—
Eu, o que peço é que me tratem com respeito.
Se a pessoa for cordial, tanto melhor, mas não
exijo; se exagerarem, até desconfio. Mais do
que isso, não preciso. Todo e qualquer dia tem
o seu preço; houve aqueles em que gastei mais
do que dispunha. Mas não reclamo e, enquanto
agüentar, vou tomando todas. É muito tarde
para investir no que quer que seja. Me diverti e me
ferrei e, no geral, acho que ficou de bom tamanho. De
uma decisão sei que não me arrependo:
ter dispensado a mulher do Coelho.
— O Coelho do restaurante?
— Você não conhece, nem eu. Não
tem a estrada velha que vai para Cabo Frio via Maricá?
Antigamente, de tempos em tempos, surgia inesperadamente,
no alto de um moirão mais destacado, uma tabuleta
onde se lia: 'Vera Coelho ama'. Assim mesmo, sem pontuação,
ambíguo. Manja aquela história do pichador
que escreveu na parede do castelo 'Matar o rei não
é pecado'? Pois é, condenado à
morte pelo ultraje, teve um estalo e exigiu o cumprimento
de um último desejo, o de voltar ao local do
crime. No que chegou, meteu uma vírgula na sentença
— 'Matar o rei não, é pecado' —
e foi absolvido. Onde você colocaria a vírgula
na frase do Coelho?
— Eu, uma vírgula! Quem se enrabichou pela
mulher do cara foi você.
— Não é pra menos. Você não
percebe como sempre foi importante para mim desvendar
um mistério que me atormentou anos a fio: é
Vera que ama Coelho, com o verbo posposto, ou é
'Vera, Coelho ama'? Neste último caso, Coelho
ama quem? Ela ou outra moça, hipótese
em que a mensagem teria o sentido de um fora, um adeus,
como quem diz: 'Vera, não insista. Coelho quer
outra mulher'. E foi precisamente nessa alternativa
que apostei, então, com fervor de romeiro.
— Rapaz, isso me lembra aquela história
do Monteiro Lobato, em que o pretendente usou o pronome
errado e o pai da namorada aproveitou pra lhe empurrar
a irmã mais velha, a feiosa encalhada.
— Minha situação era pior do que
a desse infeliz. Eu nem sequer pude exercer alguma opção
concreta. Onde encontrar Vera e como abordá-la?
Eu a imaginei de pés descalços, jovem,
desejável, trigueira, olhos verdes, um tantinho
estrábica, com um quê de matreirice sapeca.
—
A definição é meio extravagante;
tem alguma coisa que não me agrada ...
—
O quê? O caráter, quem sabe. Deixe-me prosseguir:
ela ri para mim, ou assim parece — nunca fui bom
observador ...
— Mas, quando ela riu para você? Isso está
me soando um pouco vago.
— Não sei. Quando o marido foi mijar. Ora,
nem tenho certeza se esse Coelho era marido, namorado
... Sei que o imaginava baixinho, franzino, manhoso,
adulador, com fama de mau (teria fuzilado um paquerador
por causa da mulher: não porque ela o traísse;
não que a mulher, necessariamente, fosse Vera).
Mas, se ele me pegasse um dia, será que eu estaria
preparado? Valeriam a pena
aquellos
ojos verdes, serenos como un lago,
en cuyas quietas aguas un dia me miré ?
—
Você pensou em usar conhecimentos, grana para
tirá-la da toca?
— Não seja grosseiro. Vera não era
interesseira, nem prostituta. Eu não a idealizei
dessa forma. E foi melhor assim, senão eu estaria
liquidado, porque a mulher ideal é a puta que
beija na boca ...
no saben las tristezas que en mi alma han dejado
aquellos ojos verdes que jo nunca olvidaré.
Eu
nem estou seguro de que algum dia desejei possuí-la.
Num primeiro momento, minha aflição consistia
em afastar a possibilidade de um eleito que a houvesse
iniciado, que a desfrutasse consentidamente. E, como
eu abominava e invejava essa probabilidade, meu Deus!
Mutatis mutandi, muito pior do que a abstinência
alcoólica, mais desalentador do que a idiossincrasia
que inviabiliza o ato físico de ingerir o líquido
maldito é a incapacidade de se iludir, a inferência
inarredável e atroz da impraticabilidade de empinar
o copo impunemente. Bebe e vai logo pro hospital, filho-da-mãe,
porque a punição por se gastar mais do
que se tem é estornar um dia comum, um dia santo
qualquer ... a vida não faz fiado mesmo. Então,
se o sujeito vai comer o pão-que-o-diabo-amassou,
e sabe disso, é preferível morrer logo
de uma vez.
— Caramba, que trágico! É muita
filosofia pro meu bucho. O que a Vera diria disso tudo?
— Não sei. E é por isso que me atormento.
Às vezes consigo avaliar com alguma lucidez;
em outras me perco completamente, mas repara que eu,
pulha confesso, nato e hereditário, sempre hesitei
em localizar exatamente a posição da vírgula.
Daí, especulava, e acabei descortinando uma variante
favorável, sendo 'Coelho' apenas sobrenome: 'Vera
Coelho ama' - uma oração afirmativa, expressão
sensível, poética de um elevado estado
de espírito, a timidez virginal que enfim inventa
o amor. Você não pode calcular a que ponto
me entusiasmei ante essa janela nova que se abria, o
que de esperanças acalentei. Quer dizer que poderia
não haver Coelho algum?! Porém, como velho
e bom pulha, satisfiz-me com a ausência da vírgula,
redentora promessa de supressão do rival. Não
tive cacife para prosseguir por mais uma rodada e confirmar
esse desfecho sedutor; a perspectiva, ainda que abstrata
e remota, de trair o Coelho me embaraçava e reprimia,
pois implicava admitir sua existência, e eu jamais
me conformaria com um Coelho real, palpável,
que tivesse chegado antes de mim. Por isso, insisto
em dizer que não me arrependo da decisão
que tomei, até porque o tempo vai arranjando
os acontecimentos à sua maneira — você
não pode interferir mesmo — e acaba que
o sujeito se habitua a conviver com seus pesares, principalmente
se tem o meu temperamento.
— E agora que você, aparentemente, sepultou
essa desdita e livrou-se do fardo, não tem a
curiosidade de investigar o destino da impoluta Vera?
Afinal, na região tem duas ou três cidades
pequenas, e não deve ser difícil descobrir
seu paradeiro, uma vez que a moça apregoava seus
ardores pelas vias públicas.
— Quer saber de uma? Prefiro ficar quieto no meu
canto. Até hoje, cá entre nós,
o tal Coelho me mete um pouco de medo. Por via das dúvidas,
quando as circunstâncias me obrigam a ir a Cabo
Frio, pego a estrada nova. No fim das contas, você
economiza bem uns cinqüenta minutos.
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