um galho mais baixo, quase à altura
de minha cabeça, torna a subir até certa altura
e se abre como um leque de galhos, enquanto o segundo violino
é esse galho mais fraco que se justapõe para
confundir suas folhas num ponto situado à direita,
perto do final da frase, e deixá-la acabar para que
o olho desça pelo tronco e possa, se quiser, repetir
a melodia. E tudo isso é também a nossa rebelião,
é o que estamos fazendo, embora Mozart e a árvore
não possam sabê-lo, enquanto nós, à
nossa maneira, quisemos transpor uma guerra tosca para uma
ordem que lhe dê sentido, que a justifique e, finalmente,
a conduza a uma vitória que seja como a restituição
de uma melodia após tantos anos de roucas trompas de
caça, que seja esse allegro final que sucede ao adágio
como um encontro com a luz.
Julio Cortázar escreve causando a tensão necessária
para mover o leitor a prosseguir a leitura, a ir em busca
de um suspense que talvez se resolva nas próximas páginas,
jamais revelando desde o início da narrativa o que
de fato está acontecendo mas, sim, sugerindo um perfil
possível da história pelas entrelinhas, por
comentários aparentemente casuais, até que vai
dando coordenadas mais claras do que está narrando
e do que provavelmente ocorrerá – quando finaliza
a narrativa de uma maneira abrupta, curta e seca que sempre
deixa o leitor aturdido e em dúvidas com relação
ao que de fato se processou e ocorreu, muito embora isto cause
um efeito estético surpreendente.
Características
de tal narrativa:
- Planta uma dúvida na cabeça do leitor, mantendo
a leitura num estado completamente instigante à inteligência,
que sempre se pergunta e se repergunta: o que, de fato, ocorreu?
Qual é exatamente o perfil da situação?
O que é real? O que foi imaginado? Analisando o corpo
da narrativa, percebemo-nos diante de uma dificuldade muito
grande para distinguir o que é o próprio fato
concreto e o que é apenas o campo das hipóteses
imaginadas pelos próprios personagens que tentam compreender
tais fatos – o que pode inclusive imprimir à ordem
natural das coisas um desenvolvimento bastante inesperado, resvalando
freqüentemente para o absurdo, onde todos os sentidos se
misturam e se fundem, deixando todos, leitor e personagens,
à mercê de uma orquestração cinestésica
e delirante, fábrica de sua poesia. Vemos, assim, a influência
que a imaginação humana pode exercer sobre o andamento
e a consumação dos fatos.
- O motor da narrativa e da leitura estão baseados na
possibilidade de descortinar um perfil mais claro do que está
acontecendo à medida que um futuro estado de coisas vai
se confirmando ou se frustando, e que coloca os personagens
em situações que deveriam ter sido previstas desde
sempre mas que, sobre a qual, perderam completamente o controle,
tamanhos os imprevistos que foram se sucedendo e que não
haviam sido calculados. De certo modo, as narrativas colocam
– personagens e leitor - em estado permanente de dúvida
com relação ao porvir, ao que está para
acontecer, sendo um futuro estado de coisas ora temido, ora
desejado e ora jamais vislumbrado – sendo propriamente
esta ignorância uma espécie de trampolim, de transe,
de ascese que leva a todos penetrar em continentes insuspeitados,
que dão a dimensão da grandiosidade humana.
É curioso notar o estado “de divisão”
em que alguns personagens se encontram, tendo que assumir uma
entre duas posições na vida: ou levar uma vida
pacata e comum ou transcendê-la, muito embora não
se saiba e não se defina claramente a natureza desta
transcendência. No entanto, por vezes, deixa a entender
que esta transcendência só se tornaria possível
se o indivíduo assumisse o compromisso por uma vida mais
integral, mais humana, fazendo frente ao enorme caos social
vigente em cada época.
Eis um resumo dos contos contidos no livro:
A AUTO ESTRADA
DO SUL
Motoristas se pegam imprevistamente, por dias, num congestionamento
numa auto-estrada que leva a Paris. Ao longo deste dias, eles
começam a travar relacionamentos e a montar grupos
de liderança que se lançam em busca de provisões
e que se organizam com a intenção de driblar
todos os imprevistos que vão surgindo. Quando, enfim,
o ritmo do avanço dos carros vai se alterando cada
vez mais rapidamente, sente-se a nostalgia dos dias passados
juntos, dos rituais que foram sendo construídos, e
das pessoas com quem foram se estabelecendo laços cada
vez mais apertados, e o desespero em localizá-las agora
no imenso trânsito que corre livremente e que desmancha
toda aquela teia de ritos e relações que, por
força da ocasião, foi criada.
A SAÚDE
DOS DOENTES
Membros de uma família fazem de tudo para esconder
da mãe a morte do seu filho predileto, forjando cartas
onde o próprio alega que não pode retornar para
casa por causa da demanda do seu novo emprego em país
estrangeiro, e isto sob a imensa insistência da mãe
e sob os sinais crescentes de desconfiança que começa
a nutrir com relação ao que deve estar se passando
– até que inesperadamente um outro membro da
família morre, a tia, obrigando todos a duplicarem
o tamanho da farsa que prossegue cautelosamente, sob uma apatia
que vai abatendo a figura materna até a sua morte,
ocorrida alguns meses depois. No entanto, já acostumada
com a farsa que haviam criado juntos e com o hábito
de forjar tais cartas, uma das filhas se surpreende ao receber
a última correspondência que havia sido forjada
e postada antes da morte da mãe pois, neste momento,
se pega imaginando como haveria de explicar para o irmão
já morto as mortes recentes da mãe e da tia.
REUNIÃO
Guerrilheiros passam por toda a espécie de aperto
e dificuldades ao tentarem escapar da mira dos militares em
uma ilha e o maior desejo deles é poderem se reencontrar
novamente e se reunirem em torno do líder que, no entanto,
ignoram se está vivo ou morto - situação
que ora causa esperança e ora desespero, e que é
narrada sob o delírio nem sempre febril do protagonista,
cujo desejo vacila entre se ver integrado e reconciliado com
todo o universo físico e cósmico que o rodeia
e entre contestar e afrontar os falsos valores e normas que
regem a morna vida social da qual também participa.
SENHORITA CORA
Durante a operação de apendicite de um menino
de 15 anos, os diversos personagens que integram a história
pensam coisas equivocadas a respeito do próximo, ou
melhor: se tratam de uma maneira que leva cada um a pensar
e deduzir certas características da personalidade do
outro e, assim, de tratamento em tratamento, de dedução
em dedução, vai se engendrando uma série
de mal entendidos, que ora acirra cada vez mais os relacionamentos
e ora os preenche de uma ternura quase que paradoxal. O recurso
estético por excelência deste conto é
que os pensamentos dos personagens se mesclam e se alternam
sem aviso prévio, sem parágrafos definidos,
criando assim um grande concerto de pensamentos, uma grande
polifonia de vozes.
A ILHA
AO MEIO-DIA
Comissário de bordo se deixa seduzir
cada vez mais por uma ilha paradisíaca e selvagem que
entrevê exatamente todo o meio-dia, quando o vôo
em que trabalha passa regularmente três vezes por semana
sobre o mar Egeu, até que fica tão obcecado
por este lugar que altera toda a sua vida e rotina e antecipa
as suas férias, decidindo-se finalmente por conhecê-la
em terra. Tão logo chega lá e trava um rápido
relacionamento com os habitantes locais, sente-se reconciliado
com a natureza simples e agreste do ambiente e descobre, neste
momento, que jamais sairá dali, que ficará morando
na ilha para sempre. Resolve caminhar e deitar-se de costas
sobre a colina de encostas íngremes que sempre avistava
dos seus vôos e, neste momento, ao ouvir o zumbido de
um motor, imagina os seus colegas de trabalho sobrevoando
o lugar onde agora se encontra e decide, então, abrir
os olhos para ver o avião, para descortinar as coisas
sob uma perspectiva oposta - quando assiste o aparelho entrar
em rota de colisão e cair dentro de mar, de onde ainda
salva uma vítima do desastre que, no entanto, falece
ao ser levado para a areia da praia.
INSTRUÇÕES
A JOHN HOWELL
Durante o intervalo do primeiro ato de uma
peça de teatro, um espectador é convidado a
ir até os bastidores e, mesmo desconhecendo o motivo
de tal convite, aceita-o, pois imagina estar participando
de uma pesquisa de opinião quando, na realidade, se
vê coagido e intimidado por três homens a participar
da peça que está sendo encenada, mesmo não
sendo ator. Mesmo tentando argumentar e escapar do tamanho
absurdo que o envolvera, percebe que nada mais lhe resta a
não ser cumprir com a farsa que se lhe impunha e, em
certos momentos, reage timidamente aos jogos propostos pelos
atores que se encontram com ele em cena e, em outros, decide
tripudiar com o script e com as instruções que
recebera para poder passar-se pelo personagem John Howell,
armando situações tão inesperadas ao
longo da representação que acaba sendo expulso
do teatro, precedido logo depois pelo ator que havia representado
também o mesmo personagem. A partir de então,
passam ambos a fugir de uma ameaça que ele, o espectador,
não consegue muito bem entender, muito embora soubesse
que ela estava relacionada não tão somente à
quebra da farsa teatral da qual fora obrigado a participar
mas, sim, aos apelos secretos que a atriz lhe sussurrara em
seus ouvidos nos raros momentos em que seus rostos ficaram
juntos em cena, oportunidade única para que ela lhe
pedisse: “Não deixes que me matem” e, depois,
“Fica comigo até o fim” - o que no entanto
não pode acatar, não só porque já
se encontrava fora de cena e fugindo mas também porque
fora envenenada (fora?) por uma dose de chá durante
os últimos momentos da representação.
TODOS OS FOGOS
O FOGO
Duas histórias completamente diferentes vão
intercalando seus parágrafos até se fundirem
completamente, uma às frases da outra, disputando,
num paralelismo cada vez mais impressionante, a atenção
do leitor:
1) a história do gladiador que será derrotado
na arena, sob o olhar vingativo do procônsul e de sua
esposa que havia, uma vez, lançado um olhar de desejo
para aquela imensa massa muscular;
2) a história de um casal que tenta, através
de um telefonema, compreender os motivos do rompimento do
relacionamento, ainda mais por ter aparecido uma terceira
pessoa;
Esta fusão de histórias de disputas e desentendimentos
chega a tal ponto que um incêndio que ocorre na casa
do casal da segunda história se precipita também
sobre a arena do circo da primeira, de modo que os personagens
de ambas se vêem engolfados por fumaça e fogo,
que muito provavelmente levará todos à morte.
O OUTRO CÉU
Rapaz relembra, com grande nostalgia poética, dos
momentos que passava na zona de prostituição
da cidade, e dos prazeres de que lá desfrutava sob
o enorme céu de gesso das galerias, pintado com figuras
alegóricas que estendiam mãos oferecendo grinaldas
– até que a atmosfera do lugar, repleta de cheiros
e luxúria, se subverte e se torna tensa por conta de
um estrangulador que anda pelo bairro, fazendo vítimas,
levando-o abandonar a região que tanto amava e a retornar
para a normalidade burocrática do seu dia-a-dia que
tanto o sufocava e que o privava de uma liberdade que lhe
parecia cada vez mais inatingível pois, a partir de
certo momento, mesmo se sentindo dividido entre a falsa vida
social da qual participava e entre seus prazeres clandestinos,
começa a aquilatar o quanto a sua vida é pequena
frente aos grandes episódios políticos que marcam
a época e que desfilam perante seus olhos paralisados
e indiferentes, sendo esta a situação que sela
o pacto que assume definitivamente para com a sua vida medíocre
e pacata: casa-se e fica em casa tomando chimarrão,
observando as plantas no pátio, se perguntando se irá
votar em um candidato ou se seu voto será em branco.
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