Engraçado: sempre
pensei que todos os times jogavam ao mesmo tempo. Papai,
no domingo, sempre fica ouvindo os jogos do Rio de Janeiro,
no rádio grande da sala, e é assim que
o homem da Rádio Globo fala: lá vai Zico,
passa para Carlinhos, dá um lençol em
Carlos Alberto e coisa e tal, Gooooooooollll do Flamengo,
e lá vai o Valdo no ataque, o Fluminense ainda
não viu a cor da bola, mas o Renato dá
um bicão e manda a esfera para a linha de fundo
salvando o Santos do perigo.
Mas é claro!
No campo de futebol só tem dois gols, que o papai
ensinou que chamam balizas. Gol é só quando
um time enfia a bola lá dentro. Para jogarem
cinco times ao mesmo tempo, só se tivesse cinco
balizas.
Eu nunca tinha visto
a nossa casa daqui, desse lado do rio. A estradinha
dos eucaliptos só serve mesmo pra isso: caminho
pro campo do Grêmio. Daqui vejo a janela do meu
quarto, tão pequena. Mamãe deve estar
fazendo café. Ela passa o dia mexendo com comida.
Antes da gente sair, insistiu com papai pra não
esquecer de me dar as bananas que ela guardou no saquinho
que papai vai carregando, na outra mão. Eu queria
trazer também a bandeira que desenhei hoje de
manhã, em papel de enrolar pão, mas ninguém
deixou: copiei do atlas, era uma página com bandeiras
do mundo inteiro. Fiz a de Cuba, porque achei bonita
aquela estrelinha branca e porque era fácil de
fazer, com a régua na mão. Quando acabei,
mamãe disse que bandeira de Cuba não pode,
porque lá tem um tal de Fidel Castro que é
muito brabo e manda encostar as pessoas num paredão
e matar com tiro de metralhadora. Ela chegou a dizer
que a polícia podia me prender, mas não
acredito que botem na cadeia um menino da minha idade.
Quer dizer: se eles lessem meu pensamento, até
que me prendiam. Mas não por causa de Cuba.
Papai hoje me chamou
pra ir pro jogo. Perguntei se era o Flamengo que ia
jogar. Ele diz que torce pelo Flamengo, e que eu devo
torcer também. Foi aí que ele me explicou
que o Flamengo só joga no Rio de Janeiro, lá
onde moram vovó e tia Rita. Mas eu não
pretendo ser Flamengo. Acho que é besteira torcer
por um time que a gente só escuta pelo rádio.
Melhor torcer pelo Malharia, que tem uma banda bonita.
Mas papai também diz que o Malharia é
time de amadores, que é uma coisa que vale menos
que um outro troço chamado time de profissional.
O Flamengo é de profissional, mas não
é daqui. O Grêmio é de profissional
e é daqui, mas eu não gosto dele. O nome
é muito feio. Parece uma doença. Até
acho que lembro de ter ouvido mamãe dizer pro
Doutor Macedo: esse menino vive doentinho, já
teve coqueluche, caxumba e Grêmio. Prefiro o Malharia.
Mesmo sendo amador, que nem diz papai.
E hoje de manhã,
quando papai disse que a gente ia ao jogo, logo fiquei
todo feliz, pensando que ia ver meu Malharia. Que nada:
é jogo do Grêmio, mesmo, e contra um time
de Manhuaçu. Como é que chama mesmo, papai?
Rodoviário! Nome bonito pra time de futebol.
Ou pra um cachorro, desses peludões. Vou torcer
pro Rodoviário. Mas será que papai não
fica triste?
O jipe do Doutor Macedo
passa pela gente e joga poeira na minha boca. Lá
vai pro jogo. Só pode ser. Pra aqueles lados,
não tem mais nada além do campo. Será
que é esse campo que chamam de Maracanã?
É, papai? Não. Claro que não pode
ser. O rádio fala de Maracanã e o rádio
só diz o que acontece lá no Rio. Só
teve uma vezinha que mamãe estava ouvindo umas
coisas, na sala, e dizendo que aquilo era a transmissão
da procissão da sexta-feira santa, feita pela
Rádio de Manhuaçu. Aqui em Manhumirim
tem uma estação de rádio, dentro
do terreno da igreja. Mas acho que não transmite
jogo, só reza.
Também passa
pela gente a caminhonete marrom e branca do seu Djalma,
marido da minha professora. Ela é muito chata.
E muito brigona também. Outro dia deu tanta reguada
na mão do Édson que a mão dele
ficou toda empolada e tiveram que botar na água
com sal pra desinchar. E só porque ele disse
que Caparaó Velho era uma cidade mais maior de
grande que Manhumirim. A Dona Déa dava uma reguada
e dizia: essa é pra aprender a não ser
ingrato com o seu município! Depois dava outra
mais forte e cacarejava: e essa é pra aprender
a respeitar o vernáculo! Até agora a gente
não descobriu quem é esse tal de vernáculo.
Deve ser o nome de verdade do prefeito, que todo mundo
chama de Seu Noquinha. Ele é massa, sempre dá
bala de hortelã pros garotos que ficam jogando
bola de gude na calçada da prefeitura, mas acho
que ia ficar bem brabo se ouvisse o que o Édson
falou. Até porque todo mundo sabe que Caparaó
Velho é uma pinoiazinha bem pequetita, que nem
se compara com o tamanhão de Manhumirim. Lá
só tem meia dúzia de casinhas de barro
na beira da linha do trem e aquelas mulheres alemoas
de língua enrolada que ficam vendendo pastel
na plataforma quando o expresso pára na estação.
Aqui, não: os alemães sabem falar brasileiro
e a cidade é tão grande que dá
a volta toda no morro do Amarelim e ainda continua crescendo
pros lados do pontilhão do trem.
Pior que a Dona Déa
só as irmãs Brenning: elas são
em três, e vivem andando juntas pra todo lado.
Quando não estão dando aula na nossa escola,
ficam subindo e descendo a avenida Raul Soares de braço
dado, dizem que procurando marido. Mas as três
são muito velhas, muito mais velhas que a minha
mãe, e fala o pessoal do botequim do Fritz Gordo
que uma delas, acho que a Dona Genoveva, já teve
um marido que ela matou com veneno e enterrou no quintal
do seminário. Eu não acredito nisso, porque
ela é tão feia que nenhum homem daqui
ia querer casar com ela, e papai mesmo diz que homem
que se preza não casa com mulher de Manhumirim,
mas vai buscar moça da roça, que é
obediente e sabe fazer comida mais gostosa. Assim ouvi
papai dizendo pro Seu Maurício do posto de gasolina,
e deve estar certo, porque tia Inhá, que mora
lá no alto da Serra do Caparaó, sabe fazer
um quindim que a gente lambe os beiços, e mamãe,
que veio de Ponte Nova, até hoje não aprendeu
a botar sal no tutu com couve: ou tem demais, e a gente
depois precisa beber um monte de água pra tirar
o gosto, ou não tem nenhum, e a gente finge que
gosta e vai dando pro gato enquanto ela não vê.
A Dona Genoveva tem
duas irmãs, Dona Jorjeta e Dona Julieta. A Dona
Jorjeta usa óculos grosso pra esconder o nariz
de tico-tico, bem bicudinho. A Dona Julieta é
gorda que nem uma vaca leiteira e fala tudo errado,
igualzinho o irmão do Édson. Uns dizem
que a língua dela é presa, outros dizem
que é uma doença que ela teve quando era
pequena, que fez a Dona Julieta viver com fome e trocando
as letras. É bem engraçado quando ela
diz aos meninos pla tomar cuidado quando atlavessar
a linha do tlem, mas ninguém tem coragem de rir,
porque a mão da alemoa gorda é muito pesada
e ela só bate na gente pelas costas, pra pegar
na espinha.
Aliás, todas
elas adoram bater em criança, principalmente
nas mais escuras. Parece que na terra da família
delas, que é bem longe do Brasil, só tem
gente loura de olho azul e pé grande e, quando
aparece um preto por lá, eles acham tão
esquisito que mandam prender e botam no jardim zoológico,
pra todo mundo ficar olhando. Já perguntei ao
papai porque que em Manhumirim existe gente de tanta
cor diferente, que nem acontece lá na escola:
o Eduardo Schmidt tem olho azul e uma pele tão
branquinha que, toda vez que o sol começa a bater
forte, a mãe tranca ele em casa e proíbe
de brincar no campinho, pra não ficar com a cara
ardida. Já o Augustinho é tão preto
que quando cai geada a perna dele queima e fica cinzenta,
igualzinho perna de defunto. Seu Maurício do
posto é que fala assim: esse mininim tem nome
errado. Onde já se viu preto chamado Argusto?
Tem que chamar Benedito ou Tião, que é
nome apropriado pra tição! Seu Maurício
vive dizendo que tem nome certo pra tudo: macaco, por
exemplo, só pode ser Catarina ou Simão.
Cachorro, é Duque ou Princesa. Vaca, é
Mimosa, Branquinha ou Malhada. Acho que seu Maurício
não é bom dos miolos. Já pensou
se fosse do jeito que ele quer? A gente chegava no quintal
e chamava o Duque. Em vez de vir um só, vinha
toda a cachorrada de Manhumirim, que eles nunca iam
saber quem a gente estava chamando. Ou iam? Depois do
jogo, vou perguntar pro papai.
Nossa casa já
sumiu. Depois da curva da leiteria, não dá
mais pra ver a cidade, do outro lado do rio. E agora
já estamos bem pertinho do campo. Dá pra
ver que o ônibus cinzento de Manhuaçu está
coladinho no muro, do lado daquele buraquinho por onde
vendem as entradas. Papai já tirou o dinheiro
do bolso e entrou na fila, mas me mandou ficar na outra,
a das crianças que entram de graça. Bem
na entrada do campo, onde fica o homem que pega os bilhetes,
tem uma vareta presa na parede, um pouquinho mais alta
que o meu tamanho. Quem passar por ali e não
bater com a cabeça na vareta, não precisa
pagar. Bem que eu me estico todo, mas ainda falta um
palmo pra chegar na vareta. Papai fica contente, diz
que filho pequeno sai mais barato, porque come pouco
e não paga entrada no campo, mas não gosto
nem um pouco quando o homem da porta dá um tapinha
na minha cabeça e fala, todo sorridente, pode
entrar, miudim.
Papai compra dois sacos
de pipoca e diz: esse é pra mim, esse é
procê, mas come devagar, porque tem que durar
o jogo todo. A gente sentou na - como é que chama,
pai? - na arquibancada, perto do pessoal da rua do Sapo
que sempre passeia na Raul Soares carregando a bandeira
vermelha com a bola desenhada. Eduardo Schmidt falou
que é a bandeira do Grêmio e eu fiquei
duvidando. Não tem no atlas lá de casa,
e só quem tem bandeira é país,
que nem Cuba. Por falar nisso, papai, qual é
o time do Fidel Castro?
Ai, não precisava
me dar um tapão na boca e me mandar ficar quieto
até o fim do jogo. Esse Fidel Castro deve ser
pior que a Dona Genoveva: toda vez que a gente fala
o nome dele alguém fica de cabelo em pé
e logo quer bater. Acho que Cuba é pros lados
de Iúna. Papai já me levou lá uma
vez e disse que a gente tinha atravessado a fronteira
e saído de Minas Gerais. Também disse
que Iúna é lugar de gente perigosa, que
anda armada de garrucha e gosta de dar tiro em mineiro
tagarela. Aí eu perguntei que lugar era aquele,
que não era Minas, e ele explicou que chamava
Espírito Santo. Não entendi nada. Ele
ficou nervoso comigo e disse que espírito é
alma do outro mundo e que santo é gente boa que
já morreu. Aí eu entendi: lá em
Iúna chama Espírito Santo porque eles
matam as pessoas boas e as almas ficam passeando por
lá, assustando os outros. Por isso que a cidade
é tão pequena e cheia de lama. Mineiro
que vai lá sai de manhã e sempre volta
no ônibus da hora da janta, que de noite as almas
correm atrás da gente.
Outra coisa que não entendo é essa história
de fronteira. Mamãe explicou que é uma
marquinha que ajuda a gente a saber que saiu de um país
e chegou no outro, mas fiquei a viagem inteira procurando
a tal da marca e não consegui ver nada. Acho
que Seu Noquinha devia mandar fazer uma cerca bem alta,
pra todo mundo saber onde termina Minas Gerais. Mas
mesmo que a gente não veja a fronteira, as almas
devem ver, porque nunca ouvi falar de ninguém
em Manhumirim que tenha levado uma carreira de alma
de Iúna. Aqui só tem mula sem cabeça,
mas o Eduardo Schmidt diz que ela não entra na
cidade, prefere ficar pastando na estrada que vai pra
Manhuaçu. Não sei por onde ela come o
capim, já que não tem cabeça, mas
se o Eduardo Schmidt disse, só pode ser assim.
Ele sabe muita coisa, até o lugar pra onde os
ciganos levam as crianças que eles roubam pra
fazer sabão. De vez em quando tem cigano na cidade,
e eu sempre fujo quando vejo um, que não sou
besta. Quero ficar do tamanho do papai e virar maquinista
de trem, os ciganos que roubem os garotos da roça
que não sabem ler e nunca foram a Iúna.
Os times estão
entrando no campo. O de Manhuaçu usa uma camisa
bonita, toda verdinha, cor de folha de abacate. O Grêmio
vem de camisa vermelha com aquela bola desenhada no
peito. Tem também uns sujeitos de roupa toda
preta, que nem a do pastor da igreja luterana. Só
que, em vez de calça de terno e sapato engraxado,
eles também usam calção igual ao
dos outros jogadores. O mais baixinho deles, que é
barrigudo feito os porquinhos do chiqueiro do seu Djalma,
carrega um apito pendurado no pescoço, preso
por uma cordinha, como se fosse um colar. Pra que será?
Por falar no seu Djalma, olha ele lá do outro
lado, com uma laranja na mão. Bem que mamãe
podia ter posto laranja no saquinho da merenda. É
mais gostoso que banana, e, depois que a gente chupa,
pode pegar o bagaço, encher de pimenta e dar
pro cachorro do vizinho comer. Ele sempre vem correndo,
todo satisfeito, com o rabo balançando de contente,
e pula de boca na laranja quando a gente joga por cima
do portão. Depois, começa a tremer e a
uivar, sai correndo feito um louco pro laguinho que
a dona Giselda tem no jardim e enfia a cara dentro d’água,
até encharcar o focinho. É muito engraçado,
porque toda vez ele faz a mesma coisa. Aquele cachorro
é diferente dos outros, não aprende nada.
A única coisa que ele sabe fazer direito é
levantar as orelhas, uma de cada vez, quando chamam
pelo nome. A dona Giselda grita assim: Belzonte! Belzonte!
Vem cá, Belzonte, e ele levanta uma orelha de
cada vez, enquanto a outra fica abaixadinha. Não
sei como ele consegue. Já tentei fazer com a
minha, mas não funcionou. Mamãe de vez
em quando diz que eu vivo de orelha em pé, mas
é mentira. Ela só fica no lugar de sempre,
agarradinha nos lados da cabeça, que nem asa
de bule.
O barrigudinho vestido
de preto deve ser um cara muito importante. Deu uma
soprada no apito e todo mundo juntou em volta dele,
no meio do campo. Só que o Fritz Gordo já
ficou em pé na arquibancada e tá lá
apontando pro barrigudo e chamando de ladrão.
Será que ele roubou o quê? Só pode
ter sido o apito. Mas o baixinho de roupa preta nem
liga. Fritz Gordo também tá dizendo uns
nomes feios, que se eu repetisse mamãe me botava
de castigo atrás da goiabeira. Os homens que
vieram no ônibus de Manhuaçu é que
já estão olhando de cara feia e falando
umas coisas pro Fritz que daqui não dá
pra escutar.
O jogo começou.
Agora é que estou vendo que o Ticão, irmão
mais velho do meu colega de escola Leandro Cabeçudo,
também joga no time do Grêmio. Na hora
em que ele entrou no campo, nem deu pra conhecer, porque
só tenho costume de ver o Ticão de pé
descalço, trabalhando de enxada nas roças
do seu Brás. Diz o Leandro que o Ticão
é o moço que corta lenha mais rápido
na cidade inteira, e que foi ele sozinho que serrou
todas as toras da fogueira de São João
que o prefeito mandou fazer. Diz o seu Maurício
do posto que o seu Noquinha gasta o dinheiro inteirinho
da prefeitura em festa junina, que ele adora tomar pinga
e comer inhame assado, e que, enquanto isso, falta dinheiro
pra pagar as professoras da escola. Deve ser por isso
que Dona Genoveva, Dona Jorjeta e Dona Julieta vivem
de cara feia e batendo em criança. Falam também
que, quando acabar o tempo do seu Noquinha na prefeitura,
vão botar o Doutor Macedo no lugar dele, que
tá todo mundo zangado com essa história
de prefeito que gosta de pinga. Se acontecer, vou achar
ótimo, porque assim o Doutor Macedo não
vai ter mais tempo de enfiar aquela colher comprida
na minha língua pra olhar no fundo da garganta.
Ele faz isso só de maldade, que sabe que faz
cosquinha e dá vontade de botar o almoço
pra fora. Pior é que, depois de tirar a colher,
ele sempre inventa de passar iodo lá no fundo
da minha garganta com um pincelzinho que também
faz cócega e tem um gosto tão ruim que
chega a ser pior que o tutu com couve salgado que a
mamãe faz.
Se botarem o Doutor
Macedo de prefeito, é bem capaz que ele resolva
passar iodo na garganta da cidade inteira, ele tem mania
disso. Aí, quem sabe, mandam ele embora pra Iúna,
ou então pra Cuba, e botam de volta o seu Noquinha,
mesmo com a cachaça e o inhame assado. Aliás,
todo mundo gosta do seu Noquinha, apesar de falar mal.
Fritz Gordo é que diz que Manhumirim é
a única cidade de Minas Gerais que tem um prefeito
que reconhece a importância cultural dos botequins
e das casas de tolerância. Ainda não sei
bem o que é isso e papai não quis explicar,
mas deve ser coisa boa, porque o Fritz sempre fala rindo
e todo mundo diz amém.
Os homens de Manhuaçu
continuam de braços cruzados e olhando tudo de
cara feia. Estão bem atrás do gol - quer
dizer, da baliza do Grêmio. Já o seu Djalma,
que continua com a laranja na mão, atravessou
a arquibancada inteira, dizendo umas coisas, e levou
uma porção de gente pro outro lado, atrás
da baliza do goleiro do Rodoviário. Os times
já estão jogando, mas o barrigudinho de
calção preto de vez em quando dá
uma apitada e todo mundo pára na mesma hora.
Acho que ele é o mandão do jogo. Os outros
dois sujeitos de preto nem entram no campo: ficam na
beirinha, balançando umas bandeirolas sem graça
que eu podia desenhar umas bem melhores.
Que hora vão
fazer o gol? Hein, pai? Mas papai nem responde, de tão
nervoso que está, olhando pro campo. Toda vez
que o Josué, filho do pastor, pega na bola, ele
levanta e fica torcendo, dando soco no vento. Ele grita
vai lá, vai lá, mete a gorduchinha no
filó, e me dá uns tapões nas costas
dizendo torce também, moleque, eu paguei sua
pipoca pra você torcer. Aí eu finjo que
torço, grito vai lá, Ticão, que
eu não vou com a cara do Josué, depois
sento de novo e continuo mastigando.
Bem na horinha que o
Januário Gertner ia entrar no gol com bola e
tudo, o barrigudinho com cara de porco soprou o apito
e parou o jogo. Acho que ele não gostou de ver
o Raimundim da Estação dar uma rasteira
no goleiro de Manhuaçu. Mas o Raimundim não
faz por mal, a diversão dele é essa mesma.
Todo dia, quando a gente vem da escola e atravessa a
linha do trem, o Raimundim tá lá, sempre
dizendo vem cá, pirralho, vem que eu te dou uma
rasteira. E dá mesmo, mas depois ajuda a gente
a levantar e deixa a gente dar rasteira nele também.
Só que o barrigudo não deve gostar dessas
brincadeiras e está com o dedo fura-bolo bem
na fuça do Raimundim, com cara de bronca. Agora
o Raimundim está saindo do campo e todo mundo
começou a xingar o barrigudo de tudo quanto é
nome que mamãe não quer que eu fale. Só
quem bate palma é o pessoal de Manhuaçu.
Seu Djalma pegou a laranja,
fez pontaria e acertou bem na orelha do barrigudo, que
desabou no chão. O goleiro do Manhuaçu
agora está correndo pra beira do campo e chamando
o seu Djalma pra briga, com a mão nas cadeiras.
Ih, seu Djalma pulou
no campo. Atrás dele vem o pessoal todo, e não
deve ser pra ajudar o porco barrigudo a levantar do
chão. Papai está em pé, com a cara
vermelha, gritando que o Raimundim tem que voltar e
dar uma coça em não sei quem. Mas o Raimundim
nem teve tempo de escutar, porque já tem dois
jogadores do time do Rodoviário segurando ele
pela gola e embolachando. O Ticão, irmão
do meu colega Leandro Cabeçudo, agarrou pelo
calção um cara mirradinho do time de Manhuaçu,
suspendeu o coitado no alto e jogou longe, que nem ele
faz com as toras de madeira da roça do seu Brás.
O pessoal de Manhuaçu também levantou
e pulou a cerquinha do campo. Eles não são
muita gente, mas parece que não têm medo
de nada, porque daqui estou vendo eles encarando o seu
Djalma, o seu Maurício do posto e o Marcelo Perna
Curta, tudo ao mesmo tempo. Papai tá aqui do
lado gritando arreia o cacete, Djalma, arreia o cacete
nos tatus! Nem precisa dizer que tatus são as
pessoas que moram em Manhuaçu, porque a cidade
fica num buraco e, quando a gente passa na estrada,
só dá pra ver a torre da igreja, bem rentinho
ao chão.
Cadê o barrigudinho,
que sumiu? Ah, lá vai ele, correndo a toda rente
ao canto do muro e levando cascudo daquelas gentes alemoas
que moram na rua do Sapo.
Ei, pai, faz isso não!
Papai ficou tão nervoso que agarrou meu saco
de pipoca e jogou no campo, em cima de um dos caras
de Manhuaçu. Poxa, não precisava. Por
que não joga a pipoca dele? Agora só tem
banana pra eu comer até o jogo terminar.
O chato é que
os caras de Manhuaçu olharam pra cima e viram
que foi o papai. Agora estão subindo pela arquibancada
e apontando pra nós, com cara de zangados. Mas
papai é forte, ninguém tira farofa com
ele, papai bate neles todos com a mão amarrada.
Né, papai? Uai, cadê o papai? Me largou
aqui e saiu correndo, tá indo lá pro outro
lado, pra se juntar com o pessoal do seu Djalma. Olha
só, nem tinha reparado! O Leandro Cabeçudo
e o Édson estão bem ali atrás,
encarapitados no alto do muro. Será que eu consigo
chegar lá? Os caras de Manhuaçu passam
correndo por mim e nem me olham, acham que eu sou pequeno
demais pra apanhar. Ih, seu Maurício do posto
sacou a garrucha e deu um tiro pra cima. Não
pegou em ninguém, mas todo mundo saiu correndo,
o campo ficou vaziinho, igual o pasto do seu Brás,
depois que as vacas morreram de peste. Lá vem
o papai de novo, correndo feito um doido e me chamando.
Me agarra pelo braço e sai me puxando tão
forte que nem dá tempo pra dizer oi pro Leandro
Cabeçudo. Amanhã a gente conversa na escola.