O Grande Labirinto
por Carlos Raposo

"Que Deus dê siso aos que já o possuem;
quanto aos insensatos,
deixai-os usar os próprios talentos"
(William Shakespeare)

Há muito tempo, um Grande e Sábio Rei, de um dos vários países da Arábia, sabendo ter cumprido com zelo a sua missão de governante, decidiu viver os últimos anos em completo retiro. Isolado nas montanhas do interior, ele repousaria até sentir estar próximo o derradeiro chamado de Deus, quando então voltaria ao palácio real para deixar registrado seu testamento e Vontade final.

Em sua última audiência antes do retiro, chamou o seu único casal de
filhos, aos quais ele confiaria a administração de todo reino. Após expor os motivos de sua inesperada decisão à filha mais velha, a quem considerava herdeira espiritual, ele legou-lhe as inóspitas terras do deserto, dizendo que ali ela encontraria tudo que queria a sua alma desejosa de saber. Para o segundo filho, bem jovem, pequeno e muito inseguro, embora extravagantemente ambicioso, tomado pelo Velho Rei como o possível herdeiro temporal, foram confiadas as cidades e a administração da maior parte de sua fortuna, dizendo que seus desejos ocultos ali teriam todos os elementos necessários para se saciarem.

Como última mensagem e vaticínio, o Sábio Rei falou que, em tempo não determinado, os novos soberanos passariam, cada um deles a seu tempo e modo, por duas fortes provações, ao mesmo tempo idênticas e distintas, que determinariam qual dos dois estaria preparado para substituí-lo, assumindo por completo todo o reino.

Finalmente, o Sábio disse que na hora certa, quando o Senhor do Último
Alento dele se aproximasse, ele retornaria das montanhas para avaliar os ordálios e, nesse mesmo momento, ele haveria de decidir qual dos filhos herdaria o trono.

Na palavra final à sua filha, o Grande Rei, segurando-lhe firme as mãos,
sussurrou-lhe, em confidência, aos ouvidos: "confie". Em seguida,
dirigindo-se ao segundo filho, da mesma forma, ele disse: "cautela".
Deixando-lhes sua benção, o ancião reuniu um pequeno número de serviçais e partiu para o isolamento.

Tão logo fora encerrada a audiência real, o segundo filho começou a exercer seus novos poderes. Destituiu as antigas administrações, formada pelos homens de confiança de seu pai, instalou novos e ambiciosos jovens amigos no poder, mandou preparar um forte exército e começou a imaginar vários meios de aumentar o novo reino que lhe fora confiado. A timidez que o caracterizava, logo cedia lugar ao desejo descontrolado de exercer o poder.

Enquanto isso, a filha, assim que o ancião deixou a cidade, cumprimentou, desejou sorte e saudou o irmão mais novo, partindo feliz rumo ao deserto. Vendo sua irmã sair sozinha, o surpreso jovem perguntou por qual motivo ela partia daquele jeito, completamente só.

"Vou só, pois nada há o que se temer por lá. A Providência estará comigo, assim como sempre esteve com nosso santo pai. Eu confio na própria vida e em meu destino".

Mesmo intrigado pela aparente súbita demência da irmã mais velha, o jovem príncipe não se demorou na despedida, voltando a tratar dos novos afazeres reais. Muito havia por ser feito. Uma nova capital, por exemplo, seria construída do outro lado do deserto, ao sul do país. Bela, forte, invulnerável, ela seria o local escolhido para edificar a nova residência real onde ele passaria a exercer todo o seu poder, governando com mão-de-ferro a sua parte do reino. "O Poder do Sul" era um dos títulos que sonhava para si mesmo. Com relação ao deserto, por um momento pensou o que fazer. Mas logo concluiu que "nada há lá que me seja útil. Que fique como está: esquecido!"

As despesas que mantinham os caprichos do pequeno rei eram por demais excessivas. Para supri-las, ordenou a invasão e a conquista de novas terras. O reino, antes pacífico e próspero, subitamente, tornara-se bélico e, aos poucos, moralmente retrógrado. Devido ao modo de agir, o novo governante rapidamente criou inimizades por todas as partes do país. Sabendo que uma oposição começava e se esboçar dentro de suas próprias fileiras - a parte descontente dos súditos começava a crescer - ele não tardou em perseguir seus inimigos e matar seus oponentes. Até mesmo alguns que antes eram amigos foram alvos de sua ira. Por fim, saqueou alguns aliados reinos vizinhos. Toda a fortuna estava sendo utilizada para dar vazão a construção da nova cidade, delírio de poder e grandeza. A vaidade de se tornar um grande rei, único, sumo e santíssimo corroía cada vez mais o seu juízo.

Entretanto, enquanto o novo pequeno tirano se formava, e mesmo apesar da perseguição imposta a seus inimigos, o número dos insatisfeitos com o infante regente aumentava dia a dia. Ele então lembrou da última palavra de seu sábio pai: "cautela". Sim, é verdade, ele teria cautela, mas as perseguições continuariam. Nada impediria a realização de sua vontade.

E quanto mais ele exercia o que considerava um natural direito, a oposição por ele sofrida fazia crescer ainda mais em seu íntimo o medo que nutria de perder o poder, de ser traído e enganado. A obsessiva idéia de não poder confiar em ninguém e em ser traído crescia na mente do petiz rei, a ponto dele começar a olhar com desconfiança todos que estavam a sua volta.

Cedo, fez da mentira e da falácia, da discórdia e do desafeto, da artimanha e da intriga, as armas com as quais conduziria o reino. Além disso, dentro da hierarquia das Armas, do qual ele estava temporariamente encarregado, todos os seus subalternos foram, de modo explícito, ameaçados de serem impedidos de avanço em graduação, dentro do "seu" exército, caso não estivessem absolutamente de acordo com todas as suas atitudes...

Todos os súditos que começavam a se destacar eram vistos como focos de pestilência e verdadeiras ameaças a sua posição e realeza. A calúnia e a sabotagem eram por ele livremente exercidas, no sentido de que esses - os súditos com sucesso - fossem evitados. Em todo lugar do reino em que a vontade pessoal dele fosse soberana, ninguém mais encontraria espaço para brilhar.

Tentou pôr súdito contra súdito, num desesperado esforço para mantê-los separados, confusos e fracos. Inverdades eram por ele lançadas constantemente, no sentido de inibir a ação dos descontentes. Dessa forma, dizia que a irmã mais velha, além de ser de péssima índole, nada sabia sobre governos, por isso seu Nobre e Santo pai lhe confiara o deserto, onde nada havia para se administrar ou reinar. Também passou a dizer que estava em constante contato com o seu pai, e que esse estaria plenamente satisfeito com a forma pela qual o príncipe jovem, o poder do sul, conduzia o reino. Segundo ele, o Velho Rei dedicara-lhe toda a estima, depositando em suas mãos toda a confiança para que ele agisse apenas de acordo com a própria vontade, e a de mais ninguém. Por fim, dizia que o Sábio Senhor logo retornaria do retiro para confirmar-lhe, em definitivo, como o mais sagrado pai daquelas terras.

Certo dia, rumores chegaram ao reino. Eles falavam que a Filha mais velha, a quem fora confiada as terras do deserto, estava, obedecendo algum misterioso presságio, se dirigindo à nova capital, onde havia se
estabelecido o novo governo do reino.

Tão logo tais rumores chegaram aos ouvidos do rei menor, este pôs-se em convulsão e histérica agonia. Em seus delírios, o que mais o afetava era a imagem da irmã, sorrindo, tranqüila, em partida para o deserto. "Como alguém poderia ficar feliz com tal desditoso fadário?", era a questão que, naquele momento, perturbava o seu juízo. "Uma armadilha, um estratagema, só pode ser isso!" - concluiu-lhe a mente insana. "Dissimulando, ela deve ter reunido, as escondidas, na calada da noite, um exército de horrendos infiéis, uma hoste de mercenários nômades e vadios, e agora volta para reclamar o trono que por direito pertence somente a mim, somente a mim e a mais ninguém".

Não é a toa que as palavras de um velho adágio dizem que as mentes cegas pelo uso indevido do poder costumam prover o próprio alimento, necessário para mantê-las, cada vez mais atoladas, na loucura de sua parca ilusão de grandeza...

Mas, os ventos não param. Estes conduziam mais e mais rumores e contavam que a Filha do Santo Rei havia se transformado em uma verdadeira Sábia. Agora, ao que tudo indicava, ela havia de fato recebido um sinal divino, que apontava à eminente Ultimal Festa de seu Nobre Pai. Ela decidira, então, voltar ao reino para encontrá-lo ainda uma última vez.

Francamente perturbado pela idéia do retorno da irmã - ameaça das ameaças, concluia ele - o jovem soberano maquinava o que fazer para evitá-la. Com as idéias confusas, juízo turvado, pensamentos hesitantes e temores inconfessáveis, apenas pode pensar em como preparar um final para a irmã mais velha. Mas não pediria conselhos para isso, visto não poder confiar em absolutamente ninguém que o cercava. "Todos são infiéis e traidores" - delirava. Sim, ele decidiria sozinho o que fazer.

O jovem rei sabia que não poderia manchar suas mãos com o sangue da irmã, isso provocaria a fúria dos súditos e também a desaprovação de seu pai. Assim, começou a imaginar alternativas para se livrar da "concorrente" ao trono. De repente, pensou em algo que, é claro, considerou genial. O costume da região era presentear, com algum objeto de valor, os familiares que retornassem de uma longa viagem. Então, um presente especial seria preparado para a irmã do deserto. Já que ela agora se passava por uma sábia, o pequeno regente lhe daria de presente algo incomum, da mesma altura. Algo que exigisse sabedoria.

Reuniu em seu gabinete real os melhores arquitetos e engenheiros do reino. Depois, ordenou-lhes que concebessem e construíssem um labirinto, tão complexo e espantoso que nem mesmo os mais arrojados heróis míticos pudessem dele escapar. A obra deveria ficar pronta imediatamente e, para isso, os generais arregimentariam tantos fâmulos quantos fossem necessários. As terras conquistadas lá estavam para isso. Além de tudo, um mapa único do mesmo labirinto seria confeccionado e entregue ao jovem príncipe. Somente ele saberia entrar e sair, incólume, do fantástico dédalo.

Arrebanhados os escravos, a obra foi imediatamente iniciada.

Pouco tempo depois, novas notícias confirmavam a eminente chegada da irmã, a herdeira do deserto. O Jovem rei, já tendo concluído a construção do labirinto, planejara em segredo convidar a sua irmã para ir conhecer o belo presente que havia sido especialmente preparado para a ocasião. Uma vez dentro do hórrido labirinto, lá ele trataria de "se perder" da irmã. Ela, por sua vez, nenhuma saída encontrando, do local faria nada mais senão seu próprio jazigo. "O meu plano é perfeito" - pensou o demente jovem tirano, com um riso nervoso, esfregando mão contra mão.

E chegou o dia do retorno da filha do Nobre Rei. Tranqüila e feliz, ela foi
ao encontro do jovem irmão, que a recebeu em meio a franca fartura e falsa alegria. Após alguns minutos de colóquio, o jovem príncipe, ansioso por dar desfecho àquele desagradável e enfadonho encontro, disse haver preparado um presente especial para ela, sua irmã do deserto. Convidou-a para ir até o local onde havia sido construído o labirinto, e nele os irmãos juntos entraram. Após várias horas andando pelos confusos caminhos do sinistro ardil, a irmã mais velha disse ao jovem príncipe: "oh tu que és meu nobre e valoroso irmão, muito mais teria eu que falar a ti. Todavia, minha natureza, impregnada pelo silencioso espírito do deserto, isso ainda não me permite. Toma, então, esta minha missiva, ela resume a totalidade de meus sentimentos, nela está o meu caro presente a ti, nela está aquilo que meu coração diz ser o símbolo de nosso reencontro, e também o meu franco desejo que o sucesso, que sempre será a tua provação, te acompanhe".

O príncipe pequeno, temendo alguma cilada oculta preparada pela irmã, com reservado receio pegou e guardou a carta. Continuando a andar pelo labirinto, disse ele então, acenando ao seu redor à irmã do deserto: "Eis o labirinto. Ele é o meu presente a ti". E tão logo falou, tratou de se
afastar da irmã, deixando-a só e perdida em meio ao tremendo dédalo.

O jovem príncipe, orientado pelo mapa único que apenas ele possuía,
rapidamente saia sozinho da terrível armadilha. Foi quando outra notícia chegou. Dessa vez, os eufóricos, assustados e esbaforidos mensageiros diziam que o Velho Rei estava sendo - naquele mesmo instante - levado para o antigo palácio real e pedia a presença dos filhos num prazo máximo de cinco dias, e que eles deveriam se dirigir desacompanhados para lá.

"Isso vem bem a calhar. Tudo caminha exatamente conforme a minha vontade, tenho o controle de toda a situação", foi o insano pensamento que passou pela mente do jovem rei.

Assim, o irmão mais novo se preparou para a difícil viagem. Ele teria que
atravessar o deserto para se encontrar com o sábio regente, no palácio
real. Pondo-se de imediato ao caminho, o príncipe rapidamente atravessou os portões da nova cidade, construída no sul, para ser a capital de todo o reino. Surpreendentemente, a primeira pessoa que viu foi justamente a sua irmã, que, calmamente, conduzindo um camelo, também iniciava a sua jornada de retorno ao palácio de seu pai.

"Mas, o que fazes aqui?"- perguntou, atônito, o jovem príncipe. "Querido
irmão, vou atravessar o deserto e ir atender ao chamado de nosso Santo Pai" - respondeu tranqüila a irmã mais velha. "Mas como saíste do
labirinto?" - ainda aturdido, questionou o mais moço dos irmãos. "O deserto é sábio, e ele me ensinou. À noite, aprendi a ler as estrelas; durante o dia, o vento, o sol e a poeira são os meus guias. Em todas as horas, contudo, o constante apelo do vazio do deserto fez da voz que vem de meu coração e do silêncio de meus pensamentos os meus judiciosos guias companheiros a me indicar os corretos caminhos a serem percorridos. Sim, nobre e valoroso irmão, estou preenchida pelo Vazio do Deserto. O teu presente é belo e a ti sou muito grata, pois ele muito teria a me ensinar. De bom grado, nele eu ainda estaria caso o chamado que vem de nosso Santo Pai não fosse tão imperativo, tão urgente. Espero também que o meu humilde presente esteja a altura de tua generosidade real."

Sem entender nada daquelas palavras e pensando ter sido a sua irmã
acometida por uma loucura qualquer, o petiz rei esporou o veloz alazão e, como um raio, adentrou-se no deserto, indo em busca de seu soberano pai.

A Irmã Sábia, ajeitou o albornoz, tocou de leve o camelo, e também seguiu viagem.

Passados três dias, já em plena aridez do deserto, o príncipe sentiu o
cavalo falhar, tropeçar e cair, completamente exaurido pelo esforço
empreendido. Sem contar com a montaria, que agora jazia em meio ao tórrido e escaldante calor, nada restou ao pequeno tirano que continuar a pé a viagem. Todavia, muito ainda faltava a ser percorrido. Com o passar do tempo, em meio ao torvelinho de sua mente, em franca desesperança por se achar completamente só e perdido, subitamente, ele se lembra da carta dada pela irmã.

Abrindo-a, ele lê: "Meu amado, soberano e irmão. Muito aprendi nas terras que a mim foram confiadas por nosso Sábio Pai. Como creio que todo Rei deva ter tais lições que recebi, a ti gostaria de presentear a minha parte da herança de nosso Sábio Rei. A ti, portanto, deixo todo o meu legado, toma, agora mesmo, o deserto em tuas mãos. Ele agora te pertence, da mesma forma com tu pertencerás a ele. Nele tu encontrarás o céu e o sol, o vento, a lua e as estrelas, tudo a te orientar, a te guiar. Depois, nobre e valoroso irmão, atente ao Vazio do Deserto e aprende a escutar o mais forte apelo, que virá de ti, de teu coração. Mas, oh meu irmão, acautela-te. O deserto que é mestre também pode ser algoz, pois ele é, dos Labirintos, o mais espantoso. Não terás salões ou corredores a te confundir, não terás portas nem janelas a te ofuscar, não haverá esquinas e nem encruzilhadas a te iludir e, muito menos, lá tu encontrarás as familiares vozes de teus pares a te confortar. No entanto, a imensidão de suas dimensões e de seu Vazio são os cruéis ordálios que te esperarão. Sabe, contudo, que a imensidão do
deserto é proporcional a grandeza da realização e da sabedoria que ele
promete. Mas, acautela-te, pois ali também haverá uma cruel maldição, só comparável à terrível mazela que acompanha o insano desejo de grandeza da mente dos reis menores, onde o sedutor convite da loucura à perdição, o ponto final dos delírios de todos os infiéis e dos corruptos encontra espaço para reinar. Vá e aprenda, e que o Senhor te acompanhe. Sim, meu valoroso Irmão, que o Senhor te acompanhe".

No antigo palácio real, o Sábio Rei, sereno em seu leito de morte, já
aguardava pelos filhos. Com a chegada da sua amada filha, uma forte alegria se fez no coração do Soberano ancião. Passado o prazo para a chegada do segundo filho, o Soberano pede que sua filha exponha os fatos por ela conhecidos. Então, ela fala de sua partida para o deserto, da tirania que se apossara do seu irmão, da sua carta, do labirinto que lhe fora dado de presente e, por fim da partida de ambos na busca dele, o Grande Rei e Sábio Senhor.

"O Grande Labirinto é o pior dos ardis. Mas ele sempre estará apenas em nós, construído pelos desmedidos tijolos de nossa ganância e composto apenas pelos confusos corredores de nossa própria mente" - dizia o Rei, já moribundo - "A ti, minha Sábia Filha, que aprendeu com o pouco que te foi entregue, confio todo o meu reino. Que O Senhor sustente o teu corpo, que é o veículo da tua vontade; que Ele conforte o teu coração, dando-te alegria e paixão eternas; e que Ele ilumine tua mente, fazendo sempre claros os teus caminhos a ti."

A Irmã mais velha, assim, herdou todo o reino.

Quanto ao jovem príncipe, nada mais se soube a respeito dele.


*
* *