O JOGO DO GRÊMIO
Por Fernando Fernandes

 

 

Engraçado: sempre pensei que todos os times jogavam ao mesmo tempo. Papai, no domingo, sempre fica ouvindo os jogos do Rio de Janeiro, no rádio grande da sala, e é assim que o homem da Rádio Globo fala: lá vai Zico, passa para Carlinhos, dá um lençol em Carlos Alberto e coisa e tal, Gooooooooollll do Flamengo, e lá vai o Valdo no ataque, o Fluminense ainda não viu a cor da bola, mas o Renato dá um bicão e manda a esfera para a linha de fundo salvando o Santos do perigo.

Mas é claro! No campo de futebol só tem dois gols, que o papai ensinou que chamam balizas. Gol é só quando um time enfia a bola lá dentro. Para jogarem cinco times ao mesmo tempo, só se tivesse cinco balizas.

Eu nunca tinha visto a nossa casa daqui, desse lado do rio. A estradinha dos eucaliptos só serve mesmo pra isso: caminho pro campo do Grêmio. Daqui vejo a janela do meu quarto, tão pequena. Mamãe deve estar fazendo café. Ela passa o dia mexendo com comida. Antes da gente sair, insistiu com papai pra não esquecer de me dar as bananas que ela guardou no saquinho que papai vai carregando, na outra mão. Eu queria trazer também a bandeira que desenhei hoje de manhã, em papel de enrolar pão, mas ninguém deixou: copiei do atlas, era uma página com bandeiras do mundo inteiro. Fiz a de Cuba, porque achei bonita aquela estrelinha branca e porque era fácil de fazer, com a régua na mão. Quando acabei, mamãe disse que bandeira de Cuba não pode, porque lá tem um tal de Fidel Castro que é muito brabo e manda encostar as pessoas num paredão e matar com tiro de metralhadora. Ela chegou a dizer que a polícia podia me prender, mas não acredito que botem na cadeia um menino da minha idade. Quer dizer: se eles lessem meu pensamento, até que me prendiam. Mas não por causa de Cuba.

Papai hoje me chamou pra ir pro jogo. Perguntei se era o Flamengo que ia jogar. Ele diz que torce pelo Flamengo, e que eu devo torcer também. Foi aí que ele me explicou que o Flamengo só joga no Rio de Janeiro, lá onde moram vovó e tia Rita. Mas eu não pretendo ser Flamengo. Acho que é besteira torcer por um time que a gente só escuta pelo rádio. Melhor torcer pelo Malharia, que tem uma banda bonita. Mas papai também diz que o Malharia é time de amadores, que é uma coisa que vale menos que um outro troço chamado time de profissional. O Flamengo é de profissional, mas não é daqui. O Grêmio é de profissional e é daqui, mas eu não gosto dele. O nome é muito feio. Parece uma doença. Até acho que lembro de ter ouvido mamãe dizer pro Doutor Macedo: esse menino vive doentinho, já teve coqueluche, caxumba e Grêmio. Prefiro o Malharia. Mesmo sendo amador, que nem diz papai.

E hoje de manhã, quando papai disse que a gente ia ao jogo, logo fiquei todo feliz, pensando que ia ver meu Malharia. Que nada: é jogo do Grêmio, mesmo, e contra um time de Manhuaçu. Como é que chama mesmo, papai? Rodoviário! Nome bonito pra time de futebol. Ou pra um cachorro, desses peludões. Vou torcer pro Rodoviário. Mas será que papai não fica triste?

O jipe do Doutor Macedo passa pela gente e joga poeira na minha boca. Lá vai pro jogo. Só pode ser. Pra aqueles lados, não tem mais nada além do campo. Será que é esse campo que chamam de Maracanã? É, papai? Não. Claro que não pode ser. O rádio fala de Maracanã e o rádio só diz o que acontece lá no Rio. Só teve uma vezinha que mamãe estava ouvindo umas coisas, na sala, e dizendo que aquilo era a transmissão da procissão da sexta-feira santa, feita pela Rádio de Manhuaçu. Aqui em Manhumirim tem uma estação de rádio, dentro do terreno da igreja. Mas acho que não transmite jogo, só reza.

Também passa pela gente a caminhonete marrom e branca do seu Djalma, marido da minha professora. Ela é muito chata. E muito brigona também. Outro dia deu tanta reguada na mão do Édson que a mão dele ficou toda empolada e tiveram que botar na água com sal pra desinchar. E só porque ele disse que Caparaó Velho era uma cidade mais maior de grande que Manhumirim. A Dona Déa dava uma reguada e dizia: essa é pra aprender a não ser ingrato com o seu município! Depois dava outra mais forte e cacarejava: e essa é pra aprender a respeitar o vernáculo! Até agora a gente não descobriu quem é esse tal de vernáculo. Deve ser o nome de verdade do prefeito, que todo mundo chama de Seu Noquinha. Ele é massa, sempre dá bala de hortelã pros garotos que ficam jogando bola de gude na calçada da prefeitura, mas acho que ia ficar bem brabo se ouvisse o que o Édson falou. Até porque todo mundo sabe que Caparaó Velho é uma pinoiazinha bem pequetita, que nem se compara com o tamanhão de Manhumirim. Lá só tem meia dúzia de casinhas de barro na beira da linha do trem e aquelas mulheres alemoas de língua enrolada que ficam vendendo pastel na plataforma quando o expresso pára na estação. Aqui, não: os alemães sabem falar brasileiro e a cidade é tão grande que dá a volta toda no morro do Amarelim e ainda continua crescendo pros lados do pontilhão do trem.

Pior que a Dona Déa só as irmãs Brenning: elas são em três, e vivem andando juntas pra todo lado. Quando não estão dando aula na nossa escola, ficam subindo e descendo a avenida Raul Soares de braço dado, dizem que procurando marido. Mas as três são muito velhas, muito mais velhas que a minha mãe, e fala o pessoal do botequim do Fritz Gordo que uma delas, acho que a Dona Genoveva, já teve um marido que ela matou com veneno e enterrou no quintal do seminário. Eu não acredito nisso, porque ela é tão feia que nenhum homem daqui ia querer casar com ela, e papai mesmo diz que homem que se preza não casa com mulher de Manhumirim, mas vai buscar moça da roça, que é obediente e sabe fazer comida mais gostosa. Assim ouvi papai dizendo pro Seu Maurício do posto de gasolina, e deve estar certo, porque tia Inhá, que mora lá no alto da Serra do Caparaó, sabe fazer um quindim que a gente lambe os beiços, e mamãe, que veio de Ponte Nova, até hoje não aprendeu a botar sal no tutu com couve: ou tem demais, e a gente depois precisa beber um monte de água pra tirar o gosto, ou não tem nenhum, e a gente finge que gosta e vai dando pro gato enquanto ela não vê.

A Dona Genoveva tem duas irmãs, Dona Jorjeta e Dona Julieta. A Dona Jorjeta usa óculos grosso pra esconder o nariz de tico-tico, bem bicudinho. A Dona Julieta é gorda que nem uma vaca leiteira e fala tudo errado, igualzinho o irmão do Édson. Uns dizem que a língua dela é presa, outros dizem que é uma doença que ela teve quando era pequena, que fez a Dona Julieta viver com fome e trocando as letras. É bem engraçado quando ela diz aos meninos pla tomar cuidado quando atlavessar a linha do tlem, mas ninguém tem coragem de rir, porque a mão da alemoa gorda é muito pesada e ela só bate na gente pelas costas, pra pegar na espinha.

Aliás, todas elas adoram bater em criança, principalmente nas mais escuras. Parece que na terra da família delas, que é bem longe do Brasil, só tem gente loura de olho azul e pé grande e, quando aparece um preto por lá, eles acham tão esquisito que mandam prender e botam no jardim zoológico, pra todo mundo ficar olhando. Já perguntei ao papai porque que em Manhumirim existe gente de tanta cor diferente, que nem acontece lá na escola: o Eduardo Schmidt tem olho azul e uma pele tão branquinha que, toda vez que o sol começa a bater forte, a mãe tranca ele em casa e proíbe de brincar no campinho, pra não ficar com a cara ardida. Já o Augustinho é tão preto que quando cai geada a perna dele queima e fica cinzenta, igualzinho perna de defunto. Seu Maurício do posto é que fala assim: esse mininim tem nome errado. Onde já se viu preto chamado Argusto? Tem que chamar Benedito ou Tião, que é nome apropriado pra tição! Seu Maurício vive dizendo que tem nome certo pra tudo: macaco, por exemplo, só pode ser Catarina ou Simão. Cachorro, é Duque ou Princesa. Vaca, é Mimosa, Branquinha ou Malhada. Acho que seu Maurício não é bom dos miolos. Já pensou se fosse do jeito que ele quer? A gente chegava no quintal e chamava o Duque. Em vez de vir um só, vinha toda a cachorrada de Manhumirim, que eles nunca iam saber quem a gente estava chamando. Ou iam? Depois do jogo, vou perguntar pro papai.

Nossa casa já sumiu. Depois da curva da leiteria, não dá mais pra ver a cidade, do outro lado do rio. E agora já estamos bem pertinho do campo. Dá pra ver que o ônibus cinzento de Manhuaçu está coladinho no muro, do lado daquele buraquinho por onde vendem as entradas. Papai já tirou o dinheiro do bolso e entrou na fila, mas me mandou ficar na outra, a das crianças que entram de graça. Bem na entrada do campo, onde fica o homem que pega os bilhetes, tem uma vareta presa na parede, um pouquinho mais alta que o meu tamanho. Quem passar por ali e não bater com a cabeça na vareta, não precisa pagar. Bem que eu me estico todo, mas ainda falta um palmo pra chegar na vareta. Papai fica contente, diz que filho pequeno sai mais barato, porque come pouco e não paga entrada no campo, mas não gosto nem um pouco quando o homem da porta dá um tapinha na minha cabeça e fala, todo sorridente, pode entrar, miudim.

Papai compra dois sacos de pipoca e diz: esse é pra mim, esse é procê, mas come devagar, porque tem que durar o jogo todo. A gente sentou na - como é que chama, pai? - na arquibancada, perto do pessoal da rua do Sapo que sempre passeia na Raul Soares carregando a bandeira vermelha com a bola desenhada. Eduardo Schmidt falou que é a bandeira do Grêmio e eu fiquei duvidando. Não tem no atlas lá de casa, e só quem tem bandeira é país, que nem Cuba. Por falar nisso, papai, qual é o time do Fidel Castro?

Ai, não precisava me dar um tapão na boca e me mandar ficar quieto até o fim do jogo. Esse Fidel Castro deve ser pior que a Dona Genoveva: toda vez que a gente fala o nome dele alguém fica de cabelo em pé e logo quer bater. Acho que Cuba é pros lados de Iúna. Papai já me levou lá uma vez e disse que a gente tinha atravessado a fronteira e saído de Minas Gerais. Também disse que Iúna é lugar de gente perigosa, que anda armada de garrucha e gosta de dar tiro em mineiro tagarela. Aí eu perguntei que lugar era aquele, que não era Minas, e ele explicou que chamava Espírito Santo. Não entendi nada. Ele ficou nervoso comigo e disse que espírito é alma do outro mundo e que santo é gente boa que já morreu. Aí eu entendi: lá em Iúna chama Espírito Santo porque eles matam as pessoas boas e as almas ficam passeando por lá, assustando os outros. Por isso que a cidade é tão pequena e cheia de lama. Mineiro que vai lá sai de manhã e sempre volta no ônibus da hora da janta, que de noite as almas correm atrás da gente.

Outra coisa que não entendo é essa história de fronteira. Mamãe explicou que é uma marquinha que ajuda a gente a saber que saiu de um país e chegou no outro, mas fiquei a viagem inteira procurando a tal da marca e não consegui ver nada. Acho que Seu Noquinha devia mandar fazer uma cerca bem alta, pra todo mundo saber onde termina Minas Gerais. Mas mesmo que a gente não veja a fronteira, as almas devem ver, porque nunca ouvi falar de ninguém em Manhumirim que tenha levado uma carreira de alma de Iúna. Aqui só tem mula sem cabeça, mas o Eduardo Schmidt diz que ela não entra na cidade, prefere ficar pastando na estrada que vai pra Manhuaçu. Não sei por onde ela come o capim, já que não tem cabeça, mas se o Eduardo Schmidt disse, só pode ser assim. Ele sabe muita coisa, até o lugar pra onde os ciganos levam as crianças que eles roubam pra fazer sabão. De vez em quando tem cigano na cidade, e eu sempre fujo quando vejo um, que não sou besta. Quero ficar do tamanho do papai e virar maquinista de trem, os ciganos que roubem os garotos da roça que não sabem ler e nunca foram a Iúna.

Os times estão entrando no campo. O de Manhuaçu usa uma camisa bonita, toda verdinha, cor de folha de abacate. O Grêmio vem de camisa vermelha com aquela bola desenhada no peito. Tem também uns sujeitos de roupa toda preta, que nem a do pastor da igreja luterana. Só que, em vez de calça de terno e sapato engraxado, eles também usam calção igual ao dos outros jogadores. O mais baixinho deles, que é barrigudo feito os porquinhos do chiqueiro do seu Djalma, carrega um apito pendurado no pescoço, preso por uma cordinha, como se fosse um colar. Pra que será? Por falar no seu Djalma, olha ele lá do outro lado, com uma laranja na mão. Bem que mamãe podia ter posto laranja no saquinho da merenda. É mais gostoso que banana, e, depois que a gente chupa, pode pegar o bagaço, encher de pimenta e dar pro cachorro do vizinho comer. Ele sempre vem correndo, todo satisfeito, com o rabo balançando de contente, e pula de boca na laranja quando a gente joga por cima do portão. Depois, começa a tremer e a uivar, sai correndo feito um louco pro laguinho que a dona Giselda tem no jardim e enfia a cara dentro d’água, até encharcar o focinho. É muito engraçado, porque toda vez ele faz a mesma coisa. Aquele cachorro é diferente dos outros, não aprende nada. A única coisa que ele sabe fazer direito é levantar as orelhas, uma de cada vez, quando chamam pelo nome. A dona Giselda grita assim: Belzonte! Belzonte! Vem cá, Belzonte, e ele levanta uma orelha de cada vez, enquanto a outra fica abaixadinha. Não sei como ele consegue. Já tentei fazer com a minha, mas não funcionou. Mamãe de vez em quando diz que eu vivo de orelha em pé, mas é mentira. Ela só fica no lugar de sempre, agarradinha nos lados da cabeça, que nem asa de bule.

O barrigudinho vestido de preto deve ser um cara muito importante. Deu uma soprada no apito e todo mundo juntou em volta dele, no meio do campo. Só que o Fritz Gordo já ficou em pé na arquibancada e tá lá apontando pro barrigudo e chamando de ladrão. Será que ele roubou o quê? Só pode ter sido o apito. Mas o baixinho de roupa preta nem liga. Fritz Gordo também tá dizendo uns nomes feios, que se eu repetisse mamãe me botava de castigo atrás da goiabeira. Os homens que vieram no ônibus de Manhuaçu é que já estão olhando de cara feia e falando umas coisas pro Fritz que daqui não dá pra escutar.

O jogo começou. Agora é que estou vendo que o Ticão, irmão mais velho do meu colega de escola Leandro Cabeçudo, também joga no time do Grêmio. Na hora em que ele entrou no campo, nem deu pra conhecer, porque só tenho costume de ver o Ticão de pé descalço, trabalhando de enxada nas roças do seu Brás. Diz o Leandro que o Ticão é o moço que corta lenha mais rápido na cidade inteira, e que foi ele sozinho que serrou todas as toras da fogueira de São João que o prefeito mandou fazer. Diz o seu Maurício do posto que o seu Noquinha gasta o dinheiro inteirinho da prefeitura em festa junina, que ele adora tomar pinga e comer inhame assado, e que, enquanto isso, falta dinheiro pra pagar as professoras da escola. Deve ser por isso que Dona Genoveva, Dona Jorjeta e Dona Julieta vivem de cara feia e batendo em criança. Falam também que, quando acabar o tempo do seu Noquinha na prefeitura, vão botar o Doutor Macedo no lugar dele, que tá todo mundo zangado com essa história de prefeito que gosta de pinga. Se acontecer, vou achar ótimo, porque assim o Doutor Macedo não vai ter mais tempo de enfiar aquela colher comprida na minha língua pra olhar no fundo da garganta. Ele faz isso só de maldade, que sabe que faz cosquinha e dá vontade de botar o almoço pra fora. Pior é que, depois de tirar a colher, ele sempre inventa de passar iodo lá no fundo da minha garganta com um pincelzinho que também faz cócega e tem um gosto tão ruim que chega a ser pior que o tutu com couve salgado que a mamãe faz.

Se botarem o Doutor Macedo de prefeito, é bem capaz que ele resolva passar iodo na garganta da cidade inteira, ele tem mania disso. Aí, quem sabe, mandam ele embora pra Iúna, ou então pra Cuba, e botam de volta o seu Noquinha, mesmo com a cachaça e o inhame assado. Aliás, todo mundo gosta do seu Noquinha, apesar de falar mal. Fritz Gordo é que diz que Manhumirim é a única cidade de Minas Gerais que tem um prefeito que reconhece a importância cultural dos botequins e das casas de tolerância. Ainda não sei bem o que é isso e papai não quis explicar, mas deve ser coisa boa, porque o Fritz sempre fala rindo e todo mundo diz amém.

Os homens de Manhuaçu continuam de braços cruzados e olhando tudo de cara feia. Estão bem atrás do gol - quer dizer, da baliza do Grêmio. Já o seu Djalma, que continua com a laranja na mão, atravessou a arquibancada inteira, dizendo umas coisas, e levou uma porção de gente pro outro lado, atrás da baliza do goleiro do Rodoviário. Os times já estão jogando, mas o barrigudinho de calção preto de vez em quando dá uma apitada e todo mundo pára na mesma hora. Acho que ele é o mandão do jogo. Os outros dois sujeitos de preto nem entram no campo: ficam na beirinha, balançando umas bandeirolas sem graça que eu podia desenhar umas bem melhores.

Que hora vão fazer o gol? Hein, pai? Mas papai nem responde, de tão nervoso que está, olhando pro campo. Toda vez que o Josué, filho do pastor, pega na bola, ele levanta e fica torcendo, dando soco no vento. Ele grita vai lá, vai lá, mete a gorduchinha no filó, e me dá uns tapões nas costas dizendo torce também, moleque, eu paguei sua pipoca pra você torcer. Aí eu finjo que torço, grito vai lá, Ticão, que eu não vou com a cara do Josué, depois sento de novo e continuo mastigando.

Bem na horinha que o Januário Gertner ia entrar no gol com bola e tudo, o barrigudinho com cara de porco soprou o apito e parou o jogo. Acho que ele não gostou de ver o Raimundim da Estação dar uma rasteira no goleiro de Manhuaçu. Mas o Raimundim não faz por mal, a diversão dele é essa mesma. Todo dia, quando a gente vem da escola e atravessa a linha do trem, o Raimundim tá lá, sempre dizendo vem cá, pirralho, vem que eu te dou uma rasteira. E dá mesmo, mas depois ajuda a gente a levantar e deixa a gente dar rasteira nele também. Só que o barrigudo não deve gostar dessas brincadeiras e está com o dedo fura-bolo bem na fuça do Raimundim, com cara de bronca. Agora o Raimundim está saindo do campo e todo mundo começou a xingar o barrigudo de tudo quanto é nome que mamãe não quer que eu fale. Só quem bate palma é o pessoal de Manhuaçu.

Seu Djalma pegou a laranja, fez pontaria e acertou bem na orelha do barrigudo, que desabou no chão. O goleiro do Manhuaçu agora está correndo pra beira do campo e chamando o seu Djalma pra briga, com a mão nas cadeiras.

Ih, seu Djalma pulou no campo. Atrás dele vem o pessoal todo, e não deve ser pra ajudar o porco barrigudo a levantar do chão. Papai está em pé, com a cara vermelha, gritando que o Raimundim tem que voltar e dar uma coça em não sei quem. Mas o Raimundim nem teve tempo de escutar, porque já tem dois jogadores do time do Rodoviário segurando ele pela gola e embolachando. O Ticão, irmão do meu colega Leandro Cabeçudo, agarrou pelo calção um cara mirradinho do time de Manhuaçu, suspendeu o coitado no alto e jogou longe, que nem ele faz com as toras de madeira da roça do seu Brás. O pessoal de Manhuaçu também levantou e pulou a cerquinha do campo. Eles não são muita gente, mas parece que não têm medo de nada, porque daqui estou vendo eles encarando o seu Djalma, o seu Maurício do posto e o Marcelo Perna Curta, tudo ao mesmo tempo. Papai tá aqui do lado gritando arreia o cacete, Djalma, arreia o cacete nos tatus! Nem precisa dizer que tatus são as pessoas que moram em Manhuaçu, porque a cidade fica num buraco e, quando a gente passa na estrada, só dá pra ver a torre da igreja, bem rentinho ao chão.

Cadê o barrigudinho, que sumiu? Ah, lá vai ele, correndo a toda rente ao canto do muro e levando cascudo daquelas gentes alemoas que moram na rua do Sapo.

Ei, pai, faz isso não! Papai ficou tão nervoso que agarrou meu saco de pipoca e jogou no campo, em cima de um dos caras de Manhuaçu. Poxa, não precisava. Por que não joga a pipoca dele? Agora só tem banana pra eu comer até o jogo terminar.

O chato é que os caras de Manhuaçu olharam pra cima e viram que foi o papai. Agora estão subindo pela arquibancada e apontando pra nós, com cara de zangados. Mas papai é forte, ninguém tira farofa com ele, papai bate neles todos com a mão amarrada. Né, papai? Uai, cadê o papai? Me largou aqui e saiu correndo, tá indo lá pro outro lado, pra se juntar com o pessoal do seu Djalma. Olha só, nem tinha reparado! O Leandro Cabeçudo e o Édson estão bem ali atrás, encarapitados no alto do muro. Será que eu consigo chegar lá? Os caras de Manhuaçu passam correndo por mim e nem me olham, acham que eu sou pequeno demais pra apanhar. Ih, seu Maurício do posto sacou a garrucha e deu um tiro pra cima. Não pegou em ninguém, mas todo mundo saiu correndo, o campo ficou vaziinho, igual o pasto do seu Brás, depois que as vacas morreram de peste. Lá vem o papai de novo, correndo feito um doido e me chamando. Me agarra pelo braço e sai me puxando tão forte que nem dá tempo pra dizer oi pro Leandro Cabeçudo. Amanhã a gente conversa na escola.

Do lado de fora, na estradinha, está uma bagunça só. Tem gente jogando pedra no ônibus cinzento de Manhuaçu, pra quebrar os vidros das janelas. Doutor Macedo, que não gosta de briga, pegou o jipe e saiu de marcha-a-ré tão rapidinho que quase a roda bate na minha canela. Papai continua me arrastando, e com tanta pressa que com certeza meu braço vai ficar vermelho. Acho que vamos chegar em casa antes de mamãe ter tempo de botar o lanche na mesa. Papai continua resmungando, e agora que eu reparei que o olho dele tá meio roxo. Mas afinal, quem ganhou o jogo? Ai, tá bom, não precisa me dar cascudo, eu deixo pra perguntar amanhã na escola. É por isso que não gosto de torcer pelo Grêmio. Todo jogo é assim: a gente vai, não tira o olho do campo e acaba saindo de lá sem saber quem ganhou.