Nunca
vou esquecer Júlia. Você não pode
entender isto se não perdeu um filho, sofreu
um acidente que deixou seqüelas, ou outra coisa
assim, definitiva, irremediável. Júlia
foi o meu acidente. Deixou danos irreversíveis
em mim. Eu às vezes tento me enganar que não.
Mas para mim estas cicatrizes são absolutamente
visíveis. Sou um homem deformado. Por isto, nem
que eu quisesse, poderia esquecer Júlia. Você
tem uma idéia do que seja isto?
Há dias em que eu acordo com vontade de matar
Júlia. Nestes dias, se ela cruzasse a minha frente,
eu, que fui um homem pacato, comum, até mesmo,
hoje vejo, medíocre, me transformaria em um psicopata.
Em um monstro. Desculpe-me, mas é verdade. Desculpe-me...
Mas há dias em que eu acordo chorando como uma
criança, com saudade de Júlia. Uma saudade
dolorida, no centro do peito, que me deixa prostrado.
Nestes momentos, encontro-me próximo de me matar.
Algo, porém, me impede de fazer isto. Júlia,
ainda? Até nisso eu seria refém? Vivo
porque, no fundo, acho que ela pode voltar e dar as
explicações que me negou?
Mas há dias, que eu nunca sei quais serão,
que preservam minha sanidade mental, que é quando
eu acho que superei Júlia. Que é quando
eu me lembro dela com indiferença. Que nenhum
sentimento se agita dentro de mim. Nestes dias, não
há nenhum impulso, nem para matar Júlia,
nem para acabar comigo mesmo. Mas há algo horrível.
Algo que eu acho horrível depois, e não
quando eu os vivencio: eu me encontro morto. Nada acontece
dentro de mim. É como estar em meio a um calor
opressivo, sem que nada se mexa. Nada. Nem uma brisa
agitando uma folha.
Será que um dia estes dias serão a regra?
Será que em meio a secura que me envolve neles
pode nascer algum vestígio de normalidade? É
a minha esperança. Às vezes, eu tenho
vários desses dias seguidos. Mas quanto tempo
eu terei de esperar para que a minha vida volte ao normal,
se é que um dia vai voltar? Até que o
meu corpo envelheça por completo e eu tenha certeza
de que Júlia também está velha
ou morta? Eu não quero esperar isto tudo. Você
não entende: eu NÃO POSSO esperar isto
tudo. Eu estou me extinguindo em minhas emoções.
Apesar do meu horripilante estado em que eu não
sinto nada, são somente nestes dias que este
processo de deterioração psíquica,
mental, emocional cessa. Mas é como eu falei:
cessa porque já me encontro morto. Eu oscilo,
portanto, entre a destruição e o nada.
Não há opções mais terríveis
que estas duas, principalmente quando são as
únicas. É assim que eu vivo. Ou não
vivo. Eu ainda não sei.
Você deve estar achando que Júlia, este
monstro que me tornou um trapo, devia ser uma mulher
fisicamente espetacular. O pior é que não.
Júlia era uma mulher comum que se tornava bonita.
Mas também era uma mulher bonita quase comum.
Como queira. O melhor de Júlia era seu sorriso.
Era sorrindo que Júlia se iluminava. Indescritível
este sorriso. Nos dias em que eu acordo chorando de
saudade de Júlia é a lembrança
do sorriso dela que me dói em cada um dos meus
ossos, músculos. Você não pode imaginar
como eu fico.
Mas esqueça isto, porque eu preciso te explicar
como Júlia era. Ela era baixa, um metro e sessenta,
talvez. Ou um centímetro a mais do que isto,
não mais. Tinha uma bunda larga, quadris largos,
um pouco de peso acumulado ali, que ela sabia como disfarçar.
Tinha cabelos encaracolados, curtos, mas não
muito curtos. A pele clara. Um rosto bonito. Mas você
não notaria Júlia se ela fosse uma anônima
passando na sua frente. Mas você não deixaria
Júlia passar se estivesse a fim de algo. Entende
isto?
Eu conheci Júlia em um supermercado. Só
de lembrar nisso eu me arrepio. E fico me perguntando:
por que eu estava lá? Que casualidade ou destino
me levou lá, naquele momento? Ela estava na minha
frente na fila. Simpática, falava com outras
pessoas. Alguma coisa sobre um prato congelado. Eu estava
com pressa. Pensava, aborrecido, nos meus problemas
com a minha esposa. Não vou lhe dizer o nome
dela, porque esta é uma história em que
só Júlia importa. Penso que nem eu importe.
Só direi que minha esposa era esbelta, clara,
perfumada, elegante. Era bem diferente de Júlia.
Também não era espetacular, mas tinha
um estilo clássico. As pessoas diriam que era
mais bonita do que Júlia. Mas depois que você
conhecesse Júlia, e fosse enfeitiçado
por ela, não acharia mais isto. Nunca mais acharia.
E não entenderia como um dia chegou a pensar
diferente.
Minha mulher andava esnobe com a carreira dela. Pouco
tempo para mim. Quando eu resmugava, dizia que eu era
machista. Mas tudo isto sem discutir. Minha mulher nunca
discutia. Ela achava discussão coisa de gente
ignorante. Minha mulher era uma intelectual. Professora,
pesquisadora. Depois, descobri que nesta época
ela se apaixonou por outra pessoa. Mas estava cheia
de escrúpulos, evitando o envolvimento. Tentando
entender o que lhe acontecia. Mas já tinha mudado.
E eu sem saber de nada, sem suspeitar disso.
Vi Júlia, mas não notei. Ela pagou suas
compras, saiu. As minhas, que eram poucas, foram passadas
logo. Eu já estava fora do mercado quando uma
mulher tropeçou, caiu no chão e também
suas sacolas de compra. Você vai achar ridículo,
mas era Júlia. Como bom cavalheiro que eu suponho
que um dia eu fui, apressei-me em ajudá-la. Ela
parecia bem atordoada, e estava vermelha de vergonha
também. Não sei porque disse a ela que
estava com o meu carro, e que podia deixá-la
em casa, pois ela tinha batido e ralado o braço
esquerdo. Era melhor chegar logo em casa. Ela hesitou.
Tenho certeza de que considerou perigoso. Mas eu insisti
(a esta altura, tinha deixado de pensar na minha mulher
e mudado completamente de humor) e ela aceitou. Quando
Júlia me mostrou o prédio dela, no meu
bairro, eu não acreditei. Era o prédio
em que um amigo recém-separado estava morando.
Eu não quero encher sua cabeça com explicações
inúteis, com detalhes. Só posso dizer
que um dia fui visitar o tal amigo, e me lembrei casualmente
de Júlia, no meio do caminho. Perguntei dela
para ele, e ele falou que ela também tinha mudado
há pouco tempo, e que as pessoas sabiam muito
pouco a respeito dela, mas que ela já tinha conquistado
os porteiros com agrados e com sua simpatia. Comecei
a ir muitas vezes no meu amigo, eu nem sabia porque.
Carência de marido desprezado, que era como eu
me sentia? Tenho saudade do paspalhão que eu
era. Em me levava a sério. E não tinha
nada para ser levado a sério. Era tão
profundo quanto um pires.
Como
aconteceu
Eu ia até lá e saíamos
para beber, jogar conversa fora. Como minha esposa muitas
vezes chegava tarde, não notava e não
fazia perguntas. Eu também não a estava
traindo e não me sentia culpado. Uma noite, eu
e meu amigo encontramos Júlia no elevador. Ela
não se lembrou de mim. Eu tive de lembrar a Júlia
quem eu era. Ela riu, disse que tinha morrido de vergonha
naquele dia. O braço já estava bom, obrigada.
Bem, naquele dia, eu, meu amigo e Júlia tomamos
um chope. E outros dias. Embora eu e meu amigo estivéssemos
interessados nela, ela não demonstrava preferência,
conversava com os dois, e agia com naturalidade. Só
que eu comecei a ficar mais cismado com Júlia,
e meu amigo foi cedendo. Ele ainda estava balançado,
pensando em voltar para a ex-esposa. Em um período
de meses, sim, meses desde que a conheci no supermercado,
Júlia se tornou minha amante. Tivemos de tomar
muitos chopes para chegar a isto. Demorou mais do que
meu orgulho de homem na época admitiria. É
engraçado: hoje tenho a impressão de não
ter orgulho nenhum. Júlia levou o meu orgulho
com ela.
Ela sabia que eu era casado. Inclusive, perguntava da
minha esposa. No início, constrangido, eu não
falava. Mas Júlia perguntava, dava palpites,
me auxiliava a entender minha esposa. Explicava minha
esposa para mim. Eu via coisas na minha mulher que eu
nunca havia notado. Eu não entendia porque Júlia
fazia isto, pois me parecia que ela estava me empurrando
de volta para o meu casamento. No entanto, quanto mais
Júlia falava bem da minha mulher, pintando-a
com as melhores cores, mais era por ela que eu me apaixonava.
Talvez ela, maquiavélica, soubesse disso. Júlia
era um prodígio do entendimento humano, vai ver
era isto. E eu era uma pessoa óbvia demais. Talvez
ela tenha me manipulado com tanta habilidade que sequer
pude notar. Até hoje, mesmo no auge da minha
raiva, não consigo perceber como ela me manipulou.
Posso ter mudado, mas devo ter continuado meio parvo,
não?
O maior mistério de Júlia é que
ela nunca foi ciumenta. Nem ressentida. Quando eu tentava
fazer ciúme nela, dizendo que naquele dia eu
não iria, ela jamais se zangava. E sempre acreditava
nas minhas desculpas ou mentiras. Ou fingia acreditar.
Tudo estava sempre muito bom para Júlia. Eu ir
ou não ir. Se isto, às vezes, era a quinta
maravilha do mundo para mim, em outras, me fazia ficar
ressentido. Um ressentimento que eu engolia, com o estúpido
orgulho que eu tinha na época. Aliás,
você não pode imaginar como eu fingia naqueles
dias. Como eu tentava ser um homem que não era.
Inclusive, profissionalmente, esta foi a época
em que eu fiquei mais empenhado, e tive, também,
mais sucessos. Brilhei como acho que nunca mais vou
brilhar na vida. Já viu isto, ter certeza de
que já se chegou ao auge e que agora só
lhe resta cair progressivamente? Parecia que eu precisava
me compensar neste setor para provar o meu valor a mim
mesmo. A verdade é que Júlia fazia com
que eu me sentisse um nada. E quanto mais nada eu era,
mais tudo eu desejava ser. Até com minha mulher,
que algumas vezes estranhava os meus ímpetos,
e os refreava com aquela frieza suave que sempre foi
sua marca mais instigante.
Mas voltemos a Júlia, de quem nem por um segundo
deixamos de falar. Júlia estava sempre alegre.
Mas ela combinou algo comigo: que queria me encontrar
apenas duas vezes por semana, em dias determinados,
pois nos outros dias teria compromissos. Eu não
gostava disso. Queria tomar toda a vida dela, mas o
acordo dela ajudava para que o nosso caso não
se tornasse tão compulsivo. Para mim. Eu queria
vê-la dependente, ansiosa, mas jamais tive este
gosto. Talvez meu instinto assassino contra ela tenha
começado ali.
Júlia era demais. Fazia surpresas. Estava sempre
disposta para o sexo. E ria. Mas também conversava.
Júlia era amante e mulher. E nunca, jamais, dizia
que queria ficar comigo ou que eu deveria abandonar
minha esposa. Eu perguntava se ela me amava, e Júlia
dizia que isto não era importante, nem para mim,
nem para ela. Que em algum lugar tínhamos de
ser livres.
Mas Júlia era perfeita demais e isto, como eu
já falei, algumas vezes me irritava. Despertava
em mim instintos destrutivos, porque eu me sentia um
nada frente a superioridade dela. Incomodava-me, também,
que ela não falasse do passado. Um dia, para
satisfazer a minha curiosidade, Júlia me disse
que tinha sido casada. E que tinha tido um marido violento,
e que, por isto, amava a liberdade. Júlia também
me disse que tinha um profundo interesse religioso,
que havia tentando ser freira, mas que sua mãe
sensatamente impedira, já que tornar-se freira
iria prendê-la e impedir que conhecesse o mundo.
A mãe de Júlia tinha morrido, e o pai
vivia em algum lugar distante. Ela dizia que não
gostava dele, pois ele sempre tinha sido boêmio,
irresponsável e sequer amoroso sabia ser. Quando
Júlia falava isto, ficava séria. Mas dizia
que era melhor esquecer. E que eu deveria aprender a
esquecer, também.
Eu e minha esposa fomos tirar férias, para tentar
salvar nosso relacionamento, que ambos sabíamos
que andava apagado. A viagem foi ótima e voltamos
a ativar nossos interesses em comum. E isto sem nunca
ter falado na palavra crise ou separação.
Nosso casamento era a coisa mais civilizada do mundo.
A viagem durou duas semanas, e, milagre, conseguimos
recuperar um pouco da ternura, da sensibilidade. Foi
uma das poucas épocas da minha vida, depois de
Júlia, em que me esqueci dela. Sinto saudade
deste tempo. Você pode dizer que eu deveria me
abrir para o amor, mas Júlia só permitiu
que eu me abrisse para um outro amor naquele momento.
Em nenhum outro.
Abandono
Quando voltei, Júlia havia ido
embora do prédio, sem deixar nenhum rastro. O
apartamento era alugado. Ela pagou o aluguel, a multa,
e partiu. Não deixou nem o endereço novo.
Não se despediu de ninguém.
Foi só e unicamente isto que aconteceu. Mas me
matou. Depois disso, fiquei como um louco, esperando
semanas por um sinal de vida. Meu casamento acabou.
Minha mulher contou sua paixão. Eu contei a minha.
Minha mulher se foi. Triste, mas civilizadamente. E
finalmente livre para viver o novo relacionamento. Eu
fiquei só. Destruído. Júlia me
arrasou com o simples ato de ir embora. Sumir, desaparecer.
Deixar de existir, de sorrir, de falar. De me esperar.
Meu amigo reatou o casamento com a mulher. E eu me afastei
dele também. Era insuportável falar ou
não falar de Júlia com ele. Ele é
a prova viva do que Júlia conseguiu fazer comigo.
Às vezes eu acho que Júlia entrou na minha
vida unicamente para me espoliar. Que tudo foi premeditado.
Que ela queria se vingar de seu pai e seu ex-marido
no primeiro que aparecesse. E que este primeiro, este
incauto, este trouxa, fui eu. Júlia cometeu a
maior vingança que um ser pode fazer: ela apenas
deu. Não quis nada de mim. Me tratou como um
lixo, de quem nada se retira. Deu, deu, me impregnou
dela, e partiu. Aquilo que ela injetou em mim me fez
dela seu escravo. Tenho raiva de Júlia. Não
entendo um ser humano capaz de ser tão frio,
tão cruel. Você não pode negar que
alguém que simplesmente some, sem deixar justificativas,
é um ser cruel. Esta pessoa priva você
de uma justificativa, de uma despedida, de um fim, de
um escândalo, de um choro, de uma cena de humilhação
ou de fúria. Uma pessoa que parte sem se despedir
te vence, como Júlia me venceu. Para sempre.
A menos que eu a encontre e a esgane. Sou capaz de assassiná-la,
já disse.
Às vezes, porém, eu acho que Júlia
era uma santa. Um anjo. Que entrou na minha vida, abençoou-a
com os melhores momentos. Que foi a única pessoa
a nunca me cobrar nada, a nunca esperar nada de mim,
e que, assim, me aceitou como eu era. Que me conheceu
sem nenhuma máscara, pois nada eu tinha a obrigação
de dar. Júlia seria um anjo livre. Teria partido
para a Índia, para uma busca espiritual. Um anjo
não pode ser retido. Júlia muitas vezes
me ajudou, em tudo, até mesmo em questões
profissionais. Júlia me ensinou. Júlia
era um anjo.
Às vezes eu acho, porém, que Júlia
não existiu. Que foi uma invenção
da minha cabeça. Afinal, eu me destruí.
Até o meu emprego eu perdi. Hoje tenho outro,
mas é menos interessante, em todos os sentidos.
Caí em depressão profunda por causa da
partida de Júlia. Nem minha ex-mulher foi capaz
de me ajudar. Júlia deve ter sido uma fantasia.
Não existe ser humano nem tão cruel e
nem tão bom. Júlia foi uma mentira. Uma
mentira que eu preguei a mim mesmo. E na qual eu ainda
creio, mesmo sabendo que foi uma mentira. Tenho vontade
de chorar quando penso nisso.
Talvez eu não tenha notado Júlia. Vagamente,
me lembro de vezes em que ela esteve mais calada. Mas
ela parecia esquecer de si mesma para me satisfazer.
Devo assumir que eu não queria saber da tristeza
de Júlia, somente do seu sorriso, da sua dádiva,
da sua leveza. Ela deve ter compreendido isto, pois
me deu exatamente o que eu queria. Mas não deveria
ter dado, pois eu precisava de coisas que não
desejava conscientemente, mas que teriam me feito bem,
como as frustrações dela, seus desgostos,
seus maus dias. Não tive isto, a não ser
em poucos momentos, que Júlia, como uma exímia
prestidigitadora, sabia como fazer sumir no ar. Sua
fugidia melancolia só fazia com que ela ficasse
ainda mais idealizada aos meus olhos. Júlia era
maravilhosa.
Eu só queria saber da nossa sede de amor. Será
que discutimos ou nos desentendemos e eu não
percebi? Será que ela me deu sinais, e eu não
quis ver? Agora que sou louco, que sou doente, não
posso saber mais. Minha memória me engana. Meu
emocional torce tudo até que nada de original
ou verdadeiro sobre. Eu sou um monstro que vive em seu
próprio mundo. Apenas finjo que sou uma pessoa
normal, na tentativa de recuperar quem eu fui. Às
vezes, acredito que conseguirei isto. Sou uma pessoa
forçada. Tudo em mim é forçado
e somente aqui não estou sendo. Ou estou? Nem
sei mais... O fato é que passo a maior parte
do tempo fingindo. Tornei-me um alcoólatra controlado,
que bebe todas as noites, mas que de dia consegue trabalhar.
Acho que sou um extraterrestre.
Acho que agora, falando com você, eu entendi.
Júlia também era um extraterrestre. E,
com eu não podia lidar com um, acabei me tornando
também, só que de outra espécie.
Uma espécie de um único exemplar: eu mesmo.
Júlia, inadvertidamente, fez uma mutação
genética em mim e voltou para sua tribo intergaláctica.
Foi isto que aconteceu. Por isto que não sobrou
rastro dela. A Índia dela é nos confins
celestes, e, em cada planeta que ela chega, ela assume
a forma daqueles que lá habitam. É este
o passatempo de Júlia. Ela não é
anjo nem demônio, e sim, um absurdo extraterrestre.
Não sabe como a constatação disso
me causa repulsa. Eu estive com ela. Eu tive o azar
de estar com ela. E hoje sou uma aberração
genética. A morte me ocorreu em vida, pois nunca
mais poderei me identificar com nada, nem ninguém.
Vivo aprisionado em meu mundo, em que só há
Júlia. Em que nem mesmo eu existo. Talvez você
já tenha percebido isto. Aconselho-o, neste momento,
a parar de me ouvir, pois senão você também
será uma mutação genética...
Não. Acho que não. Somente Júlia,
ou outros como ela, poderiam tornar a sua vida anormal.
Eu não tenho este poder, e talvez você
também nem acredite em mim, em nada do que eu
estou falando. Eu fiquei no meio do caminho entre o
humano e o extraterrestre. Sou uma mutação
patética.
Desculpe, acho que já não tenho mais nada
para te dizer que já não tenha dito. Somente
uma coisa me parece relevante: cuidado com a próxima
fila de supermercado em que você entrar. Talvez
ela mude a sua vida, como mudou a minha. Ou como não
mudou, já que estou morto. Júlia, Júlia,
Júlia...
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