Dobrou-se
de dor em meio ao tráfego intenso da megalópole.
Os transeuntes desvairados mal percebiam que ali, diante
de enormes monumentos à tecnologia, um ser humano
ajoelhava-se, não em gesto de súplica,
mas absorto em seu sofrimento.
Ouve-se o bradar de um buzina. O homem de meia idade,
curvado, presta atenção no carro importado
com um jovem impaciente gritando impropérios.
Com esforço, ele se afasta do trânsito,
um milésimo de segundo antes de ser transformado
em tapete por aquele que o ofendera.
Pensa consigo mesmo: "Não teria sido melhor
morrer?". Ele afasta esse pensamento torpe com
um olhar lânguido em direção à
lanchonete à frente, numa esperança vã
de conseguir algo para forrar o estômago, que,
desacostumado ao calor de um bom desjejum, talvez regurgitasse.
Tomou, portanto, o rumo do bar mais próximo.
Pudera, ali, encontrar um trago, um alívio para
seu tormento de dois dias sem alimento para o vício.
No curto caminho até a entrada, onde o odor de
lixo, bebida, suor e urina se mesclavam, subitamente
vê a si mesmo envolto por uma estranha nebulosidade.
Uma névoa incomum reluzia sem haver uma fonte
de luz identificável. Olha para os lados e nada
vê. Pára e nada ouve. Os odores se dispersam.
A incômoda sensação de dependência
o abandona. Uma paz incalculável o invade. "Que
lugar é esse?" – ele pergunta a si
mesmo. "Onde estão os carros, as pessoas...
tudo?".
Mário – ouve-se uma voz suave, vinda não
se sabe de onde, chamando-o pelo nome.
--Quem é que tá aí? – pergunta
assustado.
A neblina se dispersa e uma silhueta luminosa se apresenta.
Confuso, segue perguntando:
--Pode apagar a luz? Num enxergo. O que foi que aconteceu?
É a tal da bomba atômica?
--Não aconteceu nada de extraordinário,
amigo – responde a voz, que agora se mostra na
forma de um homem vestido de branco, estendendo a mão
direita em sinal de acolhida – Você agora
está precisando cuidar de si. Gostaria de vir
comigo para tratar de seus males?
--Queria sim, seu moço, mas eu não tenho
como pagar. Tô muito doente e não trabalho
há mais de ano.
--Não há necessidade de dinheiro, Mário,
aqui somos todos amigos uns dos outros. Só precisamos
trabalhar um pouco, mas para isso temos que cuidar de
nossas feridas. Venha, vamos nos juntar ao grupo de
recém-chegados. Você agora tem uma tarefa
a desempenhar. Estou aqui para lembrá-lo de quem
você é de fato. Todavia, ainda temos bastante
tempo. Aqui você terá toda a tranqüilidade
de que precisa para fazer o que tem de fazer. Entenda
que as pessoas do lugar de onde você está
saindo são muito infelizes...
Ouvindo todas as explicações do homem
de branco, ambos seguiram em frente. Agora com a visão
mais clara, Mário via-se ao lado de um grupo
de pessoas rodeando alguma coisa que ali jazia. Deu-lhes
as costas e foi-se embora junto com seu novo amigo,
desaparecendo em meio a novo nevoeiro.
Os curiosos se perguntavam o que estava acontecendo,
ao que ouviam a seguinte resposta:
--Este bêbado estava no lugar errado e na hora
errada. Dois caras que discutiam por causa de uma batida
de carros sacaram armas e saíram atirando. Nenhum
dos dois se feriu, mas uma bala perdida acertou esse
infeliz na cabeça. Este mundo não tem
mais jeito. Leva ele pro rabecão, ô Mendonça!
Que profissão miserável, ficar tirando
esse tipo de lixo das ruas... um dia ainda ganho na
Mega-Sena e aí sim vou ser feliz...
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