Há na obra de Jung algo que poderíamos
denominar um “dispositivo da subjetividade”,
no sentido de que se apresentam figuras ou categorias
(ego, persona, sombra, anima/ânimus, self, as quatro
funções psicológicas, introversão/extroversão)
que não constituem uma topologia, isto é,
partes ou instâncias de uma substância ou
estrutura que seria o sujeito, mas que responderiam por
um funcionalismo (“tipos psicológicos”)
e constituiriam uma energética, buscando dar conta
da singularidade no indivíduo humano.
O que é uma tipologia? Talvez fosse interessante
começarmos com um “caso clínico”,
ou melhor, com o enfoque clínico de um caso familiar.
Há um conhecido meu que tem um filho de um ano
e três meses que, como tantas outras crianças
na sua idade, tem entre outros apelidos o de “Zuzu”.
Nos momentos em que, ao ser contrariado, sai correndo
e joga-se chorando, esperneando e sacudindo os braços
sobre um “puf” de couro, seus pais, para lidar
“humorístico-pedagogicamente” com a
situação, sem deixar-se dobrar pelos caprichos
do garoto, chamam-no de “Al Zuzu, o califa”.
E neste momento, de fato, é como se ele se transformasse
num pequeno califa temperamental, na pequena comédia
instaurada pelos pais... Seus pais introduziram um traço
tipológico. E o conjunto dos apelidos de Zuzu que
remetem a uma sua “reação característica”
(quer dizer, que compõem um traço marcante
em seu caráter) constituem uma tipologia: o conjunto
dos caracteres tipológicos de Zuzu.
Um outro exemplo de tipologia é o método
de Nietzsche, segundo delineado por Deleuze, como “dramatização”:
a teatralização dos personagens ou tipos
gerais da história. Ao invés de perguntar
“o que é” um fenômeno a ser interpretado,
Nietzsche produz uma nova questão conceitual, uma
nova forma de definição com a questão
“quem é?” e a resposta é dada
a partir da avaliação do conjunto de acontecimentos
engendrados pelo tipo em foco e como ele os vive. Por
exemplo, o cristianismo é trabalhado conceitualmente
a partir do cristão como “persona”
ou tipo característico (o “caráter
típico” do cristianismo que define o “personagem
cristão”), isto é, segundo o tipo
de vida que ele inventa e põe em prática:
segundo Nietszche o cristão é o homem do
ressentimento.
Como exemplo, vejamos a análise de Deleuze acerca
da “tipologia do ressentimento”, em Nietzsche:
“... um ‘tipo’ é, na verdade,
uma realidade ao mesmo tempo biológica, psíquica,
social e política. (...) Porque o ressentimento
é um espírito de vingança? Poder-se-ia
acreditar que o homem do ressentimento se explica acidentalmente:
tendo experimentado uma excitação muito
forte (uma dor) ele teve que renunciar a reagir, não
sendo forte o bastante para replicar. Experimentaria então
um desejo de vingança e, generalizando, desejaria
exercer essa vingança contra o mundo inteiro. Tal
interpretação é errônea; ela
leva em conta apenas quantidades, quantidades de excitação
recebida, que se compara “objetivamente” à
quantidade de força de um sujeito receptivo. Ora,
o que conta para Nietzsche não é a quantidade
de força, abstratamente, mas uma relação
determinada, no próprio sujeito, entre forças
de naturezas diferentes que o compõem: o que se
chama um tipo.” (para a citação completa,
Deleuze, 1976 p. 95-97 e notas 6, p. 95 e 11, p. 97).
Temos aí a passagem de enfoque do tópico
para o típico ou como diz Deleuze: “fazer
uma psicologia que seja verdadeiramente uma tipologia,
fundar a psicologia no plano do sujeito.” Ou no
jogo das diferentes forças que o qualificam. É
o que ocorre em Jung quando ele põe em cena as
funções, os modos de funcionamento da psique,
como modos de apreensão da vida.
A
união ego/self.
O self é o sujeito, na concepção
de Jung (a rigor esse termo apresenta duas acepções,
significa ora a “totalidade da psique” ou
o sujeito em sua totalidade, ora aparece com o sentido
de “centro regulador da psique”) Enquanto
totalidade da psique, caracteriza-se por um “multifuncionalismo”,
levado a termo por um certo número de funções
com atribuições diferenciadas. A especificidade
dessas funções está ligada às
suas respectivas dinâmicas e a psique é o
resultado do intercâmbio que se verifica entre as
diferentes funções, a correlação
entre os movimentos decorrentes da realização
de suas atribuições funcionais e o grau
em que as realizam, individual e coletivamente, produzindo
um “tipo”.
O sujeito, como o próprio nome indica, está
submetido ou subjugado, é confrontado ou submisso
a dois tipos de determinações, se o considerarmos
em sua totalidade, a saber: as experiências ou processos
conscientes, e as influências inconscientes (estas
últimas passíveis de serem constatados apenas
por seus efeitos conscientes).
O segundo sentido do termo “self” apresenta-nos
um paradoxo interessante: o self é também
o centro regulador da psique ou spiritus rector inconsciente
(“orientador espiritual inconsciente”), justamente
por corresponder à totalidade da psique. Ao que
tudo indica, para Jung há uma apercepção
macrocósmica inconsciente que, em determinadas
condições, torna-se acessível ao
ego, à consciência e passa a atuar como orientadora
no processo de orientação. Tentaremos explicar
como isso se dá, recorrendo à letra de uma
canção. Para isso, faz-se necessária
uma breve digressão sobre um ponto pertinente.
O que é um caso clínico? A nosso ver (e
podemos aí recorrer à confirmação
do próprio Jung e de Freud) a clínica não
deve limitar-se aos casos de psicoterapia individual,
grupal ou institucional, mas pode também elaborar
suas análises a partir de produções
artísticas, culturais, científicas e religiosas;
de fenômenos sociais ou políticos; de figuras
históricas, ficcionais ou biográficas, entre
outros “casos”. Temos os exemplos de Freud
com Schreber, Da Vinci, Michelangelo, Shakespeare, Dostoievski
etc.; e os de Jung com Picasso, Joyce, o fascismo e seus
ditadores, Nietzsche e outros. Podemos assim, perfeitamente,
recorrer a um poema, a um romance, conto, pintura ou escultura
e falar sobre a vida de seu criador, ou pelo menos sobre
“o que ele vê na vida”, sobre “como
ele olha para a vida”. Do mesmo modo no caso de
uma manifestação coletiva (vejam-se as análises,
profundamente distintas, aliás, de Jung e Freud
acerca das religiões), como comentário clínico
acerca de grupos humanos ou da humanidade em geral. Dito
isto, voltemos ao ponto que nos interessa, qual seja,
a concepção do self como compreensão
macrocósmica.
Há uma versão musical da “Volta do
filho pródigo”. Trata-se de uma canção
de um músico irlandês, Rory Galagher, chamada
“Going to my home town” (Voltando pra minha
cidade natal”):
“Mama’s in the kitchen baking up a pie
Daddy’s in the backyard ‘Get a job, son,
You know you ought to try’
I packed down my bag, I headed down the road
I got me a job from Henry Ford
But I made a mistake, I moved much too far
And now I know what the lonesome blues are…”
(Tradução livre: Mamãe está
na cozinha fazendo uma torta/Papai está no quintal:
‘Tá na hora de você arranjar um emprego,
filho’/Peguei minhas coisas e botei o pé
na estrada/Consegui um emprego com Henry Ford/Mas cometi
um erro: fui pra muito longe/E agora eu sei o que é
a solidão...”). O que se segue, tanto na
letra como na melodia, é uma celebração
da volta ao lar, do retorno à cidade natal, através
da repetição festiva do refrão: “Yes,
I’m going to my home town”. Há outros
indícios, nas letras de Rory Galagher, nos quais
não cabe aqui nos determos, de que ele se encontrava
vivendo o que Jung denominou um “processo de individuação”.
No entanto, o que nos interessa é partirmos dessa
saga para ilustrarmos o sentido desse conceito e é
o que tentaremos, em seguida.
A tendência do ego ou sujeito consciente é
“excêntrica”, ou seja, mergulhar na
distância, buscar o horizonte, “afastar-se
da terra natal”. O ego é andarilho. Irá
necessariamente distanciar-se do Self, o centro regulador
da psique, do campo da consciência em sua totalidade.
Até que num determinado momento, devido a “experiências
muito duras, difíceis”, reinicia o caminho
de volta para a terra natal, a “Casa do Pai”.
Mas essa volta não é uma fuga, um retorno
amedrontado, uma busca de isolamento, reclusão,
proteção. É, muito mais, um movimento
de ligação, o estabelecimento de um intercâmbio,
de uma dinâmica de troca, entre os dois pólos
da psique, segundo Jung, ego e Self.
O Self, enquanto centro regulador da psique, é
um “mecanismo” ou atividade inconsciente,
isto é, à parte das faculdades racionais.
Dentre as funções psicológicas, a
responsável pelo acesso a essa atividade reguladora
inconsciente é a intuição. Jung define-a
da seguinte maneira, em “Tipos Psicológicos”:
“É a função psicológica
que transmite a percepção por via inconsciente.
Tudo pode ser objeto dessa percepção, coisas
internas ou externas e suas relações. O
específico da intuição é que
ela não é sensação dos sentidos,
nem sentimento e nem conclusão intelectual, ainda
que possa aparecer também sob essas formas. Na
intuição, qualquer conteúdo se apresenta
como um todo acabado sem que saibamos explicar ou descobrir
como este conteúdo chegou a existir. ( ... ) Como
na sensação, seus conteúdos têm
caráter de dados, em oposição ao
caráter de derivado, produzido dos conteúdos
do sentimento e do pensamento. Daí provém
seu caráter de certeza e exatidão que levou
Spinoza a considerar a scientia intuitiva como a forma
mais elevada de conhecimento”. [ Jung acrescenta
em nota de rodapé referente a essa última
afirmação: “Igualmente BErgson”]
(Jung, 1991; parágrafo (§) 865, nota 62).
Talvez possamos afirmar que o papel da intuição,
como função psicológica, seja o de,
progressivamente, explicitar os insights provenientes
do Self enquanto centro ordenador da psique. Trata-se,
portanto, de um “pensamento subterrâneo”,
mais abrangente, compreensivo, inclusivo que o pensamento
racional ou intelectual e ao qual, aliás, se acede
a duras penas (como diz Jung: “Não se chega
à consciência psicológica sem dor”).
Talvez aqui trate-se da mesma questão em Deleuze
(ainda que os pressupostos teóricos e o resultado
especulativo sejam profundamente divergentes): “a
gênese do pensamento no interior do próprio
pensamento”. Para ambos o pensamento enquanto tal
(em Jung: enquanto produto vivo da individuação),
não é uma faculdade da razão mas
precisa ser forçado e o é na “vida
que é posta à prova”.
De qualquer maneira, o que nos interessa, de início,
é colocar essa idéia do Self como uma cosmovisão
orientadora do percurso existencial. Esse percurso, que
não é pré-determinado e se desenvolve
de modo fluido, de maneira imprevisível, resulta
do grau de cooperação entre um executor
ou agente, o sujeito consciente, e um coordenador ou orientador
que seria o Self. Quer dizer, a orientação
do percurso ou processo é simultânea à
sua realização e depende de como esta se
dá.
O trabalho do analista, sua tarefa em estrita aliança
com o “paciente” tem como objetivo mais geral,
justamente, ajudá-lo a conquistar a autonomia na
condução de seu próprio processo.
Temos aqui uma interessante analogia, segundo nos parece,
na “Divina Comédia”, de Dante, onde,
no percurso através do Inferno e do Purgatório,
o peregrino é conduzido pela figura de um “mestre”,
personificado pelo poeta Virgílio, uma espécie
de guia, instrutor e protetor, que no entanto é
dispensado quando do encontro com a Amada, Beatriz, personagem
de cunho nitidamente espiritual e que doravante conduzirá
o peregrino pelas camadas do Céu, cada vez mais
próximo da Luz.
Ora, o inconsciente, para Jung, atua através do
que ele define como arquétipos, isto é,
focalizando imagens coletivas que estão na base
da formação de todo e qualquer indivíduo
e que se desenvolvem, se modificam e se transformam ao
longo da vida. Tais como o Masculino, o Feminino, a Velhice
e a Infância, como experiência pessoal e através
dos indivíduos (homens, mulheres, crianças
e idosos) contatados no decorrer da existência.
Assim, essas imagens arquetípicas (fundamentais,
coletivas, universais) atuam no elemento da singularidade
pessoal, desenvolvendo-se em tons únicos, para
cada existência. Por isso, o inconsciente é
dito por Jung simultaneamente “pessoal’ e
“coletivo”.
Mas, ao que parece, segundo ressaltou Jung, notadamente
pelo que se depreende de seu estudo dos sonhos, a liberação
dos conteúdos inconscientes depende de sua compreensão
e elaboração por parte da consciência.
Digamos que a primeira meta do Self é que a consciência
compreenda as suas “comunicações”.
Em seguida, faz-se necessário que a pessoa as utilize
em termos pragmáticos, ou seja, numa ação
correspondente, redimensionando-se existencialmente conforme
sua compreensão do que foi apreendido. É
óbvio que nos esforçamos em exprimir o inexprimível,
uma vez que o inconsciente não é apenas
uma atividade semiótica ou expressiva, mas também
energia e criatividade. E nesse sentido, será capaz
de prover a energia necessária ao desencadeamento
das mudanças.
Em contrapartida, a função reguladora do
inconsciente, o Self, parece responder às demandas
da vida objetiva, aos problemas que se colocam no decurso
do processo de individuação e que se exprimem
também, é claro, através de dados
da existência concreta relativos à compreensão
consciente, aos objetivos pessoais e aos desejos de mudança.
O que, remetendo ao plano da clínica, significa
que a interpretação, no caso a mediação
entre os conteúdos ou imagens simbólicas
provenientes da psique inconsciente e os dados ou expressões
da vida “objetiva”, condiciona a produção
inconsciente.
Clínica
e Individuação.
Há, se considerarmos uma certa perspectiva, uma
semelhança entre a função do analista
e a do pajé ou xamã das sociedades “primitivas”:
“expulsar os maus espíritos”. Ocorre
que, no caso do analista, os maus espíritos mudaram
de nome, passaram a chamar-se neurose, histeria, depressão,
mania, paranóia, esquizofrenia... E o espaço
de tratamento passou a ser fechado (consultório
ou “setting analítico”), ao passo que,
para o feiticeiro, o tratamento, em geral, constitui-se
de uma série de procedimentos de verificação
e busca por todo o campo social. O xamã, pajé
ou feiticeiro deve percorrer todo o campo social para
curar uma simples dor de dente que seja. Não há
esferas independentes no espaço social, tudo se
acha co-implicado (há um exemplo n’ ”O
Anti-Édipo”, p. 212 / 213).
As lições do índio D. Juan, na obra
de Castaneda, geralmente se iniciam com um convite para
uma caminhada, durante a qual o jovem aprendiz deverá
ser testado ao ser posto à mercê dos “poderes
que regem o mundo e nossas vidas”. Trata-se de uma
espécie de análise pragmática ou
peripatética.
Jung comenta que o chamado processo de individuação
leva potencialmente o indivíduo a distanciar-se,
progressivamente, do homem médio (de sua visão
do mundo, posições, opiniões). Trata-se,
por conseguinte, de um “movimento de singularização”
em que o indivíduo vai rompendo com as fronteiras
restritivas da persona (quer dizer, com os elementos da
personalidade retirados do senso comum e atuando semi-conscientemente
ou inconscientemente). Conseqüentemente o inconsciente
deixa de determinar exclusivamente o âmbito pessoal
e passa a abrir-se para o social, para a coletividade,
deslocando, com isso, o eixo de interesses do indivíduo
e gerando uma preocupação e uma ação
correspondentes. Algum tipo de envolvimento em questões
coletivas começa a despontar (é interessante,
por exemplo, acompanhar o devir revolucionário
do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, como
líder do “Movimento contra a fome e pela
cidadania” e no desfecho de sua vida, sua confrontação
com a morte, desencadeando um desassombro absoluto e um
júbilo vital, direcionado para um problema eminentemente
social). É que o desenrolar do processo de individuação,
a partir de um certo limiar ou numa certa etapa, gera
uma certa sensibilidade às transformações
coletivas em curso (políticas, sociais, espirituais
etc.). Como diz Nise da Silveira, em seu livro sobre Jung,
acerca do processo de individuação: “Vindo
a ser o indivíduo que é de fato, o homem
não se torna egoísta”, no sentido
ordinário da palavra, mas está meramente
realizando as particularidades de sua natureza e isso
é enormemente diferente de egoísmo ou individualismo”.
(Silveira, 1994, p. 92 / 93).
Portanto, é nesse sentido que podemos dizer que
a individuação leva a um estreitamento da
relação com os conteúdos coletivos
do inconsciente e concomitantemente, a um progressivo
apagamento dos interesses e apegos pessoais (de modo algum
neurótica ou patologicamente, mas segundo um desdobramento
natural e irreversível). Segundo essa perspectiva,
a realização do inconsciente de modo total,
revelando o próprio arquétipo humano em
sua consecução, afirma Jung, teria sido
realizada por Cristo (Ver “Cristo como arquétipo”
em “Aion – Estudos sobre o simbolismo do Si-Mesmo”).
Mas o que seria, inicialmente, a personalidade comum
ou homem médio? Para elucidar este ponto, vamos
comparar a categoria de persona, em Jung, à noção
de tonal, que aparece na obra de Castaneda. O índio
D. Juan define esse termo, literalmente, como “a
pessoa social”. Vejamos, na íntegra:
“Agora estou usando as suas palavras, o tonal é
a pessoa social. (...) – O tonal é, de direito,
um protetor, um guardião; um guardião que
geralmente se transforma num guarda. (...) – O tonal
é o organizador do mundo. Talvez o melhor meio
de descrever seu trabalho monumental seja dizer que sobre
seus ombros repousa o trabalho de dar ordem ao caos do
mundo. Não é exagero afirmar, como fazem
os feiticeiros, que tudo quanto sabemos e fazemos como
homens é obra do tonal. Neste momento, por exemplo,
aquilo que está empenhado em fazer sentido desta
conversa é o seu tonal; sem ele só haveria
sons estranhos e caretas e você nada compreenderia
do que estou falando. Eu diria então que o tonal
é um guardião que protege algo de precioso,
o nosso próprio ser. Portanto, uma qualidade inerente
ao tonal é ser astucioso e zeloso do que faz. E
como seus atos são, de longe, a parte mais importante
de nossas vidas, não admira que, no fim, ele se
transforme, em todos nós, de guardião em
guarda. (...) Um guardião tem vistas largas e é
compreensivo. Um guarda, ao contrário, é
vigilante, intolerante e a maior parte do tempo, despótico.
Digo, pois, que o tonal em todos nós foi transformado
num guarda mesquinho e despótico, quando deveria
ser um guardião de larga visão.”
D. Juan nomeia esses dois tipos de tonal: o “tonal
rígido”, do homem comum e o “tonal
fluido”, do “homem de conhecimento”.
Esse duplo aspecto é levado em conta por Jung ao
trabalhar, no plano analítico, o conceito de persona.
O tonal rígido é o homem que confunde a
persona com sua própria essência, ou seja,
que “acredita no seu personagem”, que confunde
a identidade pessoal com uma certa imagem ideal (social
ou mítica). Por exemplo, aquele que é médico
ou militar, que age como tal em todos os momentos da vida.
Ou (tolice suprema nas hostes junguianas) acreditar que
encarar a “essência do masculino” ou
pior, o “arquétipo do homem” é
“agir como herói”; ou, por outro lado,
que o suposto “arquétipo feminino”
ou “essência da mulher” seja agir como
a “donzela presa na masmorra do castelo”;
ou ainda “incorporar” o deus ou a deusa tal
ou qual. Isto significa avaliar de modo superficial o
valor clínico da noção de arquétipo,
negligenciando seu pólo singular, isto é,
a maneira peculiar como se atualiza em cada processo de
individuação. Em suma: confundir arquétipo
com estereótipo, “modelo de comportamento”.
É o que o próprio Jung denomina “identificação
com a persona” (popularmente chamado: “fazer
um tipo” ou “ser possuído pelo personagem”),
como situação limitadora, contrária
à “individuação”. Quando
Jung escreve, no início de “Símbolos
de transformação”, em se “viver
o mito pessoal”, não está falando
que se deva representar um personagem mitológico,
reproduzir um certo padrão de comportamento heróico.
Muito ao contrário, trata-se de dar vazão
à singularidade latente que corresponde ao que
é denominado “individuação”.
Os mitos heróicos, aliás, são relatos
simbólicos (literários, religiosos, mitológicos,
folclóricos), poderíamos dizer, “protocolos
de experiências” alusivos, deixados em todas
as épocas e por toda parte, referentes a transformações
espirituais individuais e coletivas. Nos quais pessoas
ou grupos (coletividades) passam por situações
em que tudo o que tinham como mais certo e seguro se desfaz
completamente (é nesse sentido que o espiritual
se confunde com o psicológico, através da
experiência numinosa). Convicções,
sentimentos, maneiras de ver e avaliar, agir e reagir,
tudo se modifica e se depura, às custas de muito
sacrifício. E o que daí advém é
algo de inteiramente novo.
Quanto ao “tonal fluido”, corresponde, por
sua vez, ao apagamento progressivo das fronteiras restritivas
do ego pessoal, a partir da trajetória processual
sugerida pelo Self como função reguladora
da psique, o que leva a pessoa a alargar seus limites
e, num certo sentido, realizar um movimento existencial
de extroversão, quer dizer, desprender-se de si
mesmo, desapegar-se das coisas queridas, despreocupar-se
consigo mesmo e de uma maneira especial, “voltar-se
para fora”. (O que não deve ser confundido
com uma “auto-renúncia”, presente,
aliás, na posição anterior, de identificação
com a persona). A persona deixa de ser um “fim”
(identidade pessoal) e passa a ser um “meio”
(modus operandi ou meio de relação).
O
papel da intuição
Voltemos ao problema das funções psicológicas,
na obra de Jung, cujo objetivo prático, clínico,
é o delineamento de um tipo mais geral. Tiramos
daí duas conclusões: em primeiro lugar a
tipologia, em Jung, é a expressão de um
funcionalismo, ou seja, são as quatro funções
psicológicas (pensamento, sentimento, sensação
e intuição) que respondem, ao problema dos
tipos. Ao passo que, num segundo momento, entra em cena
um segundo tipo de funções relativas à
existência singular: a persona ou função
social; a sombra (o “inconsciente pessoal”)
ou função compensadora; anima/animus ou
função complementar; e o self ou função
reguladora. Em segundo lugar, damo-nos conta do quanto
é estéril cair-se numa “tipomania”,
utilizando exclusivamente as quatro funções
psicológicas, na medida em que se trata apenas
da metade do caminho quanto ao problema da subjetividade,
no pensamento de Jung.
Nossa hipótese é a de que as funções
dão-se concomitantemente como componentes da experiência;
mais precisamente, três delas: o pensamento como
função intelectual ou analítica,
o sentimento como atividade emocional e valorativa e a
sensação correspondendo ao esquema sensório-motor
que visaria a ação prática. Estas
funções não se sucederiam atuando
uma de cada vez mas atuariam concomitantemente, constituindo
o comportamento ou atividade psicológica consciente.
Haveria uma “hierarquia de expressão”
que se traduziria naquilo que Jung formulou como grau
de desempenho de cada uma das funções: “função
superior ou dominante” (aquela que caracteriza o
principal meio de relação com a vida, para
cada indivíduo); “função auxiliar
ou secundária” (de eficácia intermediária);
e “função inferior ou primitiva”
(aquela pouco desenvolvida e cujo desempenho se daria
sempre de modo impulsivo ou pouco elaborado). A eficácia
de cada função varia de indivíduo
para indivíduo. Ou de um grupo para outro, se quisermos
estabelecer a tipologia de uma coletividade. Jung coloca,
por exemplo, para a civilização ocidental,
o “pensamento” como função superior,
sendo o “sentimento” a função
inferior a ser elaborada.
Pensamos ser a quarta função, a intuição,
que apresenta um estatuto especial. Ela é a função
sintética por excelência, em primeiro lugar
porque, para que se torne efetiva, para que atue, depende
de um certo alinhamento ou coordenação das
outras três, e principalmente pois é a função
responsável pela ligação do ego ou
sujeito consciente ao Self, como centro regulador. Diríamos
mesmo que a função da intuição
seria a de comunicar a cosmovisão do Self à
personalidade consciente, estabelecendo com isso a “coniunctio”
(conjugação dos opostos, operação
alquímica traduzida em termos psicológicos
por Jung como a possibilidade latente de união
entre os dois centros da psique: o ego, agente consciente
e o Self, orientador inconsciente).
Já vimos que as funções psicológicas
são formas de relação com a realidade
ou como disse a doutora Nise da Silveira, “de adaptação”.
Vimos também o quanto isso se torna problemático
em relação a pelo menos uma função,
a intuição, que supomos ter um papel especial
de ligação do eu à função
reguladora, a macrovisão latente à consciência,
o self. Coloca-se portanto, aqui, a hipótese de
uma forma de apreensão cognitiva inconsciente.
Integração
de opostos
As funções psicológicas não
são faculdades, uma vez que, em seu desempenho,
dependem de fatores que extrapolam o chamado “livre
arbítrio”, a direção autônoma
da consciência. São, no entanto, relacionais,
mecanismos de interação, que ligam a subjetividade
ao mundo. São também modos de atuar da consciência.
Por exemplo, a “função do real”,
a sensação, pode ser colocada como modo
de funcionamento da consciência como “esquema
sensório-motor”.
Com o intuito de ilustrar as funções, Jung
as coloca como as extremidades de dois eixos cruzados,
marcando assim as oposições funcionais entre
pensamento e sentimento e entre sensação
e intuição. Veremos que a tendência
natural da psique é a “integração
dos opostos”, através do processo de individuação.
Essa integração não é uma
resolução da oposição através
do surgimento de uma unidade que faz desaparecer a dualidade
mas dá-se sob a forma de uma atuação
em cooperação. É a coniunctio (conjunção),
cujo paradoxo se enuncia como: “unidade preservando-se
a dualidade”. No caso da oposição
entre pensamento e sentimento, sua coniunctio pode ser
formulada através do seguinte axioma alquímico:
“É preciso unir o coração à
mente, para que a mente pense com amor e o coração
ame com sabedoria”.
A compreensão do conceito de “enantiodromia”,
harmonia entre opostos ou simplesmente a “oposição’,
como mecanismo essencial da vida, é fundamental
em Jung e provém do pensamento oriental, notadamente
o chinês, com as idéias do “Tao Te
King” (“O livro do Caminho Perfeito”,
numa tradução aproximada) e do “I
Ching” (“O Livro das Mutações”),
amplamente estudados por Jung, com sua dualidade ontológica:
Yin & Yang (o “Receptivo” e o “Criativo”).
O pensamento de Jung é repleto de oposições
com esse sentido de integração latente ou
possível ou melhor, de ligação, intercâmbio,
circulação, todos processos-chave para a
dinâmica de compensação, essencial
na psicologia de Jung. Simbolicamente falando, Mercúrio
é o símbolo da mente, do intelecto, da razão,
da psique. A “função mercurial”
aparece como tendência, realizada ou não,
a integração de opostos na psique, “promover
o comércio” entre consciência e inconsciente.
Usando o modelo chinês podemos dizer de forma enigmática,
como num oráculo acerca da Vida: O ”caminho”
(“Tao”) são “mutações”
(“I”) que ocorrem devido às circunvoluções
dos dois princípios: o “receptivo”
e o “criativo” (“yin” & “yang”).
Ou mais simplesmente: “A interação
entre o receptivo e o criativo é o caminho das
mutações”. Podemos dizer que este
é o princípio geral da ontologia milenar
taoista. E o pensamento de Jung constitui-se numa aplicação
desse princípio. Citemo-lo:
“O segredo da atitude oriental é o seguinte:
a consideração dos opostos ensina ao homem
oriental a natureza do ‘maya’ {ilusão].
É ela que confere o caráter de ilusão
à realidade. Por trás dos contrários
e nos contrários é que está o verdadeiramente
real que vê e abrange o ‘todo’. O hindu
chama-o de ‘atman’. A auto-reflexão
nos permite dizer: ‘Sou eu quem diz o que é
o bom e o que é o mau’. Ou melhor: “Eu
sou aquele pelo qual foi dito que isto é bom ou
mau. Aquele que está em mim e pronuncia os principia
[princípios], serve-se de mim como expressão.
Fala por meuj intermédio’. Isto corresponde
ao que o homem oriental denomina ‘atman’,
isto é, aquilo lque, para falarmos em linguagem
figurada, ‘me atravessa como um sopro’. Mas
não somente a mim, como a todas as coisas. Não
é apenas o atman individual que me atravessa e
me penetra como um sopro, mas também o ‘atman-purusha’,
o atman universal, o ‘pneuma’. (...) Do que
acabamos de expor resulta que esse ‘si-mesmo’não
é apenas um ‘eu’ (ego) um pouco mais
consciente ou ampliado, o que se poderia entender pelas
expressões ‘consciente de si-mesmo’
ou contente consigo mesmo’. O que chamamos de ‘si-mesmo’
(self) não se encontra somente dentro de mim mas
em todas as coisas, como o atman, como o tão. É
a ‘totalidade psíquica’. Cometem um
equívoco aqueles que me acusam de ter criado, com
tal conceito, um ‘deus imanente’e conseqüentemente
um ‘sucedâneo de Deus’. Sou um empírico
e é empiricamente que posso demonstrar a existência
de uma ‘totalidade’ superior à consciência.
Esta totalidade superior é sentida numinosamente
pela consciência, isto é, como um ‘tremendum’
e ‘fascinosum’ [como algo terrível
e fascinante]”. (Jung, 1980, p. 631/632).
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