- Dona Noca, aquele moço que deixei ali no portão
acaba de chegar e está procurando uma pousada.
A senhora por acaso ainda tem um quarto vago? Disse
a ele que talvez não tivesse, tentei fazê-lo
desistir, mas ele é bem teimoso. Não fui
com a cara dele, sabe? Não parece boa gente,
com aquele brinquinho na orelha e aquele cabelinho espetado...
A tagarelagem era de seu Epaminondas Siqueira, dono
do bar do vilarejo. Arari situava-se na divisa sul da
Bahia. Muitos brigavam dizendo que ali já era
território pertencente a Minas Gerais. O local
era bonito, apesar de muito rústico. Às
margens do rio São Francisco, cerca de seis horas
de carro até Brasília, costumava receber
visitas de políticos em época de eleição.
Evidentemente a fonte dos presentes e agrados oferecidos
aos moradores secava de imediato em todo novembro de
ano eleitoral. Mas voltando ao seu Epaminondas, ele
era conhecido por sua ranzinzice. Dona Noca, provavelmente
a moradora mais antiga da região, já acostumada
com as atitudes do velho amigo, deu de ombros. Forte,
ela não aparentava os oitenta e quatro anos vividos
com intensidade e, conforme suas próprias palavras,
“com muito gosto”. Noca era um referencial
para as pessoas de Arari. Muitas vezes agia como verdadeira
juíza de pequenas causas, como quando havia um
conflito qualquer provocado por excesso de pinga. Noca
também era a parteira, respeitadíssima
por seu dom de trazer quase toda a população
de Arari ao mundo, mas também por confortá-los
na hora da morte. Sim, Noca enterrou muita gente que
nasceu depois dela. Parecia ser de ferro, a velha. Ninguém
parecia crer que ela morreria algum dia.
- Deixa o homem entrar, Epaminondas – disse ela
com um sorriso suave estampado no rosto sábio
e com os dentes naturais curiosamente bem conservados.
Epaminondas acedeu com a cabeça, embora torcendo
o nariz um pouco contrariado.
O homem devia ter uns 25 anos, não era bonito,
mas também não era feio. Não era
alto, mas também não era baixo. Um pouco
forte, parecia alguém que trabalhava no campo,
mas suas mãos e seu rosto denunciavam uma vida
de homem da cidade. Dona Noca fitou-o longamente, deixando-o
um tanto embaraçado. Pediu-lhe que se sentasse.
- Mariana! – gritou chamando uma bela moça
de seus dezoito anos que chegou correndo um pouco esbaforida.
- Tô aqui, dona Noca – ela lança
um olhar surpreso ao homem sentado à sua frente.
- Vai arrumar a cama do quarto que ficou vago ontem.
Esse moço vai ficar uns dias aqui. Vai, anda,
menina, não fica olhando não!
Ivan era o nome do forasteiro. Parecia estar nervoso,
fugindo de alguma coisa. Noca perguntara-lhe de onde
viera. Sua resposta não convenceu pelo sotaque.
Dissera ter vivido em Porto Alegre por toda a vida,
quando um leve toque do jeito carioca de falar denunciava
sutilmente a mentira. A velha senhora nada comentou.
Apenas deu de ombros e olhou de rabo-de-olho, como era
de hábito.
Ivan sentiu-se incomodado com a aura de segurança
que a velhota passava. Estava habituado a ser temido
e detestava estar fingindo. Mas desta vez não
havia saída. Era preciso despistar. Acabara de
fugir de uma grande operação policial
de captura que o seguiu até o sul de Minas. Há
dois dias parecia tê-los ludibriado, o que o fez
crer estar razoavelmente seguro. Estava cansado, mas
adiantara-se em função de toda a correria
de carro e até de caminhão. Tinha pelo
menos uns dois dias a mais para descansar e depois seguir
viagem. Ficou de encontrar-se ali mesmo em Arari com
um contato que o levaria para a Colômbia. Sairiam
primeiro de caminhonete, depois pegariam um monomotor.
Ivan era peça chave no tráfico de cocaína.
Mantinha o abastecimento de alguns morros controlados
pelo crime organizado no Rio de Janeiro. Já estava
sentindo saudades do medo estampado nos olhos dos moradores
da favela e da idolatria que alguns rapazes tinham por
ele. Isso sem falar nas mulheres. Ele tinha quem queria
ter. Não interessava se era virgem, casada, se
era noiva de quem fosse. Mulher que não queria
nada com ele perdia uma pessoa da família por
semana. Ela escolhia: ou fazia o que ele queria ou o
pai ou o irmão ia comer capim pela raiz. Ele
tinha poder e o melhor de tudo era que acabava sendo
tido como um benfeitor para a comunidade. Gostava de
incitar os adolescentes e crianças contra qualquer
pessoa que não morasse no morro e, é claro,
recompensava os “aviões”, que levavam
e traziam o que fosse preciso. Por estes era tido como
herói. Muitas crianças achavam o máximo
serem amigas de um amigo dele. Ser uma celebridade,
mesmo que apenas para aquelas pessoas era-lhe muito
aprazível.
Em sua cabeça tinha razões suficientes
para ser o que era e como era. Viveu a infância
toda num barraco feito de eucatex, sem luz, gás
e água. O pai, alcoólatra, batia nele
e na mãe quase toda semana. A mãe, por
sua vez, não estava muito interessada em sair
daquela vida. Também bebia muito e se lamentava
de ter tido um filho que só dava trabalho. Ivan
quase morreu num desabamento durante uma chuva de fevereiro.
E teria ido pro beleléu se não fosse o
corpo da mãe que devido à posição
em que estava formou uma bolha de ar até os moradores
conseguirem desenterrá-lo. Teria virado indigente
se não se tornasse leva-e-traz da bandidagem
local. Com eles aprendeu tudo o que sabia. Inclusive
como ser respeitado. E se saiu muito bem na prova: quatro
tiros na cabeça de um moleque que havia tirado
sarro com sua cara. Com dezesseis anos já era
temido e respeitado por causa do tal evento. Gostou
da sensação e continuou impondo-se pela
força. Com o tempo já era um dos líderes
mais poderosos e controlava vários pontos de
venda de drogas. Costumava importar armas pesadas diretamente
do estrangeiro por intermédio de um oficial militar
corrupto.
Mas algum filho da puta o havia denunciado. Ah, se
ele o pegasse! Ivan imaginava com detalhes como iria
torturar o infeliz, com palitos de bambu cheios de pólvora
enfiados num dos olhos e coisas do tipo. Felizmente
todo um esquema de fuga havia sido montado para o caso
de algo assim acontecer. A polícia nunca poderia
pegá-lo, até porque ele controlava vários
policiais que estavam envolvidos na operação
de captura. Mesmo assim era necessário sair de
cena por algumas semanas. Ele aproveitaria e traria
mais armas para o pessoal da boca.
Mariana retorna ainda olhando fixamente para Ivan.
Sem mulher há algum tempo, começou a fantasiar
o que poderia fazer com aquela guria. “Ela é
bem gostosinha” – murmurou sem que ninguém
pudesse ouvir ao fechar a porta do quarto. Pelo menos
assim pensou.
A lua quase cheia despontava luminosa pelas folhagens
do arvoredo que circundava a propriedade de dona Noca.
Ivan, que não conseguia dormir, notou uma sombra
passar pela janela. Foi olhar e foi subitamente tomado
por uma boa quantidade de testosterona no organismo.
Lá estava Mariana andando calmamente na margem
do riacho indo em direção à mata.
Ela tinha uma estranha ferida no calcanhar, como se
fosse uma dentada de cachorro. Estava sangrando. Gozado.
Não notara isso quando a viu pela primeira vez
e olha que ela estava de chinelos. Será que tinha
se machucado naquela hora? Não pensou mais nisso.
Suando, pulou pela janela e saiu sorrateiramente ao
encalço da jovem. Não queria que nem ela
nem ninguém o ouvisse. Contudo, vários
metros antes que a alcançasse, ela, sem olhar
para trás, sussurra: “Então você
me acha ‘gostosinha’, hein!” Ivan
estacou. Como ela poderia tê-lo ouvido se quando
entrara no quarto falara tão baixo? Pior ainda:
como poderia tê-lo ouvido agora, se ele, conhecido
por ser silencioso e traiçoeiro como uma cobra,
andava sem fazer o menor barulho?
- Você está com cheiro de quem me quer.
Você me quer, Ivan? Quer o que eu tenho aqui embaixo
da saia? Estou sentindo seu cheiro de homem. Você
não sente o meu?
Ivan mal podia acreditar na intensidade de seu desejo
por aquela “caipira”. Não acreditava
também no que ouvia. Ela não era, afinal,
tão boba quanto as garotinhas de sua idade naquele
local. Acelerou o passo. A menina ficou impassível,
ansiosa pelo contato, lambendo os lábios. Porém,
antes que pudesse encostar-lhe as mãos, a voz
rascante de dona Noca saiu de trás de uns arbustos:
- Se eu fosse você, não me arriscaria
a fazer o que está pensando, moço. Mariana,
vai andando, vai. Deixa que eu cuido do moço
aqui.
Mariana lança um olhar fulminante em direção
à velha, que retribuiu à altura. Ivan
por um momento pensou ter visto os olhos de ambas brilharem
no escuro, mas só por um momento. Mariana pôs-se
a correr pela mata até que não podia mais
ser vista. Sem entender absolutamente nada, o jovem,
já pensando em esganar a velha, volta-se e começa
a balbuciar algum impropério, quando percebe-se
inexplicavelmente sozinho. Um pouco tonto, pensa em
seguir a moça pelo meio do mato, mas os uivos
de alguns animais e o som de luta feroz o fizeram desistir
e correr de volta para a pensão.
Ele vai em direção à janela para
entrar novamente sem ser visto, mas dona Noca e seu
Epaminondas já estavam de plantão no caminho.
- Gente – gagueja trêmulo – aquela
menina entrou no mato e eu ouvi uns barulhos estranhos!
Acho que tem onça ou algum bicho pior por ali!
Ela pode ter sido atacada!
- E você quer que a gente chame a polícia,
seu moço? – perguntou irônico Epaminondas.
- Polícia? Não, mas vocês não
vão fazer nada? – os dois olhavam fixamente
para o incrédulo bandidão, outrora tão
corajoso e macho, com um sorrisinho mal disfarçado.
- Ah, é assim, né? Então fodam-se
vocês dois! Foda-se este lugar inteiro, todo mundo!
Vou embora daqui amanhã mesmo e se alguém
tentar entrar no meu quarto agora vai levar azeitona
nos cornos! Tô falando sério!
O dia amanhece e Ivan acorda com uma baita dor de cabeça.
Sai devagar do quarto e olha para os dois lados desconfiado.
Leva consigo seu revólver 38 e uma faca de caça,
escondendo as armas na cintura sob a camisa larga que
vestiu.
- Bom dia, seu moço – alguns moradores
do local já estavam tomando seu café na
mesinha posta na entrada da pensão. Tentavam
ser simpáticos com o estranho visitante, mas
percebem o ar confuso e ao mesmo tempo agressivo do
jovem.
Ivan pensa em perguntar se eles viram ou ouviram alguma
coisa incomum durante a noite, mas é interrompido
pela visão de Mariana, sem nenhum arranhão,
exceto aquela ferida esquisita que vira em seu calcanhar.
Agora não mais sangrava, parecia estar em carne
viva. Dona Noca chega por trás e o cutuca no
ombro. Ivan se assusta, pois não percebera sua
aproximação.
- Calma moço! O senhor quer tomar café?
– pergunta com total naturalidade.
Sem entender muita coisa e já ficando sem paciência
por estar sendo feito de palhaço por aquela gente,
Ivan pega o pão da mão da velha e senta
numa mesa do canto. Os outros hóspedes estranham
um pouco, mas deixam-no em paz.
Louco para deixar aquele lugar, Ivan tenta de todo
jeito encontrar um telefone para falar com aquele que
o tiraria dali. Sem chance. Não havia telefone
naquele cafundó. E ele ainda tinha que se dar
por feliz por haver luz de lampião e casas de
alvenaria.
Naquele dia Ivan não almoça e passa todo
o tempo trancado em seu quarto. Observa tudo pela janela,
preparando-se para algum tipo de armadilha. Ficara realmente
impressionado com o que aconteceu. Em nenhuma de suas
canalhices e atrocidades havia passado por algo assim.
Alguém só podia estar querendo sacaneá-lo,
mas eles iam ver só.
Anoitecia em Arari. A lua estava completamente cheia.
A noite estava iluminada e os hormônios agitados
em todas as pessoas do vilarejo. Ivan, muito tenso e
assustado, já estava pronto para furar qualquer
um que cruzasse aquela porta. Qualquer um, pensava ele,
mas Mariana não era qualquer um. Ela entra sem
bater e ele, boquiaberto, deixa o revólver cair.
Só consegue olhar para seu olhos e para a ferida
em seu calcanhar num misto de transe hipnótico
com total excitação sexual. A ferida lentamente
torna a sangrar como na noite anterior, só que
é um sangue quase negro, viscoso e malcheiroso.
Isso não importava mais naquela altura do campeonato.
A sensação era indescritível. Algo
meio prazer, meio desespero, meio tesão, meio
horror. Mariana num único salto vai da porta
à janela e sai correndo freneticamente pela noite.
Ivan se abaixa, pega o revólver que caíra
e corre atrás com todas as suas forças.
Ele entra na mata fechada, escura como breu. De repente
surge dona Noca, novamente sem que ele conseguisse perceber.
Antes que ela pudesse impedi-lo de ir adiante, enfurecido,
salta sobre ela e dá-lhe um sem número
de facadas.
- Morre, velha filha da puta! Morre, sua vaca!
Em passos ofegantes seu Epaminondas chega e vê
que é tarde demais.
Seu burro chucro filho duma égua vagabunda!
Tu acabou de matar a única pessoa que podia evitar
uma desgraça. Agora que se dane! Eu vou me embora!
E você, seu desgraçado, vá pro diabo
que te carregue! E pode ter certeza de que ele vai carregar
sem demora!
Ivan aponta o revólver para o velho, mas antes
de apertar o gatilho Mariana surge do nada e numa posição
que mais lembrava um animal raivoso pula em cima de
seu peito. Inicialmente ele pensa que toda aquela situação
absurda resultaria num sexo selvagem e sádico
próximo ao cadáver da velha que por muitos
anos cuidara de Mariana. Ledo engano. Ante o olhar apavorado
de Ivan e do velho Epaminondas, a menina tão
delicada enrubesce, suas feições se deformam
suas unhas crescem e seu corpo é tomado por pêlos
grossos como piaçava. Ivan tenta livrar-se. Forte,
lança com as pernas aquilo que fora apenas uma
menina há alguns segundos. À sua frente
agora estava um bicho que jamais vira nem na televisão.
A boca arreganhada e os dentes ameaçadores deixavam
cair uma baba sanguinolenta e fétida. Ivan não
teve dúvidas: treinado que estava em situações
críticas, disparou todas as balas do revólver
na criatura, que cambaleou e rosnou, ou melhor, rugiu.
Não adiantou nada. A coisa estava ainda maior
em tamanho e em força. Ivan não teve chance
alguma. Nos longos segundos em que era devorado rezava
para desfalecer, o que não acontecia. Mesmo tendo
suas entranhas arrancadas a dentadas, não perdia
a consciência. Era como se não pudesse
morrer enquanto aquela besta dos infernos não
terminasse de fazê-lo passar por tão terrível
suplício. Com a visão turva e urrando
devido à dor inimaginável, ele ouve a
voz imperiosa de dona Noca:
- Sai, Mariana, sai!
Sua última visão é a velha ensangüentada
olhando-o e dizendo: “eu avisei”.
- Vá se foder... você morreu, velha desgraçada...
– sua cabeça pendeu para o lado e suspirou
pela última vez.
É manhã em Arari. Seu Epaminondas vem
chegando junto com um moço bem apessoado da cidade.
- Dona Noca, este moço procura por um tal de
Ivan. A senhora tem algum hóspede com este nome
aqui?
A velha chega no portão um pouco trôpega,
com um braço enfaixado e com um corte que parecia
ser profundo na base do pescoço. Estava cicatrizando,
mas teria sido digno de um funeral, pois cortara a jugular.
O estranho olhou tudo aquilo, sentiu-se nauseado por
um momento, mas conteve-se.
- Moço, não tem nenhum Ivan por aqui.
- Tudo bem. Ele ainda não deve ter chegado.
A senhora tem um quarto vago?
Nesse ínterim, o homem nota a chegada de uma
menina de uns dezoito anos, muito jeitosinha que o olhava
fixamente. De algum modo ela despertou-lhe um intenso
desejo e ambos continuaram se fitando por segundos intermináveis.
Notou também que em seu calcanhar havia uma chaga
da qual escorria um filete de sangue.
- Mariana, vai pra dentro, vai! Tem muita coisa pra
fazer. Não fica aí parada olhando o moço!
- Olha, senhora – disse o homem – eu acho
que vou pernoitar aqui. Talvez encontre meu amigo amanhã.
Quem sabe ele se atrasou?
- É... – disse seu Epaminondas –
quem sabe...
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