E
lá fui eu no tal de workshop de xamanismo. Bem,
faz tempo que minha mulher tá insistindo que
eu tenho que entrar na nova era, que eu já era,
que não to com nada. Dai li o anúncio
do tal de workshop de xamanismo. Que coisa meu! Se tem
um nome desses deve ser muito legal. Workshop, venda
de trabalho né? Bem, vamos lá. Tá
na hora de eu tomar uma atitude na vida mesmo, como
vive dizendo a Rosinha todo dia.
Sei lá como apareceu um folheto em minha mesa,
achei até que era gozação dos colegas.
O pessoal aqui da firma é muito gozador. Colorido,
bonito, cheio de desenhos de animais, tigres, águias,
coisa linda mesmo. Anunciava um curso de final de semana
que prometia resgatar nosso poder interior, conectar
a gente com a luz (isso me impressionou), resgatar nosso
animal de poder, enfim, algumas coisas que eu não
fazia a menor idéia do que se tratavam. O "facilitador"
era um gringo bonitão de rabo de cavalo nos cabelos
e olhar penetrante. Bem, "facilitador" deve
ser uma coisa bem moderna, bem nova era.
Liguei para pedir informações, a mocinha
que me atendeu foi muito simpática. Só
que se espantou um pouco quando eu disse a ela que eu
era auxiliar de contas a pagar. O que um auxiliar de
contas a pagar vai fazer num trabalho desses? Bem, fiquei
imaginando que tipo de pessoas faria um tal de workshop
de xamanismo, ainda mais com um especialista americano
que diziam ser o ó do assunto. Será que
auxiliar de contas a pagar não é gente?
Não pode querer evoluir e se encontrar, como
era prometido no anúncio?
Bem, eu não sou uma pessoa lá muito
sofisticada. Tive que trabalhar a vida inteira para
me sustentar e depois que eu casei então ficou
mais complicado ainda. Hora extra todo fim de semana
e algum bico para ajudar nas despesas, tipo fazer imposto
de renda do povo no começo do ano, época
que faturo um pouquinho mais. Só por isso tinha
uma reservinha para fazer o tal do workshop e tentar
"dar um salto quântico na minha vida",
como dizia o folheto, e seja lá o que for "salto
quântico" na vida da gente. Bem, to imaginando
que pelo preço não deve ser algo que doa.
Só no bolso né?
Bem, vou contar pra vocês a historia desse curso
de final de semana que por se chamar workshop custa
os olhos da cara. Esse povo é sabido pacas. Mas
também tem uma coisa, agora estou na nova era!
Paguei meu pedágio. Se nao valeu ainda, só
o ano que vem vou poder fazer outro. Dessa vez vai ser
de renascimento, vocês vão ver só!!!
Bem, vamos lá.
Primeira
Parte- A CHEGADA
Bem, antes de falar da chegada, deixa eu falar da
partida.
Rosinha estava orgulhosa. Fazia tempo que eu não
via ela aprovar nada do que eu fazia. Só reclamava
de meus amigos e do futebol no fim de semana, nao sei
porque ela se incomodava tanto. Era para manter o físico
ué, afinal a barriguinha já estava ficando
proeminente e lá pelo menos eu gastava um pouco
da cerveja consumida no happi hour de sexta feira com
os colegas da firma.
As crianças estavam felizes, parece que o contentamento
da mãe pegou nelas. Nesse momento eu vi que estava
fazendo a coisa certa, até me esqueci da falta
que ia fazer a grana que estava gastando e, cheio de
orgulho e de vontade parti para o ponto de encontro
para ir ao workshop.
Fomos de "besta", um grupo de umas 15 pessoas.
O guru americano e as organizadoras (sempre são
mulheres, ouvi dizer, sabe Deus porque) foram de carro
na frente. Foi meu primeiro contato com os fazedores
de workshop e futuros xamãs. Coisa interessante,
gente de todo tipo, mas ninguém que fosse um
auxiliar de contas a pagar como eu. Me senti meio inferiorizado
no meio daquele povo, umas gatinhas com cara de inteligente,
uns rapazes cabeludos com cara de "especial",
só gente diferente, tipo meio cult dessas que
se encontra em festival de cinema europeu e concerto
de jazz, e só ai reparei que estava de gravata.
Saco! Tentei tirar disfarçado rapidinho, mas
nem sei se consegui. De qualquer forma, todo mundo fez
que não viu. A gravata é tão natural
para mim que parece que faz parte de meu corpo. Também,
mais de 20 anos de escritório usando esse treco
no pescoço, até sinto falta quando estou
sem ela. É uma verdadeira amiga que me consola
nos momentos de agonia, eu fico alisando ela, suave,
gostosinha, até sinto falta daquele apertadinho
quentinho quando estou sem ela.
Mais tarde aprendi, durante o curso, que a gravata
é um objeto de poder pra mim. O americano que
sabia tudo de tudo que me disse, quer dizer, a tradutora
que ficava babando e parecia mais importante que ele
me disse que ele disse e eu tive que acreditar, mesmo
porque o máximo que eu sei falar de inglês
é big mac e coca cola. Mas quem diria hein? A
prosaica gravata é um objeto de poder! Quando
o povo do escritório souber que essa coisa colorida
é um objeto de poder vai rachar o bico. Mas eu
gostei e senti menos vergonha de ter que usar essa coisa
todo dia.
Bem, mas vamos falar da chegada propriamente dita.
O lugar, um sitio especialmente preparado para esse
tipo de coisas. Com chalés e estrutura bem boa,
grama linda e árvores. A dona do lugar, vestida
com saias longas, coloridas e manchadas, cheia de pulseiras,
colares e aneis, com um cabelo que era simplesmente
indescritível e por isso não vou nem me
arriscar a descreve-lo, era uma tal de Nuvem Purpura,
bem, ela disse que esse era mesmo o nome dela, Nuvem
Púrpura da Silva, e que seu pai era fã
apaixonado por um tal de Hendrix, mas que preferia ser
chamada de "Shandranua" que é o nome
que um guru indiano deu uma vez pra ela. Bem, vai entender
esse povo né?
Nuvem Purpura, quer dizer, Shandranua recebeu a todos
com um sorriso, e abraçou cada um de nós,
homens e mulheres, com uma certa intensidade e intimidade.
Bem apertadinho. Parecia que estava recebendo um amante
que tinha saído pra comprar cigarros e voltou
uns 15 anos depois. Fiquei completamente sem graça
com aquela dona me apertando, inclusive na parte de
baixo, quase um amasso. Que coisa meu! Acho esse povo
muito estranho, mas vou relaxar porque senão
vai ser difícil aceitar isso. Se a Rosinha abraçasse
um cara como essa dona me pegou eu largava dela na hora.
O povo, depois dessa cumprimentação
toda, pegou suas tralhas e cada um foi pro chalé
que a dona do "amasso" indicou. Todo mundo
tinha mochila e umas sacolinhas coloridas, só
eu estava com minha mala de viagem chinesa. Ninguém
me avisou disso, que saco.
Fiquei num quarto com mais três caras, um deles,
o mais jovem, era o filho de um milionário que
estava buscando uma alternativa existencial de renovação,
a conselho de seu psiquiatra. Esse ai tinha que tomar
uns 4 ou 5 comprimidos antes de dormir, e outro tanto
durante o dia, mas mesmo assim, de vez em quando escorria
um fino fio de baba do lado esquerdo de sua boca, mas
estranhamente, parece que ninguém reparava nisso,
só eu. Será que sou muito babaca ou muito
preconceituoso?
O outro era um executivo que vivia fazendo cursos
para encontrar a si mesmo. Ele já tinha ido até
para a India e o Nepal, tinha ido para Ilha de Pascoa
e Machu Pichu, tudo em busca de si mesmo. Achei muito
esquisito esse papo porque não entendi nada.
O cara tava ai na minha frente e saia pra procurar ele
do outro lado do mundo? Perguntei se ele tinha se encontrado,
e ele disse que estava em processo, estava cada vez
mais próximo de si mesmo. Cara! Que piração.
Acho que o cara era doidinho com esse papo. Coisa mais
esquizofrênica sô!
Meu outro companheiro de quarto era um gay assumido,
um intelectual que sabia tudo de candomblé. Acho
que o cara era até meio pai de santo, só
falava de Ogum, Oxum, Ananaraie não sei o que
e coisas assim. Ninguem ligava que o cara era viado,
que no meio desse povo que está em busca da "verdade"
num curso de final de semana não cabe preconceito
de tipo nenhum. Claro que eu disfarcei e nem tirei um
sarro do boiola, achei melhor fingir que nem ligava
de ficar num quarto com um viadinho. Resisti bravamente
à tentação de tirar uma com o cara,
mas enfim, acho que ja comecei a evoluir e entrar na
nova era, deve ser por ai o caminho. Puxa! O curso já
começou a fazer efeito e nem começou de
verdade ainda! Que coisa hein? Ta valendo a grana! Rosinha
vai pirar com o novo cara que vai voltar dessa vivencia,
ops, desse workshop.
Depois de uma sopa com gosto de incenso e algum negócio
natureba meio gosmento que prefiro nem saber o que é,
fomos dormir.
Bem, aconteceu o seguinte nessa primeira noite: o pai
de santo gay falava coisas em africano a noite inteira,
era um tal de "ogunhe salun salamalun poroxotóqui"
que não acabava mais. O rapaz dos comprimidos
dava pulos e gritava a noite inteira igual um deseperado
sendo espremido num moedor de cana. O executivo peregrino
gemia muito e no meio dos gemidos gritava "mami,
mami, não me abandone" com vozinha de criança.
Bem, acho que ninguém se incomodou com meus roncos,
se bem que só consegui dormir de madrugada.
Segunda
Parte:
Acho que vai Começar o Workshop
Eu gosto de todo tipo de musica, do bolero ao samba
canção, do rock ao axé e por isso
não estou muito acostumado com esse tipo de musica
que fica nhénnnn nhénnnn nhénnnn
que não acaba mais, e de vez em quanto toca um
sininho no meio. Eu ficava esperando a hora que tocava
o sininho para tentar ficar acordado e me distrair um
pouco. E olha que tocava o dia todo, quase não
dava para perceber quando mudava de uma musica para
outra. Chegou uma hora que eu nem escutava mais, ainda
bem, senão seria um sono só. Que chatura
aquilo!
E foi com uma musica dessas, tocada a todo volume,
que acordaram a gente. Bem, no começo eu não
sabia que aquilo era musica, demorei pra entender o
negócio. Um gemido sem fim com umas batidinhas
no meio e o inevitável sininho que fazia "pin",
mas só que demorava pra caramba esse "pin".
No começo, ainda meio sonado, achei que era parte
dos roncos ou da sinfonia de gemidos daquele povo, mas
no fim acabei sacando que aquilo era a musica de workshop.
Parece que são todos mais ou menos assim, ouvi
dizer. Deu até saudades de um sambinha.
Eram seis da matina e tivemos todos que pular da cama,
principalmente na hora que a Shandranua entrou no quarto
e com sua voz "new age" (sim, por incrível
que pareça existe isso. Todo mundo aprende falar
com voz new age nesses workshops) e foi, meio ronronante,
meio sussurante dizendo: "bom dia meus irmãozinhos!
Está um lindo dia! O pai sol está sorrindo
para nós! Vamos todos despertar para a vida!
O céu está azul radiante! Os passáros
estão cantando sua sinfonia!" e mais uma
seqüência de frases do tipo que dava mesmo
era vontade de continuar dormindo.
Fomos todos para o salão de refeições.
Todo mundo com cheiro de banho tomado e aquele cheiro
de shampo de flores silvestres, e prontos para começar
nossa aventura do auto-conhecimento, como ouvi alguém
dizer.
O café da manhã foi muito bom. Pão
integral feito em casa, leite tirado diretamente da
vaquinha da casa, queijo feito em casa, ovos das galinhas
da casa, café plantado e colhido em casa, manteiga
feita em casa, geléia feita em casa. Tudo natural
e bom, e se eu encontrar vendendo dessa marca por ai
vou comprar pra levar pra Rosinha. Ela vai gostar.
Shandranua, nossa anfitriã, não parava
de elogiar as coisas "feitas em casa" dela.
E todo mundo concordava para ver se ela parava um pouco
de falar, mas não funcionou muito.
O nosso "faciltador", que chamarei de Mr.
Hi (porque é assim que o pessoal o chamava) tomou
café da manhã junto com todo mundo, quer
dizer, em uma mesa tomada pelas suas fãs. O cara
é mesmo um gostosão, mas acho que vou
me controlar nesses meus comentários senão
vão pensar que eu estava com inveja. Vai que
o cara é gay né? (ops! Olha a inveja rapaz!)
Quando todo mundo terminou de encher a pança,
Mr. Hi se levantou e foi para o páteo onde
aconteceriam os trabalhos. Todos se levantaram e o seguiram.
TERCEIRA
PARTE:
Finalmente começa o Workshop (ufa!)
Eu confesso que estava meio sem graça com aquele
povo. Eles eram muito diferentes de mim, e apesar de
ninguém me olhar de modo esquisito, eu achei
que esse negócio de não olhar com estranheza
para os esquisitos (pra eles eu era o que? Um tremendo
esquisito, claro) era um procedimento padrão,
afinal, esquisitos é o que não faltava
ali.
O primeiro exercício foi a apresentação
de todo mundo. Cada um de nós tinha que escolher
um "nome de trabalho" que seria usado durante
todo o final de semana, e se a pessoa gostasse do nome,
podia adota-lo para o resto da vida.
Seria nosso "nome de guerreiro".
Graças a Deus que não entrei nessa, e
vocês saberão já porque.
O nome tinha que ser correspondente ao que estava sentindo
em relação a si mesmo, e o Mr. Hi insistiu
que deveriamos ser verdadeiros, mesmo que o nome fosse
uma coisa feia ou meio ridículo.
Bem, eu estava me sentindo absolutamente ridículo
no meio daquilo tudo, e fazendo o maior esforço
para não me arrepender de não ter usado
aquela grana toda para trocar os pneus do carro da Rosinha
(só ela tem carro em casa), que bem que estavam
precisando... bem, mas não era hora de pensar
nisso. Era hora de escolher um nome que revelasse meu
sentimento sobre mim mesmo naquele instante. Ridículo
não seria um nome muito apropriado, até
mesmo porque já não era mais original.
É como, já que estou na chuva é
pra me molhar, então vou levar o negócio
a sério e vou até o fim, doa o quanto
doer. Eu preciso entrar nessa tal de nova era pra ver
se a Rosinha fica mais carinhosa um pouquinho comigo
e para de me criticar e me chamar de quadrado e múmia
e coisas assim.
Escolhi o nome que revelava exatamente como eu estava
me sentindo no meio daquele povo.
Eu prestei bastante atenção na primeira
pessoa que parou na minha frente para nos apresentarmos.
Era uma moça muito bonita, provavelmente daquelas
que andam em seus carrinhos que nem relâmpago
no transito, para desespero dos motoristas de taxi,
tipo carinha de estudante de psicologia da PuC ou algo
assim. O olhar um tanto blazê, mas que era bonitinha
era.
"Eu sou Morgana, estudante de psicologia"
disse ela me olhando nos olhos (puxa, adivinhei que
ela era estudante de psicologia, eita workshop danado
de bom esse! Já estou "abrindo os canais",
como dizem).
Nossa! Que nome legal essa mulher escolheu. Muito criativo
e original. onde será que ela arrumou um
nome desses? Fiquei até meio com vergonha de
dar o nome que eu tinha pensado, não era tão
especial e inédito assim, mas como eu resolvi
assumir a verdade doesse o quanto doesse, fui em frente
e disse: "Sou Bocó", ao seu dispor!
Que merda! A mulher caiu na gargalhada! Saco! Eu sabia,
eu bem que sabia que tinha que ter escolhido um nome
mais legal! Quis ser honesto e me ferrei. A mocinha
não conseguia para de rir.
Todos os outros ficaram meio assim sem graça
porque não estavam entendendo o que estava acontecendo,
mas quando ela ria histericamente e dizia "Bocó,
ahahahaha, Bocó, ahahahaha" alguém
perguntou: "porque você está agindo
assim com o rapaz?" (eu era o rapaz, claro), e
ela só conseguia dizer: "bocó! Ahahahaha
, bocó! Ahahahaah". Já estava ficando
chato aquilo. Eu estava mais vermelho que um pimentão,
como dizem.
De repente alguém entendeu que "Bocó"
era o meu apelido nova era (esqueceram de que era para
expressar o sentimento do momento, conforme orientou
o Mr. Hi), e um por um foram todos caindo na gargalhada
e foi o maior tumulto!
A tradutora assistente do Mr. Hi (será que ele
estava comendo ela?) apareceu com um sininho no qual
ela batia histericamente com um pauzinho tentando acalmar
a turma, mas demorou um pouco para as risadas pararem,
e mesmo assim de vez em quando algum riso meio soluçado
escapava de alguém, ameaçando detonar
novamente a onda de gargalhadas.
Acho que o povo estava com muita tensão reprimida,
por isso riram tanto. Uma psicóloga do grupo
me explicou isso mais tarde. Bem deve ser, mas que ela
riu até ter que ir fazer xixi correndo, riu,
que eu vi!
Bem, seja como for, já me tornei de imediato
o cara mais popular da turma, era um tal de Bocó
pra cá, Bocó pra lá que não
acabava mais. De vez em quando alguém dizia "pergunta
pro Bocó". Bem, acho que era alguma ironia
de gente mais presunçosa, mas prefiro pensar
que quem vem buscar auto conhecimento nesses cursos
é gente que, por não ter ainda o auto
conhecimento e por isso mesmo pagou para vir buscar,
respeita a falha e deficiência de auto conhecimento
dos outros. Vou pensar assim para não achar meus
companheiros de workshop uns metidos a besta. Me recuso
a acreditar que gente metida a besta venha fazer esse
tipo de trabalho.
Bem, depois dessa interrupção toda, continuaram
as apresentações.
Parei em frente à pessoa seguinte, uma mulher
com cara de séria, psicóloga já
formada na Puc e ela disse: "Feiticeira da Noite,
psicologa". Bem, Feiticeira da Noite deve ser o
que ela estava sentindo quando escolheu esse nome. Que
tipo de sentimento é esse não sei, mas
deve ter a ver alguma coisa com a vontade de ser bruxa.
Até que, pelo tamanho do nariz dela, ela não
teria muita dificuldade para chegar lá. Já
tinha mais de meio caminho andado (ops! Comporte-se
rapaz! Esse tipo de comentário jocoso não
é próprio de gente do auto conhecimento).
"Bocó, auxiliar de contas a pagar"
disse eu, olhando fixo nos olhos dela. Bem, ela não
caiu na gargalhada, mas acho que teve que fazer tanta
força pra segurar a risada que teve que ir correndo
de novo no banheiro pra soltar o ar reprimido dentro
dela. Foi essa mesma que me disse a analise dela dos
conteúdos reprimidos e tal do povo. Bem...
Acho que vou pular as apresentações que
o assunto está entediante. Entre risadas apertadas
e disfarçadas e um monte de Fadas do Entardecer,
Guerreiro do Infinito, Raio de Sol, Duende da Harmonia,
Liliths e outras combinações disso mais
aquilo, todo mundo acabou se apresentando e Mr. Hi,
que tinha ficado sentado em uma cadeirona bebendo uma
laranjada enquanto nos submetíamos àquela
primeira experiência, levantou-se, pegou um tambor
cheio de penas penduradas e disse:
"You ta ta ta, ta ta ta, te te te, ay, ay ,ay...."
que a tradutora (graças a Deus!) traduziu assim:
"Vocês agora vão fazer uma viagem
ao túnel do inconsciente para encontrar seu animal
de poder!" (de agora em diante vou pular a fala
do Mr. Hi que não entendo patavina de inglês
e vou direto pra fala da tradutora).
É o seguinte, tínhamos que relaxar, imaginar
estar entrando em uma floresta e caminhar ao som das
batidas do tambor, caminhar, caminhar até encontrar
a entrada de uma caverna. Daí a gente entrava
na caverna e ia andando até encontrar um animal.
Mr. Hi disse que tinha certeza que encontraríamos
um animal em nosso caminho. Provavelmente ele se aproximaria
da gente e iria se comunicar de alguma forma. Deveríamos
trazer esse animal conosco no retorno de nossa viagem
xamânica e ele seria um tipo de companheiro para
o resto de nossas vidas, e seria o nosso animal de poder,
ao qual poderíamos recorrer sempre que houvesse
necessidade.
Bem, vamos lá né gente? Deitei no colchonete
e fiquei ligado no tambor, fazendo direitinho o que
foi falado para fazer. Caminhei um bocado pela floresta
e nada de achar a tal caverna. Saco! Comecei a ficar
meio aflito que não tinha caverna nenhuma. Sera
que eu não estava fazendo direito? Abri um olho
e dei uma espiada disfarçada pro lado. Todo mundo
que eu vi estava com a maior cara de felicidade, pareciam
estar indo para o paraíso. Saco! Saco! Saco!
Lembrei da grana que tinha pago para fazer esse workshop.
Foi dinheiro economizado das horas extras que eu fiz
de final de semana. Dinheiro suado economizado tostão
por tostão do que a gente conseguia fazer sobrar
comprando carne de segunda, deixando de ir no cinema
e nunca gastando dinheiro e restaurantes. Até
pizza a Rosinha fazia em casa pra gente economizar que
na pizzaria fica muito cara e feita em casa sai bem
baratinho. E olha que a pizza da Rosinha é um
arrazo, especialmente a de catupiri com alho e uma que
ela inventou de chicória, alho e erva-doce, acho
que meio uma pizza assim nova era não é?
Lembrei das crianças e do que poderia ter comprado
para elas, o videogame que o Edenilson, o mais velho,
tanto queria, a boneca Barbie que era o sonho da Edinalva,
a mais novinha. Saco!
E o tambor batendo, e nada de caverna.
Estava pensando na Rosinha. No que eu diria pra ela?
Ela estava tão feliz por eu ter pela primeira
vez na vida ousado fazer alguma coisa diferente. Eu
não podia decepciona-la, tinha que encontrar
meu animal de poder.
Estava imerso nesses pensamentos quando e repente o
tambor parou. Mr. Hi disse para voltarmos lentamente
e trazermos em nossa consciência e em nossos corações
o animal que tínhamos encontrado na caverna.
Esse seria nosso animal de poder.
Bem, não tinha passado nem meia hora. Como esse
povo é esperto e rápido hein? Acho que
tenho mesmo muito que aprender.
Eu estava morrendo de vergonha e arrependimento. Já
me sentia ridículo e humilhado por causa do nome
de guerreiro que tinha escolhido em minha inocência
de querer ser honesto comigo mesmo. Estava agora me
sentindo mais fraco e ridículo ainda, pois todos
foram se levantando com um sorriso vitorioso, provavelmente
trazendo seus animais de poder junto e eu, nadica de
nada. Saco!
O que eu diria para Rosinha?
"Posso falar?" quase que gritou uma moça.
"Pode sim, Violeta Cósmica" Disse
o Mr. Hi, "estamos aqui para compartilhar nossas
experiências entre todos".
Gente, realmente a voz de "new age" do Mr.
Hi era demais! Passava uma serenidade e sabedoria de
arrepiar, mesmo pra quem não sabia falar ingles
como eu. Além do mais, o cara lembrava o nome
de todo mundo! Que memória.
Bem mas também, "Violeta Cósmica"
é de lascar, até eu lembrava esse, e me
lembro inclusive que fiquei um tempão pensando
em como essa figura foi encontrar um nome desses. Que
coisa.
"Eu encontrei a caverna", disse ela com sua
voz meio pro tipo daquelas moças que anunciam
a chegada e partida de aviões no aeroporto, onde
aliás as crianças adoram ir aos domingos
ver avião subindo e descendo.
"E fui escorregando para dentro dela até
que ficou plano e eu cheguei em um caminho cheio de
flores lindas e perfumadas, todas branquinhas",
prosseguiu a moça.
Nessa altura eu já estava com a maior inveja
da Violeta! Além de eu não ter encontrado
porcaria de caverna nenhuma, a dela ainda tinha arranjo
de flores! Pode uma coisa dessas? Imaginei até
a igreja no dia do meu casamento, tinha flores brancas
em todo o caminho até o altar, exigência
da Rosinha (lembro que custou uma nota esse capricho,
ainda bem que o tio rico dela pagou tudo). Ela ia adorar
a viagem xamânica da Violeta Cósmica.
"Depois de muito caminhar por esse caminho lindo
e suave, saltar alguns regatos de águas cristalinas
e puras...", bem, daí acho que ela estava
exagerando um pouco. Como podia saber que as águas
dos tais regatos eram puras? Bom, acho que um riacho
dentro de uma caverna xamanica só pode ter água
pura, tem lógica.
Então ela prosseguiu: "... então
eu vi uma sombra se movendo por traz das touceiras de
flores. Levei um susto e quase voltei pra consciencia.
A sombra ia e vinha, não dava para ver direito
o que era, passava por traz das árvores, até
que de repente deu um salto e caiu em pé na minha
frente. Era um gorila enorme. Preto. Imenso. Com braços
enormes e musculosos, e um peitão incrível.
Seus dentes eram muito brancos e assustadores, mas eu
não tive medo. Ele me olhou com muita ternura
e me pegou em seus braços..."
Ops! Meu Deus! Eu nessa hora não resisti de
ter um pensamento bem safado sobre as preferencias sexuais
da moça, mas escondi rapidinho o pensamento que
afinal de contas estávamos em um grupo xamanico
em busca do auto conhecimento e não era lugar
de ficar pensando safadezas.
"Então", disse Violeta, "ele
me trouxe de volta para a superficie, para a floresta
e veio comigo. Sinto ele dentro de mim. Sinto o poder
do gorila dentro de meu ser..."
Nesse instante Mr. Hi, que estava ouvindo tudo pela
boca da tradutora, que pensando bem, era bem interessante
e parecia muito íntima dele, bem, Mr. Hi interrompeu
a historia da Violeta Cósmica e disse:
"Muito bem, voce encontrou teu animal de poder.
É um animal poderoso que vai te proteger e cuidar
de você. Nenhum mal pode te acontecer com esse
gorila junto com você. Ele lhe dará força
e sabedoria".
Meu Deus! Como eu posso viver sem um animal de poder,
pensei eu. Como pude viver até agora sem a proteção
de um animal para cuidar de mim e me guiar? Acho que
é por isso que minha vida tem sido tão
difícil. Eu preciso encontrar a tal caverna,
preciso muito! Já me sentia quase desesperado.
Rosinha tinha razão! Eu precisava entrar na tal
de nova era pra descobrir essa lacuna na minha vida
e porque me sentia tantas vezes tão vazio e sem
sentido. Nesse instante o pai de santo gay levantou
a mão e pediu licença para falar.
"Eu quero contar minha jornada ao tunel do inconsciente",
disse com força na voz. Bem, ele não tinha
voz assim efeminada, pelo contrário, tinha uma
voz forte bem de macho. Vai entender.
"Eu entrei no túnel e logo veio um leão
se aproximando. O leão era enorme, com sua juba
dourada pelos raios do sol. Chegou perto de mim e disse:
sou o leão que te acompanha, sempre lutarei por
você contra seus inimigos, sempre o deixarei forte
e poderoso. Agradeci a ele por ser meu companheiro e
lhe perguntei o nome. Buguiu N’agun Dalelê,
disse ele, que quer dizer ‘poderoso rei das savanas’"
Agora foi demais! O cara é o maior viadinho,
mesmo com essa aparência de macho e esse cavanhaquinho
de personagem de novela. Não engana ninguém.
Pô, o animal do cara é um baita leãozão!
Como pode? Eu que sigo minha vida direitinho, respeito
minha Rosinha, cuido dos meus filhos, trabalho feito
uma mula para dar de comer a eles, nem perto do tal
do túnel cheguei? Caramba, tá me dando
a maior frustração essa situação.
Será que por não ser sofisticado como
esse povo todo eu não mereço encontrar
meu animalzinho? O do cara é um leão que
fala e até tem nome! Caramba!
Nesse instante o Mr. Hi interrompeu minhas lamentações
mentais dizendo:
"Meu caro Querubim! Que belo animal você
tem! Ele te protegera e te acompanhará em sua
caminhada pelas savanas da vida"
E eu pensei, ah! Querubim! Vê se pode. O nome
de guerreiro do cara é nome de anjinho, ah! Esse
não engana ninguém. Se o pessoal da firma
estivesse aqui iam cair matando tirando o sarro dele.
Viado eles não perdoam.
Então, depois de mais umas 3 ou 4 jornadas maravilhosas
por lugares fantásticos e , que nem se fosse
para imaginar o tempo que tivemos daria, o Mr. Hi virou-se
pra mim e disse:
"And You, Mr. Bocó?" e mais uns trecos
que a tradutora traduziu, sobre eu contar minha jornada.
Eu fiquei entre mentir e inventar uma historia bem
mirabolante como as que tinha ouvido, ou dizer a verdade.
Bem, achei melhor dizer a verdade, pois se eu não
tinha conseguido nem achar a caverna talvez a incompetencia
não fosse só minha. Talvez o tempo tenha
sido curto demais, ou talvez ele não tenha batido
direitinho no tambor, quem sabe?
QUARTA
PARTE:
Encontro com meu animal
de poder, finalmente!
Falei que não tinha conseguido
encontrar a boca da caverna do inconsciente ou seja
lá o que for. Mr. Hi se mostrou preocupado e
atento e me mandou deitar no chão e relaxar.
Pediu para que todos os outros fizessem um circulo em
volta de mim e ficassem me mandando sua energia com
as mãos.
Disse que o primeiro animal que eu encontrasse seria
meu animal de poder. Garantiu que ele estava esperando
por mim em algum ponto do caminho, para eu não
ter medo, para eu acreditar, etc, etc.
Deitei e vi aquele povo todo com as mãos apontadas
para mim tremelicando os dedos. Achei engraçado.
Aprendi, eu acho, que é assim que se faz para
passar energia com as mãos. Achei interessante
que todos eles já pareciam saber como era isso.
Relaxei o quanto pude com aquele bando de gente fazendo
cócegas à distancia em mim e, ouvindo
o tam tam do tambor do xamã. Me imaginei caminhando
pela floresta e realmente encontrei a entrada de um
buraco. Entrei lá e estava tudo escuro. Não
tinha flor nem nada. Fui andando e meus olhos se acostumaram
com a escuridão. Parece que andei uma eternidade
e nada de animal nenhum aparecer.
Depois do que pareciam séculos, logo em seguida
a uma curva do tunel que não tinha nada nem de
bonito e nem de engraçado, era só um buraco
na terra, dei de cara com, bem, vocês não
imaginam com o que!
Uma barata enorme! Daquelas marronzonas e pata cheia
de espetinho. Das bitelas mesmo. Nunca tinha visto uma
tão grande.
A barata me olhou e eu olhei para ela. Nem sei se aquilo
eram olhos, mas achei que eram. As antenas mexendo de
um lado para o outro sem parar. Fiquei com nojo do bicho,
fiquei com medo também, mas principalmente, fiquei
apavorado de imaginar que aquela coisa era meu animal
de poder.
Todo mundo tinha tigre, águia, leopardos, leões,
só animais bonitões. Bem, uma barata já
era demais pra mim. Até anta servia. Mas barata?
Santo Samsa!
Mr. Hi interrompeu o toque do tambor e mandou eu voltar.
Eu sai daquele estado e fui me sentando. Todo mundo
em volta de mim esperando para saber o que o Bocó
tinha para dizer.
Eu não disse nada. Fiquei com a maior vergonha
de dizer que meu animal de poder era uma barata! E uma
barata que nem falava comigo, só ficava mexendo
as anteninhas.
Mr. Hi ficou olhando com seu olhar penetrante, me esperando
revelar o que eu experimentei em minha jornada. Eu via
centenas de olhos me olhando, parecia que o mundo inteiro
estava me esperando revelar um segredo. Todos os outros
aprendizes de xamã olhavam meio que avidamente
para mim esperando, esperando... e eu ficando agoniado.
Uma barata? Que nojo.
Estava tentando me desconcentrar. Só pensava
em como desaparecer daquele lugar, cheguei a me imaginar
entrando pelo ralo e sumindo no esgoto, cheguei a pedir
socorro pra tal barata de poder ou sei lá o que.
Bem, até que fazia sentido uma barata nessa coisa
de sumir pelo buraco escuro da vida... to até
ficando poético. Meu Deus!
Nesse instante, entre a imagem de uma caminhada pelos
túneis do esgoto de mãos dadas com a barata
e o sentimento de imensa vergonha de ter um animal de
poder que nem ao menos falava comigo como os outros,
Mr. Hi me tocou no ombro e disse: "You are with
the spiriti of ISHINAYA in yourself!".
Bem, eu só ouvi o Ishinaya, seja lá que
espirito for esse e na hora, por puro reflexo gritei:
Saúde!
Caramba! Acho que não estava nos meus melhores
dias. Foi uma gargalhada só. Puxa vida, como
é que eu ia saber? Parece que todo mundo sabia
o que era ter o espírito da tal Ishnaya, menos
eu. Que fora! Mais um.
Fiquei mais enrolado ainda, mas até que foi
bom ter acontecido isso, porque ficou mais fácil
no meio das gargalhadas dizer que meu animal de poder
era uma barata.
E atendendo o apelo de Mr. Hi, que estava muito sério
e não riu nem um pouco, até mesmo porque
acho que não entendeu o meu "saúde",
disse novamente "Let’s go Mr. Bocó!",
assim meio seco.
Uma barata! Falei, quase gritando, quase chorando,
e aconteceu algo que não me surpreendeu nem um
pouco: outra onda de gargalhadas insuportáveis.
Mr. Hi fingiu que nem ouviu as risadas. Depois de disfarçar
a cara de perplexidade que ficou estampada e que me
lembrarei para sempre, começou a falar. A tradutora
teve que engolir o riso e traduzir o que ele dizia,
entre um soluço e outro, com lágrimas
nos olhos de tanto rir.
"It’s a straordinary and powerfull guide.
The Cockroach!", ou seja, "É um extraordinário
e poderoso guia. A Barata!", e prosseguiu dizendo
que eu era um privilegiado de ter um animal de poder
tão raro e especial assim. Que a barata me conduziria
para o mundo subterrâneo sempre que eu precisasse,
que com o poder da barata (minha barata!) eu iria a
lugares onde nenhum homem foi e mais um monte de
coisas especiais e interessantes que faziam valer a
pena ter a barata como um animal de poder.
Olhei para o povo só pra ter o gostinho de ver
o olhar de inveja deles. Tomou? Esses abestalhados que
se acham melhores que os outros nem sabem ou que perderam,
ou melhor, sabem agora. Eles só tem águias,
leopardos e esses bichos comuns que só conhecem
assistindo o mundo animal na tv a cabo.
Eu tenho uma barata!
Mr. Hi conhece seu oficio. Me convenceu direitinho
que eu levava vantagem em ter uma barata comigo o resto
da vida. Fiquei satisfeito e de alma lavada depois de
tanta gozação pro meu lado. Esse homem
é um sábio!
QUINTA
PARTE:
O Encerramento do Workshop
Depois de três dias e noites inteiros
de muitas vivências e experimentações
xamânicas com nossos animais de poder, e depois
de muitas viagens ao túnel do inconsciente, quando
descobri que algumas daquelas pessoas tinham nos seus
túneis verdadeiras "Disneyword" e outras
um shopping center completo com floricultura, area de
serviços e lazer e cinco salas de cinema e tudo
mais que tinham direito, enquanto meu túnel era
sempre pura e simplesmente um túnel, digno de
uma simples e prosaica barata, chegou enfim o momento
do grande encerramento do nosso workshop de xamanismo.
Até então, o grande momento do workshop,
fora o primeiro e emocionante encontro com o animal
de poder, foi a experiencia de vivenciar a própria
morte.
Ficamos todos mortos no caixão, imaginando nossos
parentes e amigos se despedindo da gente. Foi muito
emocionante. Pena que depois de uns 10 minutinhos de
vivência, ou de mortência, Mr. Hi interrompeu
as batidas no tambor e consequentemente nosso exercício.
Tivemos que ressuscitar todos rapidinho porque senão
não daria tempo de seguir o programa completo,
e ainda mais estávamos perto da hora do almoço.
Uma pena.
Mas voltemos ao "grand finale".
Faríamos a dança circular sagrada no
estilo escocês, coisa que achei meio estranha
pra um curso de xamanismo, mas parece que Mr. Hi tinha
um convênio com não sei que instituição
da escócia e daí era assim que tinha que
ser. Ele dançou alguns passos girando e mostrou
pra gente como deveriamos dançar.
A dança circular sagrada seria feita em torno
da fogueira sagrada, de acordo com o modelo de dança
dos pagés e morubixabas de algumas tribos, também
comuns em workshops urbanos, segundo ouvi dizer, e que
rendem uma boa grana para alguns indios de plantão.
A "dança circular sagrada escocêsa"
em volta da fogueira sagrada kaiakangue" seria
feita com a incorporação dos animais sagrados
de cada um de nós. Haja sagrado!
Mr. Hi jogou algumas ervas sagradas e uns pozinhos
sagrados para consagrar a fogueira sagrada (ai!) e começou
a dança. Tamborzinho batendo cada vez mais rapido
e furioso, conduzindo todos nós para o êxtase
apoteótico, como convém a um workshop
desse nível.
Dancei até! Cada um fazia o barulho do seu animal
de poder. Ouvia-se urros, trinados, estrilos, grunhidos
e eu com minha baratinha só podia fazer "tlec,
tlec, tlec" que é o único barulho
que conheço da barata.
Me chamou a atenção a dança da
Fada Sussurrante, uma mulher pernambucana, esposa de
um deputado, que vivia de fazer vivências e workshops
por todo país às custas da grana do contribuinte.
Ela era bastante presunçosa e autoritária,
não tinha nada de fada e muito menos de sussurrante,
tratava os funcionários da pousada, inclusive
Shandranua, como escravos, aos berros, só faltava
bater neles. Ela foi a que mais reclamou, aliás,
reclamou o tempo todo de tudo, do tempo, das instalações,
do banheiro, da água, da comida e principalmente
do fato do celular não pegar na pousada.
Seu animal de poder era uma serpente que fazia "fizzzzz,
fizzzzz, fizzzz" o temo todo, e ela ficava fazendo
com a mãozinha como se fosse uma Cleopatra, ao
mesmo tempo que empurrava as pessoas para longe dela,
pois precisava de todo espaço do mundo e dizia
" sssai , sssssai, sssai de perto" com sua
voz sibilante de jararaca do norte.
Depois de dançarmos um bocado e estarmos todos
suados e bem fedidos teve o tal do abraço ritualistico
sagrado final.
Tinhamos que nos abraçar um por um para consagrar
(de novo) o momento, a coisa era mais ou menos assim:
Cada um ficava parado em frente ao outro, olhava com
um olhar bem new age, meio olhar de golfinho misturado
com olhar de vaca tonta, daí se aproximavam em
camera lenta um do outro com um sorriso também
new age nos lábios, meio estilo vegetariano,
e se abraçavam. Daí um deitava a cabeça
no ombro do outro e dava uns dois ou três tapinhas
nas costas para consagrar o abraço, quase igual
advogado faz quando cumprimenta de algum parente de
cliente importante em velório da família,
claro que advogado não deita a cabeça
no ombro do colega.
O pior é que estávamos todos muito suados
e grudentos de tanto dançar a dança circular
sagrada escocesa em volta da fogueira sagrada kaiakangue,
e alguns com um cheiro um tanto intenso, talvez por
causa do animal de poder. Achei que essa foi a pior
parte do workshop, a mais melequenta pelo menos.
Depois de um banho e o inevitável amasso de
despedida com a Shandranua, que é da Silva, viemos
todos embora.
Enfim, termino aqui o meu relato, o depoimento do momento
que transformou minha vida e me incluiu na nova era
e me tornou um verdadeiro xamã. O pessoal lá
da firma vai se morder de inveja.
Serei o primeiro auxiliar de contas a pagar xamã
do mundo!
E finalmente Rosinha ia me olhar com mais respeito
e admiração.
O que a gente não faz pela mulher que ama hein?
EPÍLOGO
Mr. Bocó chega em casa, um pouco cansado de
um final de semana de atividades intensas e inéditas
pra ele, além da viagem expremido dentro de uma
Van.
Rosinha o recebe com um abraço e um beijinho,
as crianças saltitantes e felizes com a volta
do pai.
Chamou a atenção de Rosinha o novo modo
de usar a gravata de seu marido, amarrada na testa.
Ficou meio um neo hippie, mas ela gostou.
Depois de um breve e resumido relato em volta de uma
pizza new age que a Rosinha fez especialmente para a
volta do marido, ela lhe pergunta qual é afinal
seu animal de poder.
"The Cockroach" ele responde. Ela e as crianças
perguntam o que é isso, que bicho é esse
e ele diz : " é um poderoso animal de poder,
e não encham mais o saco que não quero
falar nisso, animal de poder é coisa meio secreta".
Elas percebem que é melhor não insistir
senão ele vai ter um de seus ataques de chatice
e mal humor, afinal é um marido e os maridos
são todos mais ou menos assim.
Todos se encaminham para a sala para assistir TV, e
nesse momento mr. Bocó se lembra de uma outra
coisa.
Interrompe a familia e fala com voz forte, anunciando
algo bem importante, todos mais ou menos atentos, mas
com um dos ouvidos já conectados na voz do Faustão
apresentando suas pegadinhas na TV.
"Eu tenho incorporado em mim o espírito
de ISHNAYA!" diz com voz tonitroante.
O que se ouve então, quase gritado por três
bocas simultaneamente é um sonoro, simultâneo
e espontâneo...
SAÚDE!
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