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- Religião
e Psicologia
- Sob
Uma Visão Junguiana
- Emanuel Tadeu Borges - fale
com o autor
O objetivo desta matéria é
enfocar o problema da religião, no intuito de estabelecer
seu significado em termos de individuação.
A religião, como fenômeno espiritual, está
relacionada com a questão moral da existência
humana e coloca-a de diversas maneiras ao longo da história
do homem, através de vários sistemas e grupos
religiosos. Trata-se do problema do “bem”
e do “mal”.
Não cabe aqui abordar a discussão propriamente
política ou sociológica, que se refere ao
uso da religião como poder de manipulação
e nem a questão das possíveis alianças
entre as lideranças religiosas e o poder político,
com objetivos de dominação. Também
não pretendemos focalizar as lutas sangrentas e
insanas entre as diferentes “profissões de
fé”, em busca de uma suposta hegemonia espiritual,
afirmação de superioridade ou pior ainda,
visando o extermínio de adversários tidos
como infiéis, hereges ou profanos, que se oporiam
aos desígnios e à obra de um suposto “deus
verdadeiro”.
Todos esses graves problemas decorrem, segundo pensamos,
de uma concepção e prática totalmente
distorcidas da religião, que é um fenômeno
psicológico e não ideológico, de
cunho eminentemente individual e não massivo, como
mostrou Jung. Mais precisamente, para Jung, a religião
é a expressão simbólica arquetípica
do processo de individuação e portanto
algo passível de ser vivenciado por todo e qualquer
indivíduo, de maneira particular e singular, podendo
levá-lo, progressivamente, a uma perfeita integração
com o todo de que faz parte, a sua coletividade e mais
profundamente com o todo maior, no sentido cosmológico
da experiência.
A questão moral, do ponto de vista da psicologia
analítica, tem como ponto de partida a “confrontação
com a sombra”, por parte do indivíduo (JUNG,
1982, p. 14). A sombra, o nome dado por Jung ao inconsciente,
é constituída de conteúdos incompatíveis
com a consciência, tudo o que se nos afigura como
desagradável, perturbador e de que, por esse motivo,
a consciência se afastou ou dito de outro modo,
renunciou (“censurou”, nos termos de Freud).
Numa segunda etapa, dá-se o confronto com os conteúdos
do inconsciente coletivo, os arquétipos. São
elementos que se encontram nas camadas mais profundas
da psique inconsciente e que representam a experiência
genérica da humanidade, funcionando como eixos
ou núcleos em torno dos quais se “constelam”
ou se agregam as experiências individuais, com sua
respectiva carga de afetividade ou investimento emocional
armazenado, formando os complexos pessoais. Os arquétipos
constituem-se pois como núcleos dos complexos,
que “giram” em torno deles, por assim dizer,
retendo a libido que concentram. Faz-se portanto necessária
uma dupla operação, analítica: (1)
a dissolução ou resolução
dos elementos problemáticos pessoais, os complexos;
e concomitantemente, (2) a progressiva conscientização
ou assimilação, isto é, integração
à consciência, dos conteúdos coletivos
representados pelos arquétipos. Este duplo movimento
que caracteriza a individuação, leva a uma
cosmovisão de amplitude crescente, resultante da
transformação da personalidade, que possibilita
um crescente poder de intervenção criativa
no mundo. A transformação da personalidade
ocorre como consequência da resolução
dos complexos pessoais e a ampliação da
perspectiva existencial e criativa decorre da conscientização
dos arquétipos, enquanto símbolos da experiência
humana genérica. Ou dito de outro modo, a integração
progressiva no coletivo gera a transformação
da personalidade através da dissolução
dos complexos e esta mesma dissolução aumenta
a aptidão do indivíduo a atuar criativamente
e de forma integrada na coletividade. A individuação
é portanto uma espécie de feedback entre
a função pessoal e a função
coletiva na psique humana.
Essa cosmovisão ou macropercepção,
a partir da assimilação consciente dos conteúdos
arquetípicos, é uma imagem da totalidade,
a partir da qual dá-se uma progressiva integração
da experiência do eu pessoal à experiência
coletiva. Os conteúdos arquetípicos aparecem
nas manifestações simbólicas produzidas
pelo inconsciente. Essa produção simbólica
é proporcionada pelo self, a função
ordenadora inconsciente. A função do self
é, pois, a de proporcinar a “auto-regulação
psíquica” ou na terminologia adotada por
Jung, a compensação inconsciente
à atividade do eu consciente, buscando complementá-la.
Ou seja, o self ou a atividade que ele representa, visa
complementar, através da revelação
do processo inconsciente, o que a consciência realiza
em sua própria esfera de atividade. A imagem da
totalidade é portanto a expressão dessa
compensação ou complementaridade, que se
processa na psique, na medida em que acrescenta ao conteúdo
cognitivo que corresponde a atividade do eu consciente,
a “outra metade” até então desconhecida,
os conteúdos inconscientes, que são revelados
nos sonhos, nas intuições, na imaginação,
nas projeções e nas transferências.
Ou seja, a totalidade da psique inclui aquilo que está
em desarmonia com o processo consciente ou ausente dele.
E o equilíbrio psíquico implica a confrontação
e posterior integração desses dois regimes,
a saber: consciente e inconsciente.
A imagem de totalidade é constantemente renovada,
atualizada, ampliada, no processo de individuação.
Quer dizer, isso só irá ocorrer quando se
estabelecer uma dialética funcional entre os representantes
ou operadores das duas instâncias psíquicas:
o eu, para a consciência e o self, atuando
no inconsciente. O primeiro funciona como agente do
processo e o segundo como seu guia ou orientador
“spiritus rector” (o verdadeiro guru é
o self). A cada símbolo ou manifestação
orientadora inconsciente, decorrente da atividade compensadora
do self, deve corresponder um ajuste real, uma ação
ou atitude compensadora, da parte do eu consciente. Caso
isso ocorra, há, como consequência prática,
uma gradual integração do indivíduo,
enquanto agente de transformação da realidade
objetiva.
De fato, à medida em que se aprofunda o confronto
subjetivo com a sombra pessoal, com os conteúdos
pessoais do inconsciente (os assim chamados problemas
pessoais), o indivíduo toma uma consciência
cada vez mais clara de algo até então inacessível
ou apenas parcialmente acessível a ele, a sombra
coletiva, isto é, os elementos perturbadores
inconscientes que atuam na coletividade produzindo as
problemáticas e distorções sociais.
Ao confrontar-se, progressivamente, com a totalidade de
sua psique, dá-se conta, o indivíduo, de
que ela comporta dois tipos de experiência ou dois
níveis de existência, o pessoal
e o coletivo ou arquetípico. Pois o confronto
com os conteúdos pessoais da sombra é, na
verdade, um confronto com a persona, a “máscara
social” do eu pessoal. Todo um conjunto de valores
impostos, por forças sociais, ao indivíduo,
tendo sua contraparte nos costumes, idéias, comportamentos
e tantos outros traços comuns que constituem a
representação coletiva e que o eu vai desinvestindo
no decorrer do percurso da individuação.
Por outro lado, toda essa parafernália social,
que constitui a complexidade relativa das diferentes culturas,
tem como base experiências humanas universais, isto
é, presentes em toda parte e em todas as épocas.
Ora, os arquétipos são justamente as imagens
simbólicas dessas experiências universais
que se manifestam através da psique..
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Individuação
e Roupagens Sociais
Na medida em que o eu se despe das roupagens da persona,
dos conteúdos morais que assumiu inconscientemente,
duas coisas acontecem:
Em primeiro lugar, o eu se diferencia, no sentido mais
preciso da expressão, torna-se diferente dos outros
indivíduos em sua homogeneidade moral, característica
do desempenho de valores coletivamente assumidos. Isto
é, a personalidade se transforma e inicia um movimento
na direção da genuína individualidade
(etimologicamente: “aquele que não está
dividido em dois”: “in-divi-dual”).
O indivíduo, como resultado do processo de
individuação, é aquele que curou
a sua cisão psíquica ou psicológica
ao religar os dois processos constituintes da psique,
consciência e inconsciente, integrando-os
funcionalmente. Este é o verdadeiro
sentido da religião, como função
psicológica. Tornar-se aquilo que
se é verdadeiramente. Daí o termo escolhido
por Jung, individuação:
o indivíduo é a singularidade, a diferença
em relação a todos os outros, que ao retirar
o eu da homogeneidade social faz dele um ser conscientemente
integrado no todo.
Ë este, precisamente, o segundo sentido da individuação.
Ao desinvestir-se das “roupagens sociais”
o indivíduo as vê claramente, no que apresentam
de bom e ruim, funcionando na coletividade, pois já
não atuam mais “às suas costas”,
isto é, como projeção inconsciente.
Ele já não mais se encontra “possuído”
pela persona, segundo a expressão de Jung, pois
desembaraçou-se da identificação
com o “senso comum”. O indivíduo é
então determinado a realizar aquilo que impõe
a sua nova condição, a sua personalidade
transformada: iniciar um serviço à coletividade,
uma ação criativa e integrada no coletivo
ao qual pertence, de amplitude e alcance variáveis,
em função do grau de individuação
em que se encontra num dado momento (levando-se em conta
de que se trata de uma dinâmica de alcance imprevisível).
É preciso que se faça referência
também aos casos em que a individuação
fracassa. Isto pode ocorrer em uma das duas etapas principais
do confronto com o inconsciente: ou como “possessão
pela sombra”, caso em que a ego se identifica com
seu lado obscuro, deixando-se substituir por um ou mais
complexos. Ou ainda, no caso em que o eu se identifica
com o self e é tomado por um arquétipo.
Vejamos a fenomenologia desses dois casos.
No primeiro caso, a pessoa deixa-se enredar por um conteúdo
da sombra e um complexo assume o comando da vontade consciente.
Isso pode ocorrer quando a carga de energia de um complexo
(libido inconsciente) torna-se superior à energia
voluntária do eu (libido consciente).
No segundo caso, ocorre algo de similar, com a diferença
de que o que assume o comando no campo da consciência
é um representante arquetípico. Em outras
palavras, o eu identifica-se com o self, personifica em
si a função psíquica ordenadora e
é então tomado por uma ambição
de tipo messiânica, que reflete o fato de que o
indivíduo entrou em sintonia com o inconsciente
coletivo e é levado a atuar como o seu intérprete,
ante os demais indivíduos de uma dada coletividade
(Hitler, na Alemanha nazista, por exemplo). Ao identificar-se
à instância ordenadora da psique (o self),
o sujeito passa a projetar sua necessidade de ordenação
na coletividade. Aquilo que seria o seu modo singular
de integrar-se ao coletivo, passa a ser visto como valendo
para todos.
Este tipo de manipulação só se torna
possível devido ao fato de que os seguidores desse
gênero de liderança não realizaram,
por sua vez, o seu confronto com a sombra, o que os leva
a uma unilateralidade psíquica, quer dizer, a uma
incapacidade de discriminação objetiva entre
o bem e o mal, entre o que é verdadeiramente favorável
e desfavorável a eles (uma vez que não desembaraçaram,
em si mesmos, o individual do coletivo ou o indivíduo
da persona). Ou seja a vítima do paranóico
é a massa composta de neuróticos
Unilateralidade psíquica é a causa da neurose,
ou melhor, sua descrição funcional. É
a consequencia da cisão entre consciência
e inconsciente. O indivíduo neurótico é
o que considera, exclusivamente, a parte consciente da
atividade psíquica, despreza e muitas vezes nem
mesmo admite a existência da psique inconsciente.
Ao agir assim, ele favorece a associação
de elementos afetivamente carregados aos complexos inconscientes
já existentes, aumentando sua carga libidinal e
com isso, favorecendo o caráter autônomo
de sua manifestação. Isto significa que
os conteúdos problemáticos inconscientes
continuarão atuando compulsivamente, através
do mecanismo de projeção, rompendo o controle
do eu, aumentando seu poder de autonomia e gerando conflitos
em relação à vontade consciente.
A tendência à repetição projetiva
dos comportamentos neuróticos, tem duas consequências
possíveis: uma favorável à individuação,
a saber, a conscientização dos conteúdos
problemáticos, graças à repetição;
a outra, patológica, qual seja, a irrupção
do complexo na consciência, destronando o controle
e a direção do eu (dissociação
psicótica).
A invasão de conteúdos inconscientes turva
o discernimento e abala o equilíbrio emocional
tornando a personalidade vulnerável e portanto
sujeita a se deixar levar pela primeira “tábua
de mandamentos” que for apresentada, na qual possa
projetar seus sentimentos, sensações e idéias
confusos. Deve-se, portanto, reafirmar a importância
do confronto com a sombra, a aceitação e
o enfrentamento em relação ao que é
desagradável e perturbador em nós: aquele
que não se defronta com o que o perturba em si
mesmo, dá vazão a que esses impulsos se
manifestem livre e cada vez mais descontroladamente através
de projeções e está sujeito, em maior
ou menor grau, a identificar-se com manifestações
de impulsos similares no plano coletivo. Pois o que é
desconhecido ou inconsciente, no plano pessoal, é
“reconhecido” inconscientemente, por empatia,
no plano objetivo, isto é, no outro e ainda mais
imediatamente numa massa. A personalidade, nessas condições,
dadas as circunstâncias de pressão social,
está sujeita a acolher uma “solução
final”, isto é, “um projeto para resolver
os problemas de uma vez por todas” e a ele dedicar
todos os seus esforços num “movimento de
massa”.
Temos aqui a oportunidade de aplicar no plano dos fenômenos
psicológicos, por analogia, o conhecido princípio
da física formulado por Arquimedes: “todo
corpo mergulhado num fluido recebe um empuxo, de baixo
para cima, igual ao peso do fluido deslocado”. Esta
lei da dinâmica dos fluidos, vale para o inconsciente
e seus conteúdos afetivamente carregados, que na
analogia corresponderiam, respectivamente, ao fluido e
aos corpos nele mergulhados. Poderia pensar-se, perfeitamente,
tendo por base o pensamento de Jung, o inconsciente como
um “fluido” ou “meio de imersão
psíquico” ou a própria psique como
um “fluido”. E os complexos e os conteúdos
psíquicos, em geral, como “corpos”,
sua carga afetiva correspondendo a seus “pesos”
respectivos. Quanto mais tempo e mais intensamente renuncia-se
ao confronto com os complexos, mais pronta e violentamente
expõe-se a uma irrupção de conteúdos
inconscientes na consciência. No caso das comoções
de massa, o sujeito pode ser “arrastado” por
uma onda coletiva de afetos indiferenciados. O neurótico,
como já demonstraram pensadores como Freud, Reich
e Canetti, tende a agir de acordo com a massa. Em situações
críticas de caráter pessoal reage de forma
estereotipada e durante as crises sociais, é levado
a se comportar de modo irracional e em bando. Nesses casos,
o eu é dominado por um complexo que o submete e
pode até mesmo destruí-lo. Nas crises sociais,
o indivíduo tende a indiferenciar-se numa massa
juntando-se a outros, também indistinguíveis.
Todos se nivelam como partículas indiferenciadas
formando uma onda irresistível, uma força
descontrolada e irracional, constituindo um complexo de
massa que irrompe na vida social.
Quanto aos “guias” ou líderes desse
gênero de empreitada, são, por sua vez, tomados
por um complexo de poder. Creem-se inspirados por um deus,
por Deus, pela “alma nacional” ou pela “vontade
e anseios coletivos”, etc. Sua consciência
é progressivamente subjugada por uma “convicção”,
que ele assume como a quintessência da verdade.
Pressente então a “iminência de um
destino glorioso” ou a “urgência de
uma missão sagrada” e a necessidade de assumir
um compromisso do qual não pode se furtar.
Em função do que acabamos de mostrar, é
possível apontar duas possibilidades de expressão
do self. A primeira em que ele atua como centro ordenador
inconsciente, como função orientadora do
processo de individuação. Mas há
ainda a sua faceta, digamos, sombria. A religião
cristã expressa claramente essas duas possibilidades
nas figuras do Cristo e do AntiCristo. O Cristo como símbolo
do self, do Homem Realizado e o AntiCristo como expressão
simbólica da sombra e das forças perturbadoras
do inconsciente (ver JUNG, 1982, cap.5). Porque essa duplicidade
de manifestação do inconsciente coletivo?
Porque ambas as facetas do self estão ligadas a
destinos coletivos, referem-se às possibilidade
de realização de duas imagens de totalidade
incompatíveis entre si e que poderíamos
denominar, alusivamente, “Bem” e “Mal”
ou psicologicamente, “união” e “dissociação”,
no plano coletivo.
Os símbolos arquetípicos, que representam
os conteúdos mais profundos da psique inconsciente,
possuem um caráter arcaico (JUNG, 1991, p.764)
e por isso exigem um trabalho de elaboração,
desvelamento, decifração, da parte da consciência,
uma vez que se referem a realidades “impessoais”,
desconhecidas e inicialmente incompreensíveis ao
eu. São porém “realidades de fato”,
ainda que relativas a fatos psíquicos, visíveis,
por exemplo, na linguagem e símbolos característicos
das profecias, da experiência numinosa, dos êxtases
religiosos, dos delírios, visões, sonhos,
de certas expressões artísticas, etc. O
caráter arcaico, enigmático, hermético,
oracular, dos símbolos arquetípicos, é
representado mitologicamente pela figura da Sibila, definida
muito propriamente por Heráclito, no estilo que
lhe é peculiar: “...com delirante boca, sem
risos, sem belezas, sem perfumes, ressoando mil anos,
ultrapassa com a voz, pelo deus nela.” ( HERÁCLITO,
1985, p.88). De fato, o riso, as belezas e os perfumes,
são experiências fornecidas pelos sentidos
objetivos, portanto exclusivas da vida consciente. Ao
passo que só o inconsciente, delirando, pode fazer
falar um deus que, através de sua voz, faça
ressoar a sabedoria dos séculos. É a linguagem
sibilina dos símbolos arquetípicos que,
por não se referirem ao que é conhecido,
não podem usar a linguagem racional.
O símbolo refere-se ao que se conhece pouco: os
complexos pessoais; ou se desconhece por completo: os
arquétipos. Assim, os sonhos, por exemplo, não
escondem um “conteúdo latente” que
estaria sob um “conteúdo manifesto”.
O que está oculto, parcial ou completamente, não
é um suposto conteúdo integral do sonho,
é ao contrário, justamente aquilo a que
o sonho se refere. O sonho e os demais meios de compensação
inconsciente, “esforçam-se” por revelar
o inconsciente no sentido de fornecer uma complementaridade
à consciência, um complemento ao material
consciente Caso contrário, atuariam em prol da
dissociação psíquica, favorecendo
a cisão entre os processos consciente e inconsciente.
No entanto, isso não ocorre, a função
auto-reguladora da psique possibilita o acesso da consciência
ao material inconsciente e ao fazê-lo estabelece
uma ligação e uma possibilidade de integração
entre os dois processos.
Contudo, é necessário um cuidado extremo
ao se lidar com os conteúdos arquetipicos, pois
o inconsciente tem, junto ao temor que exerce, um forte
poder de sedução. Aparece ora como assustador,
ora como fascinante. E o arquétipo, por ser oriundo
das camadas mais profundas da psique, possui uma poderosa
carga libidinal. Corresponde ao extra-pessoal no indivíduo,
portanto ao que há de mais estranho à ação
da vontade. Por isso, a arte suprema do eu é equilibrar
o terrível e o maravilhoso do espírito,
não se deixando levar pelo fascínio do numinoso,
o caráter impressionante do material inconsciente,
mas não cedendo também ante o medo que ele
inspira. Cabe aqui o conhecido preceito de Buda, também
para o processo de individuação: “buscar
sempre o difícil caminho do meio”. Isto é
exato até mesmo do ponto de vista das funções:
deve-se centrar a ação no ego como “fiel
da balança”, pois ele encontra-se “no
meio”, flutuando precariamente entre os mundos objetivo
e subjetivo, entre as experiências consciente e
inconsciente, como agente do processo. Jung define assim
a situação dos dois principais operadores
da psique: o eu ou complexo egóico é o centro
da psique consciente e o self, o centro da psique total
(JUNG, 1982, p.1 e 9). O self orienta virtualmente o processo,
enquanto princípio regulador inconsciente mas é
o eu quem atua. O ego está pois “sobre o
fio da navalha” ou “na corda bamba”,
entre as duas grandes realidades da vida, a experiência
consciente e a experiência inconsciente, oscilando
entre essas duas demandas.
-
O
Ego Como Fiel da Balança
De fato, o ego encontra-se numa posição
psicologicamente essencial, de extrema importância
estratégica, no que se refere à realização
do processo de individuação. Ora voltado
para as representações coletivas que regulam
a vida social e isso requer um comportamento adaptativo
desempenhado através persona. Ora às voltas
com o material inconsciente, o que requer assimilação
e integração, ou seja, interpretação
e elaboração desses conteúdos. É
o ego quem realiza o símbolo, quem o investe na
vida objetiva. A partir do material simbólico fornecido
pelo self, cabe ao ego um difícil trabalho em que
deve realizar um movimento pendular entre a psique e o
mundo, para construir uma ponte que os ligue de modo seguro
e realizar, na travessia, a transformação
da carga simbólica em ato. Essa passagem é
perigosa, pois o ego pode sucumbir ao símbolo ou
ao mundo. O primeiro caso corresponderia a uma identificação
com a sombra e o segundo a uma identificação
com a persona, o que significaria, em ambos os casos,
uma paralisação do processo de individuação,
na medida em que este objetiva uma integração
das duas instâncias da psique e não uma predominância
de qualquer uma das duas sobre a outra. O eu não
deve, pois, ser confundido com sua função
de adaptação social, nem com a cosmovisão
decorrente do processo inconsciente, pois ele é,
na verdade um mensageiro, uma função de
intercâmbio entre as duas perspectivas.
Um princípio, portanto, fundamental à psicoterapia
e aliás a qualquer técnica ou arte que vise
a individuação, o auto-conhecimento ou a
transformação da personalidade é
o de que “o ego precisa ser protegido a todo custo”,
quanto à preservação da sua integridade,
mesmo, como frisa Jung, que isso signifique interromper
o aprofundamento do processo analítico, na medida
em que se perceba que a integridade da personalidade consciente
está ameaçada (JUNG, 1981, p.11).
Talvez o meio mais importante, não só de
proteger mas de fortalecer o ego e ao mesmo tempo favorecer
a individuação, é o trabalho enquanto
atividade criativa. O trabalho criativo como expressão
simbólica, produção de símbolos,
é um excelente meio de acesso ao material inconsciente,
que pode então ser interpretado e elaborado. É
um esplêndido recurso terapêutico, introduzido
e desenvolvido pela dra. Nise da Silveira, ao longo de
seu trabalho no tratamento de psicoses e neuroses graves.
O que era precariamente realizado sob o nome de “terapia
ocupacional”, foi por ela profundamente modificado
com a adoção de todo o tipo de atividades
criativas, lúdicas e interativas, tais como as
artes plásticas, as artes cênicas, a dança,
o uso de animais como “co-terapeutas”, a participação
de profissionais das mais variadas proveniências
atuando como coordenadores, entre outras tantas inovações.
O ponto fundamental dessa prática terapêutica
é a procura do meio de expressão mais apropriado
em cada caso. E o objetivo principal, dar vazão
à afetividade enclausurada no espírito,
em função do isolamento social imposto ao
“doente”, através da convivência
facultativa e livre: sem internação e sem
medicação. O que um paciente batizou com
o nome de “emoção de lidar”,
num poema escrito após a execução
de um trabalho artístico:
“ ‘Posso com esse pano fazer um gato?’
A resposta foi sim. Então Luís Carlos começou
a manipular o pedaço de veludo, dando-lhe a forma
de um gato. (...) Completado o gato, Luís Carlos
tomou um lápis e escreveu:
Gato simplesmente angorá
do mato
azul olhos nariz cinza
orelha castanho macho
agora rapidez
Emoção de lidar.” (SILVEIRA, 1998,
p. 30)
“Terapia ocupacional” “virou”,
assim, Emoção de lidar (sem aspas...)
De qualquer modo, o trabalho, seja como atividade terapêutica
ou atividade profissional, desde que responda a um chamado
interior, a uma vocação portanto, constitui-se
num meio de proteção e fortalecimento do
ego e de possível transformação da
personalidade total. Ë uma “âncora”
para o eu consciente e uma “vara de pescar de símbolos”,
pois mantém o ego integrado às condições
da vida material e ao mesmo tempo é um canal para
a atividade criativa. Com relação a esses
dois benefícios, não podemos deixar de remeter
como exemplo, ao uso do trabalho e da brincadeira
por Jung, no momento crucial de seu confronto pessoal
com o inconsciente, como meio de aplacar a força
dos conteúdos que irrompiam em sua consciência,
durante esse período. Foi nessa etapa
de sua vida que ele construi, por conta própria,
sua torre, lavrou, plantou, colheu e cozinhou seus próprios
alimentos, desenhou, esculpiu, pintou, brincou com soldadinhos
de chumbo, etc. E foram justamente estas experiências,
realizadas com dedicação e paixão
que o permitiram, não só atravessar a crise
psicológica, como integrar o seu material e transformá-lo
em sua obra. (JUNG, 1984, p. 152-211)
O trabalho enquanto atividade criativa é
o meio mais eficaz de ancoragem do eu na realidade objetiva,
ao longo do processo de individuação
pois é, por definição e objetivamente
falando, a própria transmutação da
energia psíquica, que se expressa no símbolo,
em ação criativa: forma singular de modificar
o meio para beneficiar o outro; comunhão ou união
com o outro; o ato em que o sujeito realiza a sua parte
no todo. Coniunctio.
Talvez seja lícito afirmar que a personalidade
transforma-se de uma forma natural, segundo seu próprio
princípio de individuação, na medida
em que transforma o mundo, intervindo assim no processo
da vida coletiva e porque não dizer, da vida na
Natureza. Mas isso deve ocorrer num circuito em que o
símbolo concretize-se no mundo e em contrapartida,
o mundo reflua à psique tornando-se o símbolo
de uma nova transformação possível
(pois a experiência consciente é a fonte
do símbolo, do mesmo modo que este é a semente
da ação criativa). O mundo transforma-se
em símbolo no trabalho inconsciente que redimensiona
o mundo, preparando o seu porvir, para o pior ou para
o melhor, dependendo da atitude consciente de integração
ou negação desses conteúdos simbólicos.
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