Decididamente,
é desanimador — para dizer o menos —
ver Wilson envolto nessa fumaça fria, irreal
de filme de terror, reclinado na cama do hospital com
um tubo enfiado no nariz. O olhar súplice, os
lábios arqueados e sem cor e uma desoladora mudez
me causam a estranha impressão de estar diante
de um retrato, máscara emaciada e espectral a
fitar-me do fundo apergaminhado de um grotesco passaporte,
um visto para o outro mundo. Fujo do quarto, indiferente
ao que venham a pensar sobre minha deserção.
Azar, não posso fazer nada mesmo — os médicos
('o caranguejo é inclemente com quem fuma demais',
disseram) já passaram a bola para o Divino Humorista.
Trago, porém, a consciência tranqüila,
pois sempre lhe tive apreço e o demonstrei em
vida nas muitas vezes em que precisou de mim, como nesse
recente e fatídico janeiro de 1985, quando, em
meio ao aguaceiro que quase sepultou a cidade, pediu-me
para acompanhá-lo ao cemitério do Caju.
Não lhe exigi explicações, nem
indaguei os motivos. Simplesmente, fui: amigo é
assim. Confesso, no entanto, que fiquei abismado ao
vê-lo aproximar-se de um jazigo, conferir cuidadosamente
os dados transcritos na pedra e despejar uma escarrada
pegajosa sobre o nome do morto. A baba ainda pendia
de uma letra de metal gravada no mármore negro,
quando saímos dali, eu impressionado com tamanho
destempero. Confiou-me — a mim, companheiro fiel
de longos invernos — o segredo guardado havia
um quarto de século: com três anos de casados,
a mulher o traíra com aquele cafajeste. Esperou
mais vinte para se vingar. No dia anterior, lendo o
obituário do jornal, dera com o nome do canalha
num anúncio de sétimo dia. Os três
haviam sido colegas na Receita Federal, saíam
juntos, divertiam-se e, como sucede desde que o mundo
é mundo, ele só foi perceber o arranjo
ao surpreendê-los em comprometedora camaradagem
na biblioteca do prédio onde trabalhavam. Deu
meia dúzia de sopapos na mulher (do rival, evitou
aproximar-se; o homem era remador do Flamengo e notório
arruaceiro), dormiu alguns dias no sofá da sala
e, como a adúltera se fizera humilde e tivesse
pedido transferência para longe da sede, acabou
por se conformar. Não que lhe houvessse perdoado,
mas tinham dois filhos para criar (imaginei que pelo
menos um poderia não ser seu, mas calei-me),
o sogro contribuía substancialmente para as despesas
da casa e, enfim, o tempo é bom conselheiro e
vai arrumando as coisas a seu modo. Tudo isso, soube-o
no botequim para onde arrastei o desventurado homem
das guampas, após derrubarmos incontáveis
doses de conhaque. Desde rapazes, no colégio,
fui seu confessor secular. A aventura mais banal que
protagonizasse, num desvão sórdido de
um beco escuro qualquer, rendia um minucioso relatório,
saboreado entre goles de cerveja e comentários
irreverentes ou pretensiosos, a depender da disposição
de ânimo de cada um. Tais confidências constituíam,
a bem dizer, o prazer mais significativo que aqueles
duvidosos sucessos lhe davam. Quantas vigílias
penei aguardando o regresso do bravo guerreiro. Embora
tenha tido a delicadeza de disfarçar, senti-me
ultrajado com a desfaçatez: esconder de mim,
seu melhor amigo, confidente exclusivo um drama pungente,
um segredo cabeludo daqueles. E quis saber mais; exigi
detalhes, se possível, escabrosos. Descompus
o galã, como se fosse eu o marido enganado (na
verdade, me intrigava o fato de um atleta bem-parecido
como o falecido se interessar por uma saloia gordalhufa
— ali tinha mistério, e eu ansiava por
conhecer as motivações de tão implausível
parceria). Ele deve ter notado algo de estranho no meu
entusiasmo, pois interrompeu as lamúrias e passou
a se desculpar pelo que chamou de 'deslealdade com o
irmão camarada'. Talvez à guisa de compensação,
narrou-me outra façanha de arrepiar os cabelos,
que eu também ignorava. Não só
ignorava, como jamais poderia supor perpetrada por um
camisolão, um canastrão inofensivo como
Wilson, mas que, segundo ele, contribuíra para
amenizar sua dor de chifres: durante cinco anos, mantivera
íntimas relações com uma criatura
que conhecera num barzinho de Copacabana, num fim de
tarde, durante uma rodada de chope com um cliente do
interior, a quem mostrava os encantos da Zona Sul, na
esperança de empurrar-lhe uns cortes de casemira
encalhados por conta da canícula carioca. A moça
se chamava Elis e era clara, mais pra cheinha, de cabelos
negros, olhar brejeiro e jeitinho descontraído.
Quando Wilson abordou-a, notou que, ao sorrir, aparecia-lhe
um dente de ouro no lugar de um dos pré-molares.
Mostrou-se simpática, disse ter vinte e três
anos de idade e que esperava alguém, um senhor
que talvez não gostasse de vê-lo à
sua mesa: 'deixe o telefone que eu ligo depois'. Wilson
dispensou o cliente, providenciou-lhe um táxi
e ficou bestando pelas redondezas, cogitando se se tratava
de uma profissional. 'Vi chegar o felizardo, um mulato
forte com bigodes e uma cabeleira que lembravam Dorival
Caymmi; poderia ter a minha idade, um pouco mais. Quando
saíram, aguardei dez minutos e me mandei também'.
Três dias depois, como a garota não telefonasse,
Wilson voltou ao bar e deparou-se com ela instalada
no mesmo posto. Desta vez, foi mais receptiva: o amigo
avisara por telefone que ficaria retido no trabalho
até mais tarde e pedira que ela não o
esperasse. De modo que poderiam conversar com calma,
conhecerem-se melhor. Wilson sentiu-se à vontade,
riu, contou piadas, fez-se íntimo, chamou o outro
de 'Caymmi', tomou uísque, contrariando seus
hábitos, e, desinibido (normalmente, era um bicho-do-mato,
acanhado, inábil no trato com mulheres), tomou
coragem e jurou que era tarado por ela: 'no dia de nosso
primeiro encontro, cheguei em casa e não resisti;
fui pro banheiro e fiz um negócio lá,
pensando em você'. Ela quis saber o que a esposa
achava disso e ele respondeu que pouco se importava,
já que não tinha mais nada com ela na
cama. Procurou, ávido, a mão da garota,
acariciou-a, muito terno, muito comovido. Elis não
se fez de rogada e cochichou-lhe, sapeca: 'Hoje, você
não vai precisar fazer bobagem sozinho'. Isso,
dito assim de chofre, causou fortíssimo efeito
naquele homem permeável, sempre descontente consigo
mesmo. A revelação equivaleu a uma epifania.
É importante acrescentar que, a par da timidez,
Wilson era feio, acinzentado como o sujeito do anúncio
de remédio contra a asma, com um bigodinho escroto,
o cabelo crespo, que vinha quase até as sobrancelhas,
e, pra mal dos pecados, mirrado e pisando pra dentro
que nem papagaio. Tais atributos, mais a absoluta falta
de iniciativa e nenhum poder de observação,
definitivamente não o credenciavam a conquistador.
Longe disso, recalcavam nele um invencível complexo
de inferioridade. Às vezes, supondo vingar-se
da esposa e por necessidade de desafogo, pagava a uma
aventureira qualquer que nem lhe dizia o nome. Daí,
a receptividade de Elis — que se esmerou em agradar-lhe
ao máximo no motel a que foram em seguida ao
encontro — tê-lo enchido de arroubos juvenis,
de esperança de ter, finalmente, encontrado uma
parceira compatível com seus ideais românticos,
que teimava em cultivar, pouco se lixando para o físico
desfavorável. O fato é que se impunha
preservar, a qualquer custo, o tesouro que lhe caíra
nas mãos. E toca a presenteá-la, mimá-la,
habituá-la mal. Elis o recompensava com dengos
que ele jamais experimentara (a mulher oficial, mesmo
nos tempos de namoro e durante a lua-de-mel, tinha se
portado de forma indiferente, antipática até,
se ele sugeria um carinho diferente). No início
do relacionamento, Wilson e Elis buscavam-se com freqüência;
em horários diurnos, pois ele, afinal de contas,
era homem casado e ela, de certo modo, tinha obrigações
com seu antigo protetor (por esse tempo, o tipo andava
sumido do cenário), a quem chamavam de 'Caymmi
pra cá', 'Caymmi pra lá', muito cúmplices,
muito safados. Eram escapadas a Paquetá, com
direito a charrete, de mãos dadas como namorados,
passeios furtivos ao Recreio dos Bandeirantes, uma visita
ao Pão de Açucar, que ele — nascido
em Botafogo — só conhecia de vista, tudo
entremeado com longas e românticas matinês
em motéis. Os cuidados de Elis para fisgar o
novo admirador levaram-na a metê-lo casa a dentro,
em intimidade com seus guardados; com o filho, produto
de um mau-passo precoce: um pirralho com o nariz permanentemente
a escorrer, que insistia em esfregar nas calças
do novo patrono. E tome beijos melosos, telegramas no
aniversário, bilhetinhos piegas redigidos com
letra aperfeiçoada em cadernos de caligrafia,
num português hediondo. Tudo isso parecia adorável
a Wilson, e seu coração cada vez mais
fugia para ela. Foi um período único em
sua vida; sentia emoções novas, e os conhecidos
diziam de seu constante sorriso, que ele 'andava abobalhado'.
Retribuía aqueles cuidados surpreendendo-a com
sortidas e generosas sacolas de mantimentos, que mandava
entregar na residência da amada, perfumes franceses,
ricos calçados, que escolhiam qual pombinhos
arrulhando nos sofanetes das sapatarias, as pernas bem
coladas. Eventualmente, corria a afagá-la com
uma lembrancinha especial, se a notava amuada. Sim,
porque o namoro já durava, então, três
anos, e ela começava a alternar reações
de júbilo com longos silêncios que não
sabia explicar, apesar do desvelo permanente de Wilson.
Tinha mesmo, por vezes, palavras rudes e impacientava-se
com seu assédio. Uma tarde, no motel, nem bem
haviam entrado, ela pôs-se a xingar baixinho,
lamentar que 'tava farta daquela vida', e pedira, por
telefone, um táxi, abandonando-o, de cuecas,
no quarto, não sem antes reclamar o dinheiro
da corrida, que 'era só o que faltava ela ter
que pagar pelos sacrifícios que fazia para agradar-lhe'.
Um pouco mais e já não conseguia disfarçar
o desinteresse, quase a dizer que nunca tivera desejo;
jamais sentira coisa alguma; que lhe dera o corpo, mas
não o coração; que suportara tudo
porque precisava de ajuda financeira, mas que não
dava para tolerar por muito tempo um homem pegajoso,
molenga e fácil, ainda que isso lhe custasse
o precioso auxílio. A resistência dela
a um aconchego mais intenso já ameaçava
tornar-se ridícula. Só Wilson não
queria ver. Desprezado, tentava compensar com mais presentinhos,
agrados ... mas, que diabo! Tinha um emprego bom, porém
era assalariado. Havia, por certo, restrições
a considerar e obrigações em casa, também:
três bocas a sustentar; sem falar que as dívidas
cresciam assustadoramente. À noite, trancado
no banheiro, o eterno cigarrinho no canto da boca, buscava
explicações para aqueles humores, senão
uma inspiração para reconquistar sua Elisinha.
Fez-lhe versos, que ela esqueceu sobre o balcão
da Slopper, emburrada por causa de uma bijuteria que
julgou uma afronta a seu bom-gosto. Mais de uma vez,
deu-lhe dinheiro vivo, que ela atirou na bolsa sem dizer
sequer uma palavra de agradecimento. Fugia, faltava
aos encontros, não respondia aos recados. Uma
tarde, vira-a, muito serelepe, de braços dados
com um rapagão: 'É o primo Betinho, da
Bahia — disse ela depois —; tá de
passagem pra São Paulo'. E veio o pior, o golpe
mortal: Elis fez questão de revelar que jamais
deixara de se encontrar com Caymmi (isso explicava a
ansiedade que demonstrava em certas ocasiões;
a pressa em livrar-se dele; as simulações
mal representadas, que ele preferia não notar).
Durante algum tempo, ela conduzira sua dupla militância
com alguma habilidade. Agora, resolvera hostilizá-lo
de vez, pois atrapalhava os novos planos. Wilson queixou-se
daquele desprezo brutal; o que fizera ele de errado?
Quis saber se era um rompimento definitivo. Portava-se
como um pedinte e como tal foi escorraçado. Elis
escancarou: Caymmi tinha experimentado dificuldades
em seu comércio, mas tudo voltara ao nomal e
ele queria seu brinquedo de volta e com exclusividade.
E, como não se importava em colaborar, não
tinha família e sobrava dinheiro no fim do mês,
a coisa se arranjava assim dali em diante. Wilson que
acatasse a decisão: não tinha saída.
Um belo dia, veio a pá de cal: após vários
plantões infrutíferos na esquina da rua
onde morava a ex-amante, Wilson decide dar uma incerta
no barzinho de Copacabana e a vê de chamegos com
Caymmi. Ao reparar na presença do intruso, o
mulatão mete-lhe o dedo no nariz e ameaça:
'Se incomodar de novo minha amiga, vai apanhar muito
nessa cara de lambisgóia. Você parece doente,
ô nanico! Procura um médico pra curar esse
teu mau hálito, ô muquirana!'. O coitado
saiu dali mudo, com o rabo entre as pernas ... Achei
aquilo torpe, humilhante, e odiei o boçalão.
Wilson, após longo silêncio, pediu outro
conhaque, acendeu um cigarro e continuou: 'Você
percebe como durante todo o tempo eu dividia os favores
da sirigaita com o cara, sem que ele tivesse o compromisso
de financiá-la? Quem sabe o garotão, o
tal primo da Bahia, outros mais comessem na mesma gamela?
Eu, o mantenedor-chifrudo fui sempre o traído.
Ela só queria o meu patrocínio. Era corno
pela segunda vez ... um cinqüentão, mais
velho do que eu. Nunca deixei de ser corno. É
minha vocação: ser um corno reles! Meu
amigo, as mulheres são impiedosas! Essa piranha,
mais do que minha mulher oficial, me deu esperanças
e me iludiu. A lembrança do que foi e a ilusão
do que poderia ter sido mas não foi, deixaram
em mim um gosto de fel. Também, hoje, pouco me
interessa. Meu câncer de pulmão tá
bem adiantadinho, o sacana. Os médicos me dão,
no máximo, seis meses: é aguardar mais
um pouco e me livro dessa raça. Pelo menos essa
informação te dou em primeira mão
... tava te devendo. Peço perdão por ter
escondido as outras coisas; você não merece
que eu te magoe. No mais, que se dane. Só lamento
não estar por aí quando o cabeça-branca
bater as botas. Vou embarcar antes, senão iria
lá cuspir na cova do filho-da-mãe'. Ainda
pensei em dizer a Wilson que esse negócio de
amor cego, paixão, etc ... é tudo conversa
fiada. Essas coisas não passam de atividades
cerebrais e alterações do fluxo sangüíneo.
Às vezes depende também de quanto o cara
bebeu. Pensei, mas não disse ... não tenho
certeza de mais nada. Resolvi, isto sim, pedir a conta.
Deixamos o bar à noitinha, bem chumbados. Os
intermináveis cigarros e a umidade faziam Wilson
tossir que nem um condenado. Deixei-o em frente a sua
casa e fui cozer minha própria carraspana. Faz
dois meses que tivemos esse encontro. Viajei a negócios
e não nos vimos desde então. Agora, aqui
nesta casa de saúde, que se pretende de Primeiro
Mundo, neste spa de araque (não sei a quem querem
enganar com essa musiquinha intolerável e tão
insultante assepsia), é impossível evitar
o pensamento cruel, a aflitiva constatação
de que Wilson se deu mal com a patroa, se deu mal com
a amante, com o cigarro e com a vida. E, se é
bastante provável — como querem os médicos
— que o cigarro tenha dado cabo de seus pulmões,
também é lícito suspeitar que outros
fatores igualmente perniciosos e traiçoeiros
tenham contribuído para eliminá-lo da
face da Terra, não se podendo excluir o firme
pressuposto — como sentenciou Wilson — de
que as mulheres são realmente impiedosas.
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