A
Tragédia que Corrói Gaia
Um dia desses tive que ir buscar a Aninha Geléca e
o Animal Lapeyronie no colégio, lá no lindo
e inspirador bairro de Laranjeiras. Era um final de semana
e havia uma competição esportiva no Lycée
Molière onde eles estudam.
Na ida, ao parar num sinal, fui abordado, como sempre sou,
pela alegria do Café, um menino de rua, um pacífico
e desassistido jovem que luta diariamente como vendedor ambulante
num sinal de rua do Rio.
Assim ele trabalha para sobreviver, comer e ir até
onde Deus quiser.
Observo este garoto já há um bom tempo. Às
vezes ele muda de roupa. Seu short, bermuda ou calça
comprida podem até variar, somente a sua camisa do
Flamengo se mantêm constante no seu humilde vestuário.
“Esta camisa do Flamengo é muito mais do que
uma simples camisa para o Café” — penso
eu —, pouquíssimas coisas nesta vida devem-lhe
fazer esquecer o frio da solidão, o maldito vazio da
fome e o inferno da violência que permeiam o seu cotidiano
desde a sua chega neste mundo”.
Em todo este tempo que conheço o Café, esta
foi a primeira vez que a alegria em vê-lo logo se transmutou
num sentimento de desalento e dor indescritível. Naquele
momento, uma tristeza insolúvel prescrutava a minha
Alma.
— E aí sangue, tudo bem? A gente vamu limpa
legal, federal! Hoje não tem pobrema porque é
sabu. Amanhã o mengão vão arrebentar
no maraca e passa o rodo no Fruminense, valeu?
Enquanto o Café dizia isso, ele ia jogando água
no meu pára-brisa e limpando a sujeira que ofuscava
a minha estúpida e limitada visão da realidade
que vivo e brigo.
Ao passo que isto era feito pelo meu amigo de esquina, mais
e mais aumentava o trágico sentimento de que algo,
invisível, erodia as profundezas de minh’Alma.
Era trágico ter o meu pára-brisa limpo e ver,
de frente e sem maquiagem, uma imagem infeliz da realidade
social brasileira.
Se quer conseguia chorar, tão forte era o sentimento
de tristeza que tinha se apoderado de mim naquele breve período
em que eu olhava o pára-brisa molhado e via uma pouco
da minha infelicidade e da suprema impotência diante
de problemas como estes.
Eu não precisava chorar mais, pois a água reaproveitada
que o Café usava para (tentar) limpar o meu pára-brisa
era, em verdade, um simples reflexo das obscuras lágrimas
que carrego dentro do meu ser. O nosso momento de crise mundial
é tão cruel que as minhas lágrimas só
poderiam mesmo ser negras.
E continuei pensando: “Até quando o meu amigo
resistirá? Até quando este meu herói
das ruas conseguirá sufocar a sua realidade com as
alegrias da sua camisa do Flamengo que tanto tem aquecido
a sua triste e gélida realidade? Virá, ainda,
o infeliz e funesto dia em que a ‘cola’, o ‘crack’
e outras camisas aquecerão o seu dia-a-dia, até
estagna-lo, como um zumbi, no meio caminho entre Eros e Tanatos?
Que tragédia”.
Deus foi benevolente para comigo e acabou com tudo aquilo.
O Senhor Krishna abriu o sinal e o meu martírio, um
instantâneo da realidade social em que vivo, chegou
ao fim!
Abri a janela e olhei para a alegria cariada do Café
que vestia um short azul da seleção e... é
claro, sua sagrada e surrada camisa do Flamengo.
— Três reau, sangue? Valeu mermo. Aí...,
semana que vem eu vamu vender chicrete e broco branco pa escreve.
As coisa agora tá melhorando, maluco.
Estas foram as palavras finais do meu doce Café. Um
inocente e bem intencionado menino de rua do Rio de Janeiro.
Embora ele tenha ficado contentíssimo com os três
reais que lhe dei pelos seus préstimos, a sua alegria
cariada não pode esconder uma dentição
apodrecida: o fiel retrato do Brasil, um negativo, sem retoques,
de um país que dá as costas para a gangrena
social que decompõe o nosso tecido social que morre,
desamparado, dia após dia.
Esta... foi a última vez que vi o Café.
Quando o meu amigo editor, O Tom, me convidou para redigir
uma reflexão sobre o século XX, imediatamente
comecei a ruminar comigo mesmo: “Quem está escrevendo
o futuro? Certamente não é este menino, o Café,
pois ele nunca foi a uma escola. É analfabeto. Não
sabendo ler e escrever, como alguém assim poderia redigir
o amanhã, ou construir uma realidade mais justa, saudável
e organizada dentro de princípios verdadeiramente humanos
que sempre lhe foram negados?”
Gente como ele, pode até não estar escrevendo
o futuro como o fazem, de uma maneira mal sucedida, as elites
governantes e “pseudo criativas” de nosso planeta.
Manipulando complexos sistemas de comunicação
ou gerando mais tecnologia — úteis e também
inúteis —, “a casta cega” que dirige
e governa o mundo é, em sua maioria, tão agramática
e agráfica para escrever o futuro ou ditar uma nova
ordem quanto o meu amigo de esquina, o desvalido Café.
O Café não está preocupado em escrever
o futuro, não há tempo, mesmo porque a sua mão
nunca teve a oportunidade de ser educada para ostentar uma
pena ou clicar um computador. Ele apenas luta, diariamente,
para sobreviver e suplantar as provações que
a selva urbana lhe impõe. Sem saber, gente como ele
mata, heroicamente, um leão atrás do outro a
cada dia — até quando?
Que safári danado, não acha?
Da mesma forma, alguns dirigentes e políticos que
compõe a “casta cega” não estão
nem um pouco interessados em escrever o futuro. Preocupam-se
unicamente em fazer guerras, produzir violência ou delapidar
o erário público, por exemplo. São egoístas
e, em essência, absolutamente inaptos no que tange a
elaboração de uma mundo mais equilibrado e fraterno.
Covardes também são, pois eles se quer tem a
coragem de enfrentar, como qualquer Café ou honesto
cidadão faz, as “feras” (os problemas)
que habitam a realidade social que eles mesmos ajudaram a
construir.
Pobres, oprimidos, todos os injustiçados do mundo
em que vivo tiveram as “gônadas da cidadania”
tiranicamente castradas!
Quem teria, por conseguinte, a real capacidade não
de escrever, mas sim de reorientar o nosso futuro e, desse
modo, redigir os fundamentos de uma amanhã enraizado
em princípios sócioeconômicos e políticos
mais justos?
Qual seria a solução para um mundo tão
saturado pela supremacia fálico-masculina que vem oprimindo
a possibilidade de um desenvolvimento mais sensato do planeta
como um todo?
- II
-
“Os átomos não são divisíveis,
e não há divisão até o ilimitado”.
Era assim que pensava o filósofo pré-socrático
Demócrito (± 460-370 a.C.), um discípulo
de Leocípo, o filósofo que desenvolveu a teoria
dos átomos.
Enquanto maior expoente da escola atomista, Demócrito
estabeleceu o “Ser” (de Parmênides) como
a essência de todas as coisas, sendo este mesmo “Ser”
composto por “átomos”, palavra grega que
significa “indivisível”.
Mas a alvorada do século XX chegou, trazendo um cisma
paradigmático na consciência científica
que, até então, tinha sido estruturada dentro
das concepções filosóficas-racionais
e mecanicistas de Bacon, Descartes e Newton.
Já se passaram quase dois milênios e meio desde
as idéias atomicistas de Leocípo e Demócrito
até a primeira bomba atômica de plutônio.
Os átomos são divisíveis, sim, e apresentam
um universo de partículas que transcende uma percepção
submicroscópica. O homem, a natureza e os fenômenos
naturais que o cerca já não são vistos
e tratados como máquinas isoladas que podem ser compreendidas
unicamente através de uma visão burocrata e
racional tecno-analítica.
Se, por um lado, o progresso humano foi capaz de fissionar
o núcleo de um átomo, despertando, assim, a
fantástica energia que dormia no seu interior; por
outro, ele ainda é incapaz de dividir, com justiça,
o pão (a riqueza) da Terra entre os homens.
É muito estranho. O gigantesco progresso tecnológico
parece ter um irmão que o acompanha por todos os lados.
É a sua sombra: a miséria, filha das imprudências
sociais, políticas e econômicas que as nações
e seus respectivos governos produziram em todo o mundo.
O avassalador desenvolvimento industrial e econômico
dos últimos séculos, de características
eminentemente yang, portanto, masculino, não considerou
as suas famintas investidas sobre a natureza e seus recursos,
bem como os reflexos deste crescimento (nefasto, pois foi
impensado) sobre o meio ambiente.
Que filhos são estes, que humanidade é esta
que diariamente vem destruindo o meio ambiente?
Homens que aniquilam a natureza: pode existir uma relação
mais decadente e obscura com a Mãe-natureza?
É um matricídio! O filho-humanidade está
assassinando a própria mãe-terra sem um pingo
de remorso, destruindo-a de uma maneira lenta e sádica
todos os dias. Oceanos e rios, florestas, terras e o ar, os
atributos da Mãe-natureza são poluídos
e reduzidos a não vida com uma rapidez sem par na história
humana.
Este progresso mundial que destrói a natureza e o
meio ambiente é matricida antes de ser suicida.
A postura mal planejada (dos governos e das nações)
ao se “relacionar” com o meio ambiente não
poderia ser vista como uma grave neurose coletiva que acomete
a consciência planetária, a humanidade, quando
esta se coloca de uma maneira cega e destrutiva em relação
a biosfera?
- III
-
Várias histórias, contos e mitos povoaram a
minha mente a medida que ia pensando nesta situação
de desamparo em que se encontra a natureza atualmente que,
sem sombra de dúvidas, é um (grave) sinal de
uma total falta de habilidade do homem em lhe dar com o feminino
numa escala mundial; portanto, com o aspecto yin numa perspectiva
individual e coletiva.
Todos os benefícios científicos e tecnológicos
que o mundo saboreia hoje em dia são o reflexo direto
do mega desenvolvimento da cristandade ocidental, impulsionada
e baseada na cultura euroamericana que elevou o poder da razão
absoluta e da mente mecanicista a uma potência tal que
tornou-se..., vejam só, impotente para solucionar os
atuais problemas que ela mesmo criou: a miséria social,
econômica e ambiental, assim como as suas anomalias
e patologias (misteriosas equações ainda sem
solução) que vem se desenvolvendo cada vez mais
em todo o mundo.
Reorganizar a casa (a civilização, o mundo),
dividir as riquezas com equilíbrio e justiça,
nutrir e proteger, educar e alimentar o gênero humano,
todas estas metas, creio eu, somente poderão ser alcançadas
se a humanidade começar a se preocupar com um sério
desenvolvimento das características yin, femininas,
que foram tão reprimidas e massacradas no decurso do
poder da Igreja Católica que influenciou o pensamento,
a ciência e toda a civilização ocidental
com uma noção errada e distorcida do elemento
feminino, o que terminou por gerar uma civilização
deploravelmente cruel, machista e sem compaixão.
É o individualismo levado as últimas conseqüências.
Esta situação inumana, a cadeia de atos agressivos
contra a Mãe-natureza, é tão miserável
que fizeram (por sorte minha) com que os “ventos frios
do inverno carioca sibilassem sobre os ouvidos do meu coração”
imagens do passado, arquétipos que podem axiliar-nos
a ver e compreender melhor o nosso drama biosférico:
de um lado a Mãe-natureza e, do outro, a humanidade
e o seu progresso, um filho inconsciente e perdido, um homicida
da natureza.
No palco da antiga Grécia, em torno de dois milênios
e meio atrás, grandes tragediógrafos como Ésquilo,
Sófocles e Eurípdes trataram com muita propriedade
o tema de Electra que deve ser conhecido e correlacionado
com a nossa já citada crise biosférica.
O mito de Electra é fascinante antes de ser altamente
complexo ao tecer uma longa e interminável rede de
causas e ações que os orientais naturalmente
denominam karma. É um ciclo cruel, porém lógico.
Como este mito não é origem e sim manifestação,
portanto, causa de uma “antiga maldição”
é necessário, antes, visitar um outro relato:
o mito de Tântalo, rei de Sípilo, no território
da Lídia.
Certa vez, querendo pôr a prova o poder da clarividência
dos senhores olímpicos, o filho de Zeus, o monarca
Tântalo, convidou os deuses para um banquete. O rei
de Lídia tinha um orgulho desmedido e não economizou
esforços para afrontar os seus convidados, cometendo
um sacrilégio que não pôde ser perdoado:
o anfitrião ofereceu como prato principal a carne de
Pélope, seu próprio filho. O sacrílego
e infanticida foi logo descoberto pela onisciência de
seus convidados que indignaram-se com o insulto. Tântalo
foi sentenciado a sofrer de sede e fome nas regiões
sombrias e infernais do Tártaro plutoniano, onde a
água que havia fugia de sua boca, impedindo-o de saciar
a sua sede e a árvore com seus frutos, elevava-se de
sua presença, proibindo-o, também, de sanar
a sua fome. Este foi o seu interminável castigo.
Daí em diante, todos os descendentes de Tântalo
passam a ter a obscura marca de uma maldição
sem fim, onde orgulho, traição, vingança
e morte serão eternas companhias de todos estes herdeiros.
O filho de Tântalo e amante de Poseidon, Pélope,
teve sorte (entre aspas!) e foi reconstituído pelos
deuses olímpicos. Sua covardia e maldade foram tão
inconcebíveis que Pélope foi amaldiçoado
por Mírtilo quando este era tragado pelas águas
do oceano, pois viu que tinha sido usado numa trama sórdida
e traiçoeira de paixão e poder.
Ninguém escapa desta cadeia inquebrantável
envolvendo ódio e morte.
A filha de Tântalo, Níobe, devido a sua vaidade
mortal e a um ato de ofensa espiritual à deusa Latona,
mãe de Apolo e Diana, teve o seu maior orgulho destruído:
todos seus filhos são mortos como represália
divina ao seu sacrilégio espiritual.
A trilha da obscura maldição passa por Pélope,
chega aos seus dois filhos Tiestes e Atreu e alcança
Agamenão, filho do segundo.
Agamenão se casou com Clitemnestra e tornou-se rei
de Micenas. Durante a sua ausência no reino, em virtude
de uma importante campanha militar, sua esposa acomunou-se
com Egisto que usurpou o trono de Micenas e passou a ser amante
da rainha. Electra, a filha da rainha, se revolta e não
aceita a traição da mãe, passando a odiar
o casal adultero. Cresce, por conseguinte, o ódio e
a vingança na alma de Electra que atinge o máximo
quando ela vê Egisto assassinando o seu pai Agamenão,
sob as ordens de sua mãe. Como a filha de Agamenão
era uma herdeira tantálida, ela soube aguardar o momento
exato para a perfeita vingança. Quando o seu irmão
Orestes retornou ao reino, ela conseguiu persuadi-lo a assassinar
Egisto bem como a Clitemnestra, a mãe de ambos. Sob
a influência de sua irmã, Orestes comete um matricídio.
Assassinou a própria mãe.
A “maldição de Tântalo”
tem início, portanto, quando esse desafia a ordem e
o poder dos deuses olímpicos através da soberba
que embriagou o seu ego real. Por um simples capricho mortal,
Tântalo ofendeu as potestades através da obscuridade
yang de sua personalidade imprudente e sacrílega. A
psicologia masculina (yang) negativamente desenvolvida (distorcida)
na personalidade do rei Tântalo é uma marca negra
que pode ser constatada nos seus herdeiros, ao ponto de Níobe,
sua filha, assumir uma postura fálica e inconseqüente,
por pura vaidade e extravagância mortal. Devido a traumas
e cismas familiares, Electra, um desvio psicológico,
transforma-se numa criatura sem alma, onde todas as qualidades
intrinsicamente femininas como o carinho, a proteção
nutridora e a feminilidade em si são abissalmente afogadas
num oceano revolto pelo ódio. Electra é mulher
apenas por fora — o que não é de se espantar.
Sua mãe, Clitemnestra, é uma criminosa e traidora
adultera; seu padrastro (imposto), um usurpador assassino,
e seu pai, um objeto de vingança do casal adultero.
Logo, Electra é um distúrbio, um vazio composto
por ódio e vingança. Não há mais
afeto, ou muito menos compaixão; a lei e o limite são
banidos de sua personalidade vingativa e transgressora, porém,
covarde, pois ela não mata: Electra arquiteta um duplo
homicídio que é empreendido pelo seu irmão
Orestes que assassina a própria mãe. A tragédia
consuma-se com o matricídio.
Não somente a mãe, o portal da vida, tornou-se
nefasta, tudo é uma entropia só neste antiquíssimo
relato mitológico: um ciclo lógico de causa
e efeito que se perpetua de geração a geração
até que atinge um ponto de tensão insustentável
no palco da vida.
- IV
-
Duas coisas chamam muito a atenção no mito
de Tântalo: o desrespeito, a afronta (a natureza divina)
e a punição.
Não me considero um ser humano pessimista. Não!
Todavia é insofismável em nossa realidade planetária
os claros efeitos de nossa afronta à Natureza.
Sob certo sentido, já estamos sofrendo o mesmo martírio
do Rei Tântalo que tinha todo alimento que desejava,
mas não podia alimentar-se dele.
Veja bem: a água, o sangue sagrado da Mãe-terra,
tão essencial para o homem e toda a vida planetária,
a cada dia que passa encontra-se mais e mais corrompido e
maculado pela inconseqüência de um progresso yang
(graças a Deus, em absoluto declínio) e plutoniano.
Digo plutoniano simplesmente porque, se lembrarmos, no banquete
oferecido pelo rei Tântalo se diz que somente a deusa
Ceres não percebeu que o monarca serviu a carne do
próprio filho. Nem poderia, ela encontrava-se totalmente
abalada pelo rapto da filha, a bela Perséfone que tinha
sido levada por Hades, Plutão, para as profundezas
do infra-mundo.
Hades não soube conquistar, seduzir e, sendo rejeitado,
usurpou a filha de Ceres, usando de violência e tirania
típicas de um caráter fálico em absoluto
desequilíbrio.
Mas como Ceres era uma manifestação da Mãe-natureza
em si, o arquétipo que sustentava e nutria toda a bisofera,
seu protesto, sua vingança foi mortal: ela entristeceu-se
ao ponto de retirar todo o seu poder do mundo natural, e recolheu-se,
como a seiva das árvores no inverno, gerando todo tipo
de miséria ambiental e, conseqüentemente, social
e econômica.
A situação tornou-se tão insustentável
que os próprios deuses pediram a Hades que devolvesse
Perséfone a Ceres. Assim se fez, e a Natureza regularizou-se
com a alegria da Ceres que consegui reaver sua filha.
O atual modelo de desenvolvimento planetário agressivo
e, não canso de dizer, inconseqüente que destrói
matas e florestas incontáveis e deteriora a terra e
o ar, a carne e o alento da Mãe-terra, com Mercúrio
e gases tóxicos não é progresso! É
suicídio coletivo. É, portanto, um inominável
MATRICÍDIO!
Está muitíssimo claro: a atual falta biosférica
que a consciência planetária leva adiante é
um pecado pentagrâmico contra a própria Terra
e todos seus filhos do mundo mineral, vegetal, animal, humano
e espiritual.
Compreender a atual crise biosférica dessa forma não
é, de maneira alguma, voltar-se para um concepção
primitiva e animista. Muito pelo contrário, é
entender e integrar-se com o próprio pulsar tecnológico-reformista
de uma era que super integra o planeta através dos
sistemas de comunicação — principalmente.
Quanto mais a humanidade mergulhar nesta “Onda Tecnológica
e Digital” que unifica o mundo através de moderníssimos
sistemas de comunicação, mais aguçado
tornar-se-á o sentido de Totalidade Orgânica
do Planeta, onde a Mãe-terra, a biosfera, e seus filhos,
a humanidade, se interpenetram como raízes no seio
de um Igarapé planetário, por onde fluiu —
como diz a própria palavra tupi— “o caminho
da água”, da vida e da reunificação
sócioespiritual.
Todavia, a “Onda Tecnológica” é,
a meu ver, um dos elementos dessa reorientação
planetária, um importantíssimo elemento que
encontra-se ainda num estado embrionário.
Era tecnológica alguma poderá ser edificante
e útil sem que seja estabelecida, ao longo dos próximos
séculos, o mais rápido possível, uma
Ética Planetária de desenvolvimento e ocupação
ambiental que considere a humanidade como “herdeira
de uma cidadania planetária” — como concebeu
magistralmente o profeta e avatar pérsa Bahá’u’lláh.
Progredir e desenvolver-se industrialmente, tecnologicamente,
sem considerar os efeitos deste crescimento sobre o meio ambiente
é inaceitável! É o mesmo que legar ao
nosso amanhã a mesma herança que o rei Tântalo
perpetuou, inconseqüentemente, a todos os seus descendentes:
a amargura e o horror da Tragédia.
- V
-
Quando retornou de sua vitoriosa pacificação
da Gália e da Espanha (13 a.C.), o filho adotivo do
monarca Júlio César, o Imperador Otávio
Augusto (63 a.C.-14 d.C.), recebeu uma grande homenagem do
Estado que ele governava. O Senado romano decretou que seria
construído no Campo de Marte, o Ara Pacis Augustae,
o monumento que eternizaria a Pax Augusta, a maior dádiva
— ainda que tardia — da administração
de Otávio a frente do — já decadente —
Império Romano.
O lado leste deste altar traz uma belíssima ideação
artística. Além das crianças e ninfas,
as aves, a ovelha e o touro, vê-se, também, o
trigo, as flores, os frutos da terra e, no centro, a nutridora,
a regente soberana da natureza: Tellus, a Mãe-Terra.
O altar de Ara Pacis não foi somente um instrumento
de culto ao principado de Otávio Augusto (31 a.C.-14
d.C.). Ele simbolizou a restauração da ordem
social, política e econômica do Império
sob a égide da Pax Romana que se estendeu por dois
séculos.
Sob a regência de Otávio Augusto, o estado universal
romano começava a atingir a sua Idade de Ouro. As realizações
do Imperador, unidas a sua habilidade política, foram
tão glorificadas que, após a sua morte, ele
foi cultuado como um Deus. Era a divinização
de César.
Pretensão, culto a personalidade? Pouco importa. Mas
nada acontece por acaso.
A Pax Romana que estendeu-se por duzentos anos sobre o mundo
helênico, desenvolveu habilmente os meios de comunicação
e de transportes, viga mestra de qualquer estado de proporções
universais como o romano. Grandes mentes gregas da época
como Élio Aristides e Epíteto, por exemplo,
traduziram, em palavras, os níveis de segurança
e tranqüilidade alcançados pelos viajantes através
das rotas imperiais.
Que ironia! Bastaram poucos séculos sem contendas,
proporcionadas pela Pax Romana, para que fossem pavimentadas,
ainda que inconscientemente, as “vias (seguras!) de
dispersão e expansão das “Augustas”
Sementes do Cristianismo”. A paz imperial inaugurada
por Otávio Augusto sem querer forneceu as condições
básicas e elementares para o sucesso e a conseqüente
vitória do cristianismo sobre a opressão e o
gigantismo de Roma. As vias de acesso e comunicação
do mundo helênico transmutaram-se nas principais veias
e artérias por onde passou a fluir o sangue ressuscitado
de Cristo sobre a Terra. O corpo moribundo de César,
o Império Romano, era lentamente invadido e vitalizado
pela mensagem espiritual dos apóstolos e seguidores
do Cristo.
Do Estado de César que oprimiu e assassinou os cristãos
emergentes ao Pleroma de Jesus-Cristo que busca a conciliação
com o próprio inimigo, algo de muito importante pode
ser detectado.
A paz que Augusto ofereceu ao mundo helênico foi, historicamente,
tardia, embora bem sucedida. A bandeira branca da Pax Romana
foi perecível. Na acepção da palavra,
foi quase uma “Paz Menor”, como bem descreveu
o profeta Bahá’u’lláh que convocou
o mundo e todos os seus governantes, do Oriente ao Ocidente,
a abraçarem a genuína e eterna paz: a “Paz
Maior”.
Bahá’u’lláh (1817-1892) foi, sem
sombra de dúvidas, uma das personalidades mais expressivas
e comoventes na história política e espiritual
de todos os tempos. Foi um legítimo herdeiro no Estado
persa, onde seu pai era um ministro, mas recusou a transitoriedade
deste poder para abraçar uma causa global em pleno
islão do século passado: a Unidade do Gênero
Humano, independente de credos religiosos ou políticos.
Enquanto avatar planetário, Bahá’u’lláh
encarnou com primazia, através de sua vida, obra, e
atos, os mais elevados Preceitos Éticos para o futuro
estabelecimento de um governo mundial.
A nossa atual crise de Planetarização roga,
e invoca, por esta Paz Suprema tão ventilada por Bahá’u’lláh.
A nova ordem, a qual Ele se refere em muitas de suas escrituras
sagradas está alicerçada em dois princípios
chaves: a INTERDEPENDÊNCIA e a MULTICOOPERAÇÃO
do gênero humano como uma única família;
o próprio profeta bahá’í dizia:
“Sois todos as folhas de uma só árvore
e os frutos de um mesmo ramo”.
Portanto, se a Ideação Planetária de
hoje nos remete para uma — inevitável —
sociedade global de euroasiafroamericanos, a paz, logicamente,
não pode mais ser limitada ou setorizada. A Paz Maior
não é protecionista. É transcontinental.
Atualmente, já temos todos os meios necessários
para a iniciar e disseminar este Estado Universal proposto
pelo avatar bahá’í. Todos os meios de
transporte (terrestres, marítimos e aéreos)
e a revolução digital com a sua sempre mutante
tecnologia da comunicação já encontram-se
aí, a disposição de uma reforma, de uma
revolução de proporção planetária
e, logicamente, biosférica.
O apóstolo Paulo, o perseguidor convertido, conseguiu
um assombroso sucesso em suas missões pacificadoras
de cristianização (45-57 d.C.) sem ter em mãos
um único telefone celular, internet, imprensa, ou ao
menos um pager; mas teve a sorte (?) de realiza-la sob a proteção
e a segurança da Paz Romana — assim como os seus
sucessores.
Sendo assim, a Pax Biosférica — proserpínica
— que renascerá no século XXI será
uma importantíssima meta planetária a ser desenvolvida
por cada um de nós no alvorecer do terceiro milênio
e conquistada pela humanidade dos séculos vindouros.
Se a Pax Romana, e o próprio Império Romano,
se tornaram o húmus que abrigou e nutriu as sementes
do cristianismo emergente — totalmente corrompido no
decurso do poder católico —, que tipo de semente
reformista ou meta planetária a atual crise econômica
juntamente com a revolução tecnológica
poderão estar ocultando nos bastidores da nova ordem?
Como dinamizar em todo o mundo a luta pela Pax Biosférica
no atual hiato de uma civilização pré-planetária?
A paz proposta por Otávio Augusto foi uma solução
tardia e desesperada para salvar o Império Romano que,
em essência, já se assemelhava a um homem que
afogava-se com a água aos seus pés.
Não é possível, não é
justo que o único preito que podemos oferecer a Gaia
e a todos os seus filhos, nossos irmãos do amanhã,
seja uma paz perecível, um altar, ou qualquer monumento
de pedra como fez a Roma de Augusto. A Mãe-Terra (Tellus)
não merece, de maneira alguma, efêmeras migalhas
que, com o tempo, transformam-se em relíquias arqueológicas.
Basta de heranças e inclinações tantálidas!
Não esperemos, portanto, que o pestilento chorume
da degradação ambiental sufoque os ideais e
as metas da Paz Maior e Biosférica. Esta grave lesão
político-ambiental será cauterizada se nos reeducarmos
a compreender, externa e internamente, a nossa eterna filiação
à Grande Mãe, à deusa Kali. Não
importa o nome, todas são o mesmo arquétipo,
sinônimos da Mãe Divina, tão exaltada
pelos Sábios Iogues que, recentemente, tiveram uma
missão avatárica em nossa civilização
ocidental.
-
VI -
“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo...Amém!”
— Sagrada Maria, Mãe Divina do Ocidente, onde
fostes parar nesta misteriosa equação espiritual?
Perguntas como estas sempre conquistaram o meu universo de
dúvidas, pois (historicamente) além de cultuar
um Jesus semi-morto e dominado na imobilidade da cruz, a cristandade
ocidental foi educada a cultuar muito mais as características
masculinas de Deus; diga-se de passagem, um Deus Pai que deve
ser temido, antes de amado.
— Onde estás, Maria, Mãe Divina do Ocidente?
Bem ou mal, nós, ocidentais, abituamo-nos a reverenciar
Deus apenas como Pai, apesar Dele ser cultuado e — acima
de qualquer coisa — vivenciado através do aspecto
feminino em outras culturas religiosas, onde a Mãe
Divina surge com expressão máxima desta compreensão
psico-espiritual de Deus. Nossa civilização,
fálica, tecnológica e agressiva, progrediu como
um homem que sai de casa para sustentar a família,
esquecendo-se de dar a devida atenção ao seu
lar, sua família e sua esposa: a mulher que carrega
em si o destino de nutrir a todos sobre a face da Terra através
dos seios, das mãos, do ventre e do coração.
Portanto, possui a mulher o dom único outorgado por
Deus de nutrir o mundo sob uma forma quaternária! Mesmo
assim, oprimimos, através do tempos, por um grave erro
social, político e espiritual, o saudável desenvolvimento
do elemento feminino em nós mesmos, homens, bem como
na vida das mulheres como um todo. Um casamento mal fadado
como este entre o progresso de uma civilização
tantálida e o elemento feminino não poderia
ir mesmo muito longe — graças a Deus!
Onde estás, Mãe Divina do Ocidente?
Sri Ramakrishna (1836-1886), um mestre iluminado que bem
cedo em sua vida teve os primeiros contatos e vivências
com a Mãe do Universo, é um genuíno exemplo
a ser compreendido pela civilização que endeusa
o progresso tecnológico, em detrimento do meio ambiente.
Seu principal discípulo, Swâmi Vivekananda estendeu
ao mundo ocidental esta possibilidade de compreendermos e
vivenciarmos Deus como Mãe Divina ao difundir, na transição
do século XIX para o século XX, o legado de
seu Mestre entre nós.
Se Deus também é Mãe (Terra), e fomos
feitos a sua imagem e semelhança, o Ocidente e a civilização
pré-planetária emergente não tem outra
saída senão buscar em si mesmo o caminho para
a recomposição desta fratura anímica
que corrompeu a evolução psicológica
e espiritual da cristandade dispersa por este mundo.
— Onde estás, Mãe Divina?
Todos os grandes e verdadeiros avatares sempre salientaram,
independente de sua raiz (mundana) étnica ou religiosa:
o verdadeiro templo ou altar de Deus está em nós.
Somos como peixes imersos no oceano; estamos tão permeados
por esta “presença (Energia) divina” que
não nos damos conta do quanto somos todos onda e oceano
ao mesmo tempo! Portanto, experienciar, em algum grau, a presença
— sempre — viva da eterna Mãe Divina é
um caminho sólido e vital para recuperarmos o nosso
reequilíbrio planetário, já que toda
vida em nosso mundo começa num ponto, num ovo ou célula-semente
que é gestada por uma Mãe. A Pax Biosférica,
por conseguinte, tem a sua principal embaixada na vida interna
da humanidade em seu conjunto, no Templo de nossas Almas.
Propor apenas uma Paz exterior é criar um tratado morto;
é como, já disse, estabelecer os frágeis
alicerces para uma paz que nem chega a ser Menor...é
criar uma paz perecível e passageira como foi a Pax
Romana.
O Iluminado iogue hindu, Swâmi Paramahansa Yogananda
(1893-1952) dedicou toda uma existência para instruir
e mostrar aos ocidentais que — através de uma
incondicional e devotada relação Guru x Discípulo
— Deus, e todas as suas sagradas manifestações,
como a própria paz, podem ser vivenciadas e encontradas
por cada ser humano — basta querer. Yogananda mostrou,
como devoto da Mãe Divina, que esta manifestação
feminina de Deus é uma realidade que está ao
alcance de todos. O Diálogo com Ela, ou com todas as
manifestações de Deus, é um eterno exercício
de devoção e amor incondicionais.
Esta compreensão e vivência psicoespiritual
— como propõe Yogananda — dinamizará
e levar-nos-a, enquanto eternos filhos de Kali, a Mãe
Divina, a um natural reencontro com princípios cosmo-ontobiosféricos.
Será um Renascimento Planetário. O Mundo não
está em entressafra! Vivemos, ainda sem saber, uma
piracema do Espírito!
A Mãe Divina está em nós. A biosfera
também.
— Onde estamos?
Estamos no limiar do terceiro milênio, e de um novo
século, e nunca estivemos tão próximos,
mais do que em qualquer outro tempo da evolução
planetária, dos aspectos numinoso e obscuro de nosso
mundo. Nunca esta criança, a humanidade travessa, precisou
tanto de colo, carinho e orientação espirituais
com agora. Como diz o Gil, “se eu quiser falar com Deus...”,
tenho que abrir mão de muitas coisas. As marcas tantálidas
— em absoluto declínio cíclico —
são mais que evidentes em nossa atual humanidade. Nada,
portanto, como a doçura e o carinho da Mãe Divina
para cortar e dissolver, definitivamente, as raizes daninhas
de Tântalo, assim como os erro e o ódio de Electra
que ainda residem no jardim da evolução humana.
JAI
MA
Dedicado à Mãe Divina
Meu Amargo Café
Não poderia concluir a minha participação
aqui, sem terminar a historinha sobre o Café, aquele
menino de rua que citei no início do texto, lembra?
Pois bem...
— O Flamengo perdeu. Levou um sacode horroso do Fluminense.
Quero ver o que o Café vai dizer — pensava no
meio do caminho.
A medida que ia me aproximando do sinal onde trabalhava o
Café, vi que o trânsito estava horrível,
tudo muito lento, tumultuado e um calor insuportável.
Coisas típicas do Rio.
Com sempre, o meu carro parou no sinal e eu, logicamente,
procurei a figura e...o que somente vi debaixo da marquise
— uma de suas prováveis residências —
foi o seu corpo estendido. Fiquei estático! Dentro
de mim, naquele momento, o trânsito parou! Olhei, olhei
e vi apenas os seus pés: um descalço e o outro
vestido com um tênis furado. Seu corpo estava totalmente
coberto, de modo que se quer vi a sua camisa do Flamengo.
Não havia sangue, marcas, não havia mais nada
ali, e muito menos dentro de mim. Não existia mais
Café, apenas o amargor em minha boca de uma cicuta
que executa gente forte e desamparada como este nobre menino
de rua.
Olhar para a minha direita e ter que ver o corpo morto do
Café, doía-me a Alma. Rapidamente, olhei para
a minha esquerda e vi (acreditem!) o rei Tântalo rindo,
gargalhando, comendo banana com os pés e dando cambalhotas
para trás. A minha tragédia parecia-se mais
com um quadro de Bosch. Era o inferno.
Petrifiquei-me. Foi quando ouvi gritos e palavrões
de toda a ordem. Eram todos para mim, pois o sinal já
estava aberto e eu não tinha saído do lugar
tamanho tinha sido o meu choque. Segui como pude, pois meus
olhos eram pequenos para suportar a vazão de tamanha
tristeza.
Não sei do que o Café morreu. Deve ter sido,
frio, fome, solidão, overdose; já sei! Em suas
andanças pelos lixões da vida, onde muitas vezes
comia, ele deve ter encontrado uma linda caixa. Mal sabia
ele que, ao abri-la, terminou por libertar e evocar para si
todos os males de Pandora.
Durante alguns dias, fiquei profundamente deprimido, ao ponto
de não conseguir escrever se quer uma linha.
Neste período, durante o café da manhã,
a Bete me perguntou:
— Amor, você não quer Café?
Eu então respondi:
Não há mais café, nem manhã,
só há amargor.
Meu amigo Café: não foi somente o Flamengo
que perdeu. A sociedade foi derrotada porque perdeu Você.
Café,
Que a Mãe Divina te receba com o carinho e a ternura
que a sociedade lhe negou nesta existência.
Com as Bênçãos da Mãe Divina a
todos os Cafés deste mundo, in memorian.
Este texto pertence
ao livro "Quem está escrevendo o futuro - 25 textos
para o século XXI", Ed. Letraviva, DF, 1999.