velhotes portando suíças até o
meio das bochechas, encontradiços nos filmes
de faroeste, apregoando as virtudes de algum bálsamo
milagroso, encarapitados numa carroça mambembe
atulhada de quinquilharias penduricadas por todos os
cantos.
A geringonça do nosso herói, mais atrapalhada
do que o abecedário chinês, consistia numa
imensa caixa de madeira acoplada a um burro sem rabo,
transportada pra cá e pra lá com surpreendente
mobilidade, se considerado o porte franzino de seu condutor.
Servia, a um só tempo, de almoxarifado e moradia
a esse provecto nômade, tipo amulatado, com um
carão crestado, crivado de bexigas, óculos
grossos sem aro e uma voz estridente e desagradável,
que anunciava suas bugigangas por meio de um arremedo
de megafone que lhe potencializava o timbre argentino.
Não obstante as minguadas possibilidades de tão
precário equipamento sair da mudez a que parecia
confinado, o som do instrumento, dados o silêncio
e a serenidade reinantes nos arredores, assumia as proporções
sublimes da trombeta que, no dia do juízo final,
haverá de acordar os mortos para comparecerem
diante de Deus.
Por insistência do Cizoca, o locutor repetiu o
aviso:
- Encontra-se perdido nesta praça o menor Elísio
Castelo Branco, trajando vistosa marinheira azul-clara,
de calças curtas e uma gorrinha de veludo com
um pompom vermelho. Pede-se a quem o localizar o favor
de conduzi-lo até este estabelecimento, onde
a família aguarda ansiosa.
Espalhou, assim, aos quatro ventos as peraltices do
jovem Elísio, que surgiu esbaforido, cinco minutos
depois (os gaiatos à espreita), transmudado num
sessentão metido em colete e terno de casimira
escura e um baita guarda-chuva de castão e osso,
ameaçadoramente apontado para a cara do famoso
arauto, esgoelando-se convulso, abandonando a sobriedade
habitual e o fraseado escorreito que o alçaram
um dia à condição de líder
e porta-voz da comunidade:
- Meu amigo! Elísio Castelo Branco sou eu. Veja
se me dou ao desfrute de usar marinheiras, ainda mais
de calças curtas, eu que jamais saí de
minha casa sem paletó e gravata. Marinheira,
meu senhor! ... pompom ... é a puta que o pariu!
Teve que ser contido pelos mesmos marotos que lhe prepararam
a troça e levado a refrescar-se e descansar na
Bibi, na esquina da Bartolomeu Mitre, ponto de encontro
dos integrantes das corriolas das redondezas que lá,
em agitados contubérnios, proclamavam seus ardores,
confessavam seus fracassos e solucionavam suas contendas,
tudo culminando, sempre em redentoras carraspanas. Saudosa
Bibi, que deu origem ao Luna, que nada tinha nem teve
a ver com um outro Luna, surgido muitos anos mais tarde,
reduto de intelectuais e sua tripulação
de cumprimenteiros, estranhos ao bairro.
Pois foi ali, naquela mesma tarde-noite, já refrescado
e aquietado, que o bom Elísio, após longas
negociações em que foram destacados seus
dotes notáveis de orador (Tirolo chegou, mesmo,
a compará-lo a Cícero e Juvenal), aceitou
assumir "seus deveres para com o País"
e consentiu em ser lançado candidato a presidente
da República, adiantando, imediatamente seu programa
de "ordem, moralidade e economia" para fazer
frente à "dolorosa evidência de nossa
decadência social", numa coligação
estapafúrdia com um braço do partido rival,
liderado pelo Hélio - este, sim, efetivamente
candidato a vereador - , dono do parque de diversões
situado no extremo oposto da praça, num terreno
que servira, antes, de pasto para os cavalos de aluguel
utilizados nas domingueiras do Jardim de Alá
e, às vezes, pela rapaziada, em páreos
noturnos, disputados nas redondezas. Contribuiu, deveras,
para a histórica decisão o entusiasmo
de Tirolo e Porfírio que, recém-chegados
de São Paulo, garantiram que "a Presidente
Dutra estava tomada de faixas conclamando o povo a sufragá-lo".
No dia seguinte, Hélio, num reluzente Packard
Clipper conversível, levou seu Elísio
- muito garboso, ajanotado - a passear pela Lagoa para
verem a monumental faixa que os malandros fixaram no
Corte do Cantagalo, ao lado de um reclame de Urotropina,
recomendando:
"Para
Presidente da República, Elísio Castelo
Branco
Para Vice-Presidente, Amado Benigno".
Exultante,
o velho teceu loas ao companheiro de chapa e fez um
sincero e veemente comentário:
- Menino! Estou articulando para que você saia
deputado pelo Distrito Federal, e, quando eu estiver
no Palácio, haveremos de pôr um freio definitivo
nesse getulismo depravado.
Esse íntegro cidadão, honrado trabalhador,
escrupuloso chefe de família, laborioso dirigente
da Liga Esportiva do Leblon, embicava então,
definitiva e desafortunadamente, ladeira abaixo, no
rumo dos inevitáveis contratempos que a velhice
reserva para a maioria dos que chegam lá. As
páginas de seu livro só podiam, agora,
ser marcadas com a orelha de trás. Lamentavelmente,
não somos como os chineses, que cumulam os idosos
de respeito, sem o que a velhice é, de fato,
uma imitação irrisória da vida.
Já o funambulesco entreteneur adotou em sua campanha
para vereador um slogan pitoresco, de fazer inveja aos
enéias atuais; sugestivo, esclarecedor, parecia
reproduzir o mecanismo das maquinetas e engrenagens
que moviam o seu parquinho:
"Hélio Lourenço Dias, o homem não
pára!"
Com efeito, não parava ... de bolinar as empregadinhas
que freqüentavam a espelunca, lá deixando
seus parcos tostões, amealhados à custa
de muita labuta, nas batotas armadas naquela mescla
de circo, quermesse e bazar de prendas, batizada pomposamente
de "Parque Shangai". Nem ele, nem a rapaziada
que lá ia com o mesmo propósito, aproveitando-se
da aglomeração, num tempo magro de gozos
dessa natureza e rico de platonismos alados, diáfanos,
em que, a bem da verdade, a gente matava cachorro a
grito.
O fato é que o homem não parou, nem estacionou,
que não é a mesma coisa, mas faz o mesmo
efeito. Simplesmente morreu de um ataque cardíaco,
resultado, quem sabe, de seus arroubos lascivos, que
não faziam dele pior ou melhor do que qualquer
um de nós.
De modo que não se elegeu; nem ele, nem o nobre
Elísio, e ali se esgotou a vertente política
da fauna que povoava a pracinha. Esta, penso hoje, bem
poderia chamar-se "Campos Helísios",
mais do que um jeu de mots, uma maneira de macaquear
o logradouro congênere da Cidade-Luz e, ao mesmo
tempo, prestar uma singela homenagem àquelas
duas singulares personalidades, que só nos proporcionaram
momentos alegres de descontração e camaradagem,
naquele "lugar de delícias".
Mas não era apenas sobre política, gaiatices
e libidinagens que repousavam os suportes lúdicos
e mundanos da nossa deleitável pracinha, que
o ilustre literato português Antero de Quental
honrou com seu nome. Sei de capítulos mais formosos.
De manhã cedinho, a cupidez dos freqüentadores
noturnos do parque era redimida pela inocente algazarra
das crianças, com suas correrias, jogos de bolinha
de gude (búlica, zepelim), a azáfama em
torno do escorrega, do balanço, da gangorra e,
sobretudo - no que toca aos mais crescidinhos - do banho
nos laguinhos. É importante transmitir um pouco
do clima, do aspecto e dos encantos do local, que a
história já vai longa.
Afora as calçadas de cimento que circundavam
a praça e, nos cantos, quatro canteiros gramados,
o amplo terreno restante, em formato de cruz, era de
terra batida, coberta com uma camada leve de areia que
o vento trazia da praia. Umas poucas amendoeiras, o
Criador dispôs de forma tal que não estorvassem
a pelada que comia solta numa das laterais. Na outra,
os pirralhos cavalgavam os aparelhos e andavam de velocípede,
sob o olhar atento das mães e das babás,
estas, por sua vez, na mira dos graúdos. O tesouro
maior eram os laguinhos, aos quais as largas da imaginação
infantil emprestavam vastidões oceânicas,
e toca a mergulhar e a fazer traquinadas que em casa
resultariam em desastres. Periodicamente, a Prefeitura
providenciava uma limpeza para tirar o limo acumulado.
Nesse recesso, a garotada que ainda não podia
ir à praia sozinha, jogava botão, futebol,
o diabo a quatro; diversão não faltava!
E olha que não havia a televisão! Ou,
talvez, por isso mesmo. Esses preciosos lagos, "pélagos
profundos", ficavam junto a dois caramanchões
vazados, uma base de pedra em volta, à guisa
de banco, com o teto parcialmente coberto por uma treliça
na qual se enroscava simpática trepadeira de
pequenas flores de um rosa pálido.
Enfim, éramos venturosos usufrutuários
de uma Shangri-Lá de aventuras e coisas que mais
prazem à idade em que vicejam o frescor e as
esperanças. Destas, a maior parte por lá
ficou, misturada ao suor derramado no bulício
das travessuras e no ardor das porfias olímpicas.
Sim! Tínhamos olimpíadas. Querem ver?
Tirante os esportes de praia e as peladas disputadas
nos incontáveis terrenos baldios e no Campinho,
o grande acontecimento esportivo que motivava a rapaziada
do bairro e congregava uma quantidade respeitável
de espectadores eram as olimpíadas anuais, organizadas
pelo pessoal do Grêmio e do Monte Castelo, que
freqüentava a Bibi. Desportistas notáveis
protagonizavam ferrenhas disputas de atletismo. Faltou,
apenas, um gênio arrebatado que cantasse em epinícios
e odes as formidáveis conquistas daquela juventude
leblonense, como fez Píndaro celebrando desde
as façanhas do menino Asópico de Hormônico,
vencedor em 488 A.C., até a glória de
Hierão de Siracusa, em 472 A.C..
Os dardos eram arremessados de um ponto determinado
na calçada da Av. Ataulfo de Paiva, visando um
quadrado previamente demarcado no chão, um pouco
aquém do caramanchão fronteiro, no qual,
prudentemente, abrigavam-se os juízes e marcadores.
Eram confeccionados com hastes de bambu, terminando
em biqueiras pontiagudas reforçadas com chumbo
e negra e assustadora pregaria, o que lhes conferia
o aspecto sinistro de lanças de guerra. Algum
desavisado que transitasse pelo local e visse o bando
de latagões empunhando, rija e destramente, tais
petrechos de artilharia, julgar-se-ia, talvez, transportado
para o cenário de um encarniçado combate
da lavra de Cecil B. De Mille.
Numa dessas competições em que os ânimos
estavam particularmente acirrados, Ricardo Mariano arrojou
o dardo com tamanho entusiasmo, que a peça sobrevoou
a parte de terra, o laguinho, o caramanchão onde
se protegiam os juízes, ultrapassou a Rua Campos
de Carvalho e foi espatifar a vidraça do escritório
do posto de gasolina, ao lado da casa dos Meiras Vianna,
trazendo sobressalto a essa boa gente e apavorando o
gerente da loja, que manuseava a grossa cheta da féria
do dia anterior e imaginou-se vítima de um assalto.
A programação foi interrompida face à
necessidade de diligências com o proprietário,
que ameaçava chamar a polícia, as forças
armadas e sabe Deus o que mais.
A prova principal do torneio, reservada aos atletas
mais agaloados - o grande tiro de trezentos metros -,
exigia uma volta completa em torno da praça.
Disparado o morteiro Adrianino que determinava a partida,
meia dúzia de robustos galalaus atirava-se em
busca do cobiçado galardão.
Um cão do olho furado, que vivia a dormitar na
calçada da Bibi, animal de origem desconhecida,
com uma corcova que lhe vergava a pata dianteira esquerda,
fazendo-o adernar a bombordo, despertava com a bulha,
arremetia, ladrando furiosamente, no encalço
da trupe, insuflado pelo clamor da platéia e,
mesmo gebo e largando depois, lograva, ano após
ano, superar aqueles vigorosos mancebos, mercê
de uma obstinação só comparável
à de Sísifo.
O certame acabava, inevitavelmente, em alegre pândega,
assistentes e competidores trocando opiniões,
bebendo e rindo muito, servindo-se com intimidade e
lembrando-se de outras patuscadas que compartilharam.
De triste, apenas a constatação da indiferença
de tão célebres quanto insensíveis
guerreiros, incapazes de recompensar a pertinácia
do pobre cão com um mísero osso que fosse;
de laureá-lo pelo brilhante desempenho, pela
surra que pespegara naqueles tratantes recalcados; de
premiá-lo com um naco, ao menos, de um pitéu
qualquer que pudesse roer na solidão do cantinho
a que se recolhia após a retumbante vitória,
melancólico retiro, de onde ouvia resignado o
alarido das comemorações imerecidas e
adivinhava os prazeres da comilança, que, por
justiça, lhe cabiam.
No lusco-fusco do entardecer, casais de namorados revezavam-se
num murinho de esquina, do qual os rapazes baldeavam-se,
mais tarde, para o pátio do posto de gasolina,
com o propósito de bater papo e maquinar as futuras
troças. Mais adiante, em direção
à praia, ainda na Bartolomeu Mitre, junto à
casa do general Matoso Maia, havia um terreno baldio
que serviu de cenário a marcante episódio.
Dito imóvel - como se anota nas escrituras públicas
- confrontava com os fundos de um prédio residencial
da Rua João Lira, no qual, durante algum tempo
morou, em companhia da tia, nossa vice-campeã
Marta Rocha, num apartamento ao rés do chão,
cujos quartos de dormir dispunham de amplas e generosas
janelas.
Seu namorado, Álvaro Piano, ao deixá-la
na porta de casa, esmerava-se nos arremates das despedidas,
prazo suficiente para um batedor previamente escalado
disparar em volta do quarteirão e prevenir a
turma à qual se juntava comitiva vinda do final
do Leblon sob o comando de Boquinha e Almir (irmão
do Cid), permitindo, assim, ao numeroso bando acomodar-se
confortavelmente no muro dos fundos, a tempo de ver
a musa trocar de roupa quase ao alcance da mão.
Numa dessas expedições voyeuristas, aquele
valente oficial superior do Exército brasileiro
que, antes de recolher-se, fazia a ronda de sua cidadela,
fortemente armado, notou o rebuliço e interpelou
os integrantes do regimento. Imediatamente, Carlinhos
adiantou-se e confessou o objetivo da "espinhosa"
missão. O expedito soldado ordenou que suspendessem
momentaneamente a operação, efetuou uma
breve e estratégica retirada até o interior
da casa, trocou as pistolas por um possante binóculo,
e foi juntar-se à tropa.
Lá num domingo ou feriado surgia, por vezes,
um desses trapaceiros sobraçando imponente Bíblia,
tentando vender as excelências de um novo reino
do qual se permitia ser procurador e, naturalmente,
tesoureiro. Alguns lhes atiravam tomates e ovos; outros
acenavam com pescoções. Escorraçados,
revidavam com a ameaça do fogo de mil infernos.
Por via das dúvidas - falhasse o Zippo? - saíam
de fininho e iam pregar em outra freguesia.
Já tínhamos nossos próprios deuses,
ícones e quetais e não precisávamos
que nos viessem empulhar com qualquer tipo de ideologia
eclesiástica ou laical, capitalista ou xiita;
nem explorar a credulidade dos mais ingênuos,
impingindo-lhes a mórbida e detestável
idolatria de fancaria que, aos poucos, todavia, avultou,
tornando-se irresistível, varrendo gangorras,
laguinhos, pracinhas e sonhos, dando lugar a marcas,
entidades, instituições e ídolos
forjados pela classe dominante.
Sólidos valores filosóficos e éticos,
que nutriam o conhecimento humano, derivados de reflexões
e observações - inclusive de conotação
afetiva e impressionista - das coisas simples da vida,
que, bem ou mal, nos legavam seus fundamentos e facultavam-nos
percebê-las e dar-lhes, também, sentido
estético, foram e vêm sendo, aos poucos,
solapados, manietados pela lavagem cerebral promovida
com o insidioso concurso da imprensa "mais vendida",
e tudo se vai tornando fugaz, provisório, moldado
ao sabor da conveniência das tirânicas famiglias,
compilado num ideário globalizante que nos intima
a aguardar, submissos, que nos sejam transferidas pelos
mandatários do "pensamento único"
as certezas destinadas a assegurar a incolumidade do
patriciado. |