Esta seqüência de artigos
de Paulo Henrique Dantas é uma surpreendente pesquisa
de cunho antropológico onde o autor revela todo
um universo de relações à margem
da sociedade. Apontar o problema única e exclusivamente
neste grupo social é perder de vista o quadro geral
da discriminação do ser humano por seus
semelhantes. No mínimo, um estudo interessante
para quem vive às voltas com condenações
provenientes de círculos sociais aceitos pela maioria.
Paulo demonstra que grupos discriminados elaboram mecanismos
de defesa bastante particulares.
Sempre que um antropólogo se propõe a estudar
um determinado grupo social, uma série de obstáculos
são apresentados em seu caminho. Não há
dúvida que quando o grupo a ser estudado é
enquadrado como desviante, estes obstáculos podem
tomar proporções maiores, chegando a impedir
o trabalho do pesquisador. Ao me decidir pelo estudo da
baixa prostituição na cidade do Rio de Janeiro,
tinha consciência das dificuldades a serem superadas
para a obtenção de um resultado satisfatório.
Um dos pontos essenciais de dificuldade ao lidar com esses
grupos seria o da autenticidade dos discursos. Como saber
se a história que uma jovem prostituta nos conta
pode ser levada em consideração? Este tipo
de dificuldade Maria Dulce Gaspar deixa claro durante
todo o seu trabalho com as prostitutas das boates de Copacabana
no livro Garotas de Programa. Partindo deste ponto, enfatizo
a forma como desenvolvi este trabalho na Vila Mimosa.
1 - O trabalho de campo
A Vila Mimosa fica localizada em um galpão de 2500
metros quadrados, na Rua Sotero dos Reis, número
53, na Praça da Bandeira e “...é composta
por 45 casas de cinco a sete quartos. Cada quarto tem
cama e abajour e uma boa parte delas já conta com
ar condicionado (os demais têm ventiladores). As
mulheres - entre dezoito e sessenta anos - usam roupas
íntimas e camisolas transparentes somente dentro
das casas e nos corredores do galpão. Do lado de
fora, nas ruas e nos bares, a preferência é
por shorts e tops.”(Jornal O Globo, Rio de Janeiro,
30 de novembro de 1997)
Durante o período que freqüentei a Vila Mimosa,
raros foram os momentos que expus o motivo de estar lá.
Procurei sempre me manter como um suposto cliente, adotando
atitudes consideradas normais nestes lugares. Nos finais
de semana ia sempre acompanhado com um grupo que variava
de três a seis colegas e ficávamos de meia-noite
até o dia clarear. Às terças-feiras
ia sozinho, chegava por volta das nove horas da noite
e partia às duas ou três horas mais ou menos.
Quando acompanhado por colegas tinha a possibilidade de
observar atitudes de várias garotas ao mesmo tempo.
A grande maioria têm um comportamento meio padronizado,
uma forma de manter o primeiro contato. Geralmente aproximam-se
para pedir um cigarro ou um copo da sua cerveja. Quando
já se é conhecido, além do cigarro
e da cerveja, pedem uma ficha para as jukebox (máquinas
de música). As usuárias de cocaína
costumam oferecer um papelote para ser compartilhado.
A “solidariedade” com a sua pequena quantidade
de pó é planejada: certamente depois de
consumirem a sua droga, ela se oferecerá para conseguir
mais, e o cliente, numa atitude quase natural, lhe dará
o dinheiro para a compra.
Tive muitos contatos com mulheres e gerentes de “casas”
da Vila Mimosa. A maioria de informações
obtidas deu-se através de conversas informais e
muita observação participante entre uma
cerveja e outra. Apenas com duas garotas que me disseram
possuir o segundo grau e terem intenção
de no futuro tentar o vestibular, pude falar um pouco
sobre o meu trabalho. Com a grande maioria eu era apenas
um possível cliente, um cara de muita conversa
e sempre disposto a pagar cerveja e fichas para as garotas.
Levando em consideração que todos os grupos
que se encontram em atividades de desvio estabelecem formas
próprias de defesa, cabe ao pesquisador buscar
entender os mecanismos individuais que levam estas pessoas
a tomarem determinadas medidas. Elas têm consciência
da sua situação, ou seja, sabem que suas
práticas não são encaradas como “normais”
dentro dos padrões determinados pela sociedade
na qual estão inseridas. Sendo assim, é
natural que estabeleçam algumas formas de defesa
contra os outros indivíduos que estão do
“outro lado da fronteira”, que não
fazem parte do seu mundo. O “desviante”, no
momento que ele o é (lembrando que um indivíduo
nem sempre está em desvio), incorpora aspectos
de um personagem, está interpretando um papel definido
para aquele momento. A garota desenvolve formas de “aceitar”
a sua situação, adotando práticas
exclusivas para aquele momento. Sob as luzes coloridas
da casa onde trabalha ou nas ruas escuras e desertas,
ela não é mais a “Márcia”,
que tem uma filha pequena, que sonha em estudar, casar
e se mudar para bem longe. Ela é “Vanessa”,
uma devoradora de homens insaciáveis e usuária
de drogas. As formas de defesa são uma necessidade
óbvia para um local onde a violência é
uma realidade integrada. Vale aqui citar um depoimento
de Neusa Sueli, uma prostituta da Praça Tiradentes:
“Tem que ficar atenta o tempo todo. Não tomo
banho, não viro de costas, não transo no
escuro, não transo com travesseiro, nunca fico
embaixo. É o jeito.” (“Revista de Domingo”,
n. 1.088, Jornal do Brasil, 09 de março de 1997).
O nome de guerra também pode ser considerado uma
forma de defesa para essas mulheres. Ao adotar um outro
nome no seu local de trabalho ela está de certa
forma tentando preservar o que lhe resta de sua personalidade,
uma interpretação particular de que a vida
que leva não a tem por completo.
Pensando na atividade da prostituição
como algo que nos sugere uma existência muito antiga
nas sociedades humanas e que faz com que as mulheres que
a praticam sejam vistas atualmente como pessoas “erradas”,
procuro discutir alguns dados sob um ponto de vista diferenciado.
Não há como analisar objetivamente o motivo
que leva uma garota a se tornar prostituta, cada história
é uma história. O aspecto financeiro é
sempre o mais mencionado em entrevistas, e claro, o que
faz com que garotas de diversas origens se dediquem a
esta atividade. Porém, no que diz respeito às
áreas pesquisadas para este trabalho, e acredito
que posso interpretar como algo peculiar a este grupo
social, a maternidade e o vício em drogas seriam
“correntes” que forçariam estas mulheres
a permanecerem por um longo tempo com esta forma de ganhar
a vida. Nos contatos que mantive, não conheci uma
prostituta que não tivesse filhos e, de cada duas,
uma era usuária freqüente de drogas, sendo
que a outra, (usando uma expressão delas mesmas)
usava “só de vez em quando”. Neste
ponto, o do contato com os integrantes do grupo estudado,
sendo ele considerado “desviante”, é
que deve “sair” o pesquisador e entrar o boêmio,
o “que adora bater papo”, e principalmente,
pagar cerveja (e outras coisas) para as garotas.
Mas o porque de falar sobre isso?, o leitor pode estar
se perguntando. Porque acredito que o momento da pesquisa
de campo deve ser o de maior demonstração
de anti-cientificismo do antropólogo. Quando digo
isso, penso no perfil do intelectual típico da
nossa sociedade, o verdadeiro “dono da verdade”
e que sai a campo expondo todas as suas diferenças
na forma de se vestir, de falar, até de escolher
uma canção numa jukebox. Não vejo
como ser possível colher dados relevantes para
um trabalho com grupos considerados “desviantes”,
falando para seus membros o motivo principal de estar
ali. A barreira a romper, com certeza, se tornará
mais sólida e pode minar a vontade do pesquisador.
Acredito ser essencial durante a pesquisa saber o que
falar, quando falar, e principalmente, com quem falar.
Uma simples palavra numa hora imprópria pode jogar
todo um trabalho por terra.
Este trabalho de campo na Vila Mimosa também
me proporcionou momentos de angústia quando percebia
o tempo perdido durante uma madrugada inteira sem observar
nada de relevante. Voltava cansado para casa, e às
vezes arrependido por ter gastado dinheiro pagando bebidas
para as garotas. Lembro de uma noite em que trazia algumas
fotos reveladas a pedido de uma delas, Jaqueline. Eram
fotos do seu cotidiano, em companhia da filha, todas em
sua casa, no bairro da Pavuna, e como ela me disse que
estava sem dinheiro para revelá-las, ofereci-me
para fazê-lo. Cheguei imaginando ser bem recebido
e no entanto Jaqueline tratou-me com indiferença,
apanhando as fotos e logo guardando-as em seu armário.
Fiquei sem entender, pois sempre nos relacionamos muito
bem, ela era uma das garotas com as quais eu mais mantinha
contato, sempre nos abraçávamos e conversávamos
por muito tempo. No entanto, naquela noite, Jaqueline
estava diferente, parecia desejar que eu fosse embora.
E foi o que fiz, contrariado. Pelas suas feições,
era claro que a noite anterior havia sido regada a muita
droga. Uma semana depois, ela me esclareceu, entre sorrisos
e abraços, que estava no maior “bode”
naquela noite e me pediu mil desculpas, me presenteando
em seguida com uma foto sua em trajes íntimos.
A mudança freqüente de humor era, no meu ponto
de vista, uma das principais características das
garotas que faziam um uso excessivo de drogas. Elas podiam
estar conversando normalmente, em grupo, mas de uma hora
para a outra, por um motivo qualquer, começavam
alguma discussão e se ninguém interferisse
era possível que partissem para a agressão
física. Presenciei algumas partilhas de cocaína
que terminaram em tumulto, pois uma sempre achava que
a outra consumira a maior parte. Um conhecido meu, viciado,
sempre me dizia não haver amizade entre os drogados.
Naquele ambiente eu podia perceber claramente aquela observação.
A solidariedade entre as garotas é algo muito frágil,
do tipo “ela não entrando no meu caminho,
tudo bem!”’, como ouvi algumas vezes. Elas
são “amigas” entre si, mas desde que
uma não tire o possível cliente da outra.
A “luta” pelos clientes é o que permeia
toda esse rede de relações entre as garotas,
que pode incluir sentimentos como respeito, admiração,
paixão homossexual, inveja e muito ódio.
Sexo
sem Beijo - Parte
2