Demasiadamente
comedido, cumprimentava sem efusividades. A postura
grave que afetava, entretanto, não o impedia
de ser homem educado e sem laivos de arrogância.
Tendo
alcançado todas as glórias que a profissão
de advogado poderia lhe proporcionar, cansou-se da militância
e decidiu valer-se do vasto conhecimento que acumulou
na constante leitura dos compêndios, nas incessantes
vigílias e em instigantes querelas para se dedicar
à literatura. Com o mesmo desassombro que inquietava
o ex-adversus e a inquebrantável convicção
de suas vibrantes perorações recheadas
de construções de boa latinidade, resolveu
doutrinar sobre medicina alopática.
A
atilada pena que embasbacara desembargadores e ministros
com sábios e decisivos louvados, influenciada
talvez pelo nome grego de seu esgrimista, produziu dois
alentados volumes dedicados aos mistérios da
ciência de Hipócrates.
O
primeiro, sobre o alcoolismo, refúgio —
segundo o autor — de quatro tipos humanos: o iniciado,
cujo desvio de conduta decorreria da tentação
de imitar o semelhante; o tarado, heredo-alcoólatra,
em que o ferrete se alastra até, pelo menos,
a quarta geração (aqui, relatava, entre
outros, o caso de um epilético descendente de
um avô que apenas se embebedara na noite de núpcias
e invocava a mitologia para revelar que Vulcano nasceu
coxo porque Júpiter se embriagava com freqüência);
o desgostoso, capítulo que encerrou com uma frase
lapidar que teria assombrado os críticos da época:
'E é assim a vida. Uns elevam-se até as
estrelas, outros caem até os enxurros.' e, por
último, o consumidor voraz de frutas cítricas.
A obra recebeu o título pomposo e esclarecedor
de 'O alcoolismo e o anarcooliso'.
Sua
segunda incursão no reino da ciência que
previne e cura as doenças mereceu este sugestivo
rótulo: 'Glândula Pineal, um insondável
abismo'. Apesar do sortilégio que entrevia nas
funções desse corpúsculo oval,
cujo funcionamento intriga até os endocrinologistas,
era exatamente à tal víscera que atribuía
— à exceção das mencionadas
causas do alcoolismo — todas as manifestações
físicas e psíquicas que afetam os destinos
da humanidade.
Dedicado
à nova atividade e livre dos prazos forenses,
sobrou-lhe tempo para visitar mais amiúde o velho
pai que vivia num sítio no interior de Minas
Gerais juntamente com as famílias dos outros
três filhos, estes, sim, médicos por formação
e que achavam muita graça nos 'diagnósticos'
do Dr. Aristófanes, embora não o dissessem
às claras, em razão do temor reverencial
que tributavam ao irmão bem mais idoso, a ponto
de o chamarem de 'senhor' ou 'padrinho', já que
a todos batizara. Tratavam-no com um cerimonial e uma
adulação que se devotam somente aos príncipes
autênticos e às amantes tirânicas.
Dr.
Aristófanes gostava dos ares da montanha e simpatizava
com a gente local, que pasmava para sua imponência,
sua cultura de bacharel afamado, exceto uns três
ou quatro invejosos que lhe assacavam a pecha de 'metido'.
Tinha dificuldade de lidar com crianças, mas
não porque fosse intolerante. Tentara algumas
vezes, mas a iniciativa soara grotesca, e ele desistiu.
Fingia, então, que elas não existiam,
o que lhes convinha mais ainda. Admiradores e crianças
à parte, de tempos em tempos passava uma temporada
com os parentes.
O
uso excessivo dos neurônios, por parte desse incansável
homem de idéias, acarretou-lhe um inevitável
desgaste que se foi acentuando com o avançar
dos anos e vinha se manifestando há algum tempo
por meio de pequenos lapsos e um ou outro rompante detectados
pelos mais chegados. Na fazenda, mais de uma vez se
esquecera de dar a descarga no vaso sanitário,
errava a porta dos quartos e confundia o nome das cunhadas
e dos sobrinhos, quando não dos próprios
irmãos. Contribuía para aturdi-lo a algazarra
que os garotos, já bem crescidos, faziam dentro
de casa (homem habituado ao silêncio das meditações,
às manias e rotinas, perturbava-se com o alvoroço
e a falta de método). Eram parcelas pequenas,
é fato, mas que, somadas, produziam um efeito
significativo.
Numa
dessas visitas ocasionais — era noite chuvosa
e fria —, os adultos engalfinhavam-se sobre o
pano verde disputando encarniçadas partidas de
buraco, quando, sem mais nem por que, o doutor surpreendeu
a todos, comunicando que retornaria ao Rio na madrugada
do dia seguinte. O trem passava pela estação
em frente à casa às cinco da manhã.
Uma decisão dessas a horas tantas trouxe um desassossego
extraordinário. Tentaram, sem êxito, dissuadi-lo.
Ajustaram, então, que alguém o acordaria
às quatro da manhã, e todos foram dormir.
Na
perspectiva da longa viagem que teria pela frente (era
a época da maria-fumaça) e excitado com
o arranjo dos pormenores, o que sempre provocava grande
confusão na mente daquele homem voltado para
as larguezas do espírito, Dr. Aristófanes
não pregou o olho e, desde as duas horas, já
fazia barulho pela casa, inteiramente vestido, pisando
com força nas tábuas do assoalho, abrindo
e fechando portas e torneiras, arrastando malas, deixando
cair utensílios, enfim, acordando os demais moradores
que, aos poucos, descabelados, afluíam ao salão,
espantados com a alaúza que aquele único
homem conseguia fazer com tanta eficiência.
A
garotada foi se juntando na sala de visitas, jogando
e troçando, animada com a novidade, a divertir-se
com os sobressaltos que o tio causava. As senhoras aproveitaram
para fazer café e preparar um farnel que proviesse
o viajante em sua longa jornada. Ao ver tanta gente
à sua volta, ainda que se equivocando ou omitindo
nomes, o Dr. Aristófanes desandou a distribuir
tarefas e encargos:
—
Minha filha, separe um pedaço de bolo de fubá,
umas bananas e um bule de café para eu lanchar
no caminho.
—
Já está quase pronto Dr. Aristófanes.
O café vai na garrafa térmica, se o senhor
não quer sujar as calças — respondia
uma das cunhadas.
E
choviam ordens para todos os lados. O homem parecia
um comandante das tropas aliadas a designar funções
no desembarque da Normandia:
—
Célia, vou aproveitar e levar umas verduras frescas.
Ontem vi na horta belos rabanetes e alfaces. Pegue um
jornal e embrulhe para mim ... Ah! Não me esqueça
as couves, sim? Isabel adora couves e as que vi lá
estão suculentas.
Amélia
(e não Célia) dizia para si mesma: 'Que
tonto! Acha que a essa hora, com a temperatura a dois
graus, vou sair a catar verduras para a Bébézinha.
Pois sim!'.
O
agitado primogênito dava punhadas numa porta:
—
Pai, abre que quero lhe tomar a bênção.
O
irmão mais novo corria em seu socorro, prestativo,
bajulador:
—
'Seu' Aristófanes, aí é o banheiro.
O quarto de paizinho é aquele colado à
vitrola da sala.
—
Neste caso, diga-lhe você mesmo, amanhã,
que lhe peço a bênção e escrevo
depois, que o trem deve estar chegando.
Com
efeito, o trem aproximava-se da estação,
e o mano Péricles pedia ao filho Zezinho —
o mais sacudido dos pirralhos — que se entendesse
com o chefe da estação e o maquinista
para retardarem a partida por alguns minutos.
—
Vou querer também aquele canário belga
pendurado no canto da varanda. Ponham bastante alpiste
e uma capa na gaiola, por causa da geada.
Cícero
chorava:
—
Mãe, meu canarinho não, mãe ...
—
Pode deixar, meu filho. Eu escondo o canário
no porão. Daqui a meia-hora ele nem se lembra
do bicho.
Cícero
se aquietava, mas por via das dúvidas não
arredava o pé dali, muito ciumento de seu bichinho
de estimação. Vigiava o tio maluco, atento
à saraivada de instruções, aos
encargos que repartia entre irmãos, cunhadas
e sobrinhos, cioso de que não lhe arrestassem
outros pertences.
O
trem, ao lado da plataforma, dado o prestígio
do patriarca — que dormia a sono solto, ignorando
solenemente a baderna que corria solta em seus domínios
—, excepcionalmente, aguardava a chegada do insigne
e atribulado causídico.
A
mãe de Cícero correu a chamar o marido
para ajudar a conter o tumulto; afinal, o irmão
era dele e a responsabilidade lhe cabia, por mais omisso
e subserviente que fosse. Ela é que não
estava ali para aturar desatinados.
Quando
Eurípedes assomou ao umbral, estonteado, vestindo
uma camisola de flanela que lhe descia até o
meio das canelas de cambaxirra, calçando largas
e esfiapadas pantufas que lhe acentuavam os gambitos,
com os cabelos ralos e descuidados formando um curioso
chuca-chuca em espiral, à moda dos bebês,
contrastando com a figura hierática, doutoral
do dia-a-dia, essa teatral e cômica aparição
provocou gargalhadas nas mulheres e frouxos de riso
nas crianças e nos adolescentes. A grave e sonambúlica
criatura pôs fim à insolência:
— Parem com isso, que o assunto é sério,
e o padrinho pode achar que riem dele. Vamos ajudá-lo.
Na estação, a composição
bufou, esperneou, estremeceu, fez uma manobra no desvio,
emitiu um silvo breve, como se fosse uma advertência
e tornou a aquietar-se.
— Alguém precisa me auxiliar com a tralha.
Onde está o menino do Péricles (era o
Zezinho, que, prudentemente, se escondera na varanda,
muito agasalhado, adivinhando que lhe caberia a pior
das incumbências) — Manda ele dizer ao maquinista
para esperar por dez ... não ... quinze minutos,
que não acho meu chapéu, nem me trouxeram
o pássaro, nem as limas-da-pérsia ('Homessa!
Agora temos lima-da-pérsia' — pensou Átila,
temeroso de dizer-lhe que não era época
— 'E se o padrinho inventar coisa mais complicada
ainda?').
Zezinho, descoberto em seu esconderijo, fora à
estação e voltara afogueado, com o nariz
muito vermelho de ter entrado na locomotiva para conferenciar
com o maquinista, um tipo rude, que lhe confiara o seguinte
recado:
— Se seu patrão não vier em dez
minutos, largo ele aí, não me interessa
quem é. O chefe já autorizou a partida
há muito tempo, e eu tenho que chegar a Barra
do Piraí antes do meio-dia, senão a mulher
me esfola. Entre ela e seu tio, posso garantir que deixo
o sujeito na mão.
Cuspiu no fogaréu da caldeira e, mal-encarado,
despejou:
— Vai logo, moleque.
Na sala, Zezinho foi informado que tio Aristófanes
tinha mudado de idéia. Adiara a viagem. Tomara
a decisão em respeito ao venerando pai; não
partiria sem sua bênção, sem beijar-lhe
a mão. Já tinha mesmo se espichado na
velha poltrona de veludo e se pusera a gosto, as mãos
cruzadas sobre o ventre, e um manto providenciado pelos
obsequiosos irmãos cobria-lhe as pernas.
Agora, competia novamente a Zezinho negociar com o maquinista,
avisá-lo de que o homem desistira, que desculpasse
o inconveniente ... que atrasara sua viagem inutilmente
... que se houvesse com a patroa ... que lhe aturasse
os maus humores ...
O mensageiro não pensou duas vezes: trancou-se
no porão e, naquela escuridão que sempre
lhe fizera medo, enregelado, ficou mudo, teso, em companhia
do canário do Cícero, rezando para que
o bicho não abrisse o bico, não denunciasse
sua presença.
Crianças e mulheres já nos quartos, os
irmãos foram conferir se o padrinho estava bem,
se necessitava de algum préstimo antes que se
deitassem. Encontraram-no estranhamente imóvel,
com um olho aberto. Um olho grande, interrogador, mirando
o retrato ovalado do velho fazendeiro, pendurado no
alto do arco que separava as duas salas.
O douto causídico, que diante dos magistrados
discorria sobre os autos com a serena familiaridade
dos sábios, que trouxera novos e valiosos subsídios
à ciência dos esculápios, morrera
minutos atrás, quando todos se preparavam para
o merecido repouso da inusitada faina. Resolvera ele
descansar primeiro, partindo silencioso para esta outra
viagem mais longa, sem baldeação em Barra
do Piraí. Tomou o atalho que leva a Deus ou ao
diabo.
Lá fora, a maria-fumaça arrancou furiosa
pela noite a dentro, jogando uma língua de fogo
no ar gelado, e seguiu seu destino emitindo roncos assoviados,
regougados, assustadores, e parecia que o vingativo
maquinista, comandando um cortejo de locomotivas a lenha,
tinha invadido o salão da casa, em represália
ao desaforo.
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