Fernando não
gosta das terças-feiras. Nesse dia, não
dá para matar a última aula na faculdade
de administração. O professor é
rigoroso e controla a lista de chamada. Ele acaba por
chegar muito tarde em casa. O bairro é perigoso
e sua mãe teme que lhe aconteça algo.
Ele diz que não há problema algum, mas
também tem medo. No entanto, a conclusão
da faculdade é a única esperança
de arranjar um emprego melhor. À meia-noite,
passa o último ônibus, recolhendo os últimos
alunos que deixam apressados a faculdade. Quase dormindo,
com a cabeça recostada na janela, seu sonho de
uma nova vida tem altos e baixos, acompanhando os solavancos
causados pelas ruas esburacadas da região.
É uma noite fria de inverno, o ônibus
sobe com dificuldade o morro até parar no ponto.
Apenas Fernando salta. A rua está vazia. Ele
fecha o casaco fino, tentando se aquecer. O motorista
troca a marcha e acelera, o motor tosse, como um velho
doente.
Fernando atravessa a rua e pára. É possível
descer uma ladeira íngreme, atravessar uma ponte
antiga de madeira que há anos a prefeitura promete
trocar e nunca troca. Cinco minutos depois estará
no quarto, se preparando para dormir. Um percurso mais
seguro é seguir algumas quadras em frente e tomar
a avenida, em seguida voltar para chegar em casa. Isso
aumenta o trajeto em vinte minutos. O cansaço
o leva a decidir pelo atalho, pegando a ladeira. Do
alto dela, pode-se observar a rua mal iluminada, que
desemboca num córrego poluído. As lâmpadas
queimadas dos postes de luz lembram a boca banguela
de um mendigo, o riacho, seu hálito fétido.
Fernando reluta em prosseguir, um pesadelo de uma semana
atrás o assombra. A ponte caíra e ele
precisa atravessar o córrego de barco, mas não
possui uma moeda para pagar o barqueiro. Os dois ficam
eternamente a vagar pelas águas sujas, entre
garrafas de refrigerantes vazias. Seus pedidos para
convencer o condutor a levá-lo à outra
margem são inúteis.
Mãos no bolso do casaco, seus olhos miram o
céu. O vento frio empurra as nuvens, ora encobrindo,
ora revelando a lua. Por um instante, as nuvens parecem
estáticas e a lua corre veloz, fugindo de uma
terra vergada pela desolação de um destino
sombrio. O dia em que mataram um traficante que vendia
crack ao lado da ponte ainda está vivo em sua
mente. Ao passar pelo local, observou a multidão
olhando o corpo estendido no chão. Alguém
disse, "Você viu? Mataram o Miguel da boca."
E uma mulher respondeu, "É, boca mesmo.
Boca do inferno." O apelido pegou, o lugar virou
maldito. Nunca mais ninguém traficou ali.
Ele dá os primeiros passos ladeira abaixo. As
casas são pobres e malcuidadas como os habitantes
de toda a vizinhança. Ao lado da ponte ardem
os restos de uma fogueira que alguém fez para
se aquecer durante alguns minutos.
Um rato passa correndo e se esconde no matagal de um
terreno abandonado. Fernando caminha pelo meio da rua.
Evita uma valeta causada pela erosão das chuvas
de verão. Os sapatos erguem uma camada fina de
poeira na rua de chão batido e seco. O olhar
atento logo percebe a jovem encostada em um muro coberto
de pichações das gangues do bairro. Ela
ajeita o casaco e vai em sua direção.
Tem por volta de 17 anos, rosto delicado e branco, cabelos
negros e lisos até a altura do ombro.
"Oi, você vai atravessar a ponte?"
Sua voz é doce, ao contrário da vida naquele
bairro, rude e brutal. Isso desarma Fernando, que não
gosta de falar com estranhos, principalmente àquela
hora.
"Sim, vou. Por quê?"
"Eu também vou, mas tenho medo de passar
lá sozinha. Será que posso ir com você?"
A garota o fita com grandes olhos acinzentados. Ela
não é alta, tem um pouco mais de um metro
e sessenta, um pouco gordinha, ou talvez fosse apenas
a ilusão criada pelo casaco grande demais para
ela.
"Tudo bem, onde você mora?".
"Uma quadra depois da ponte, à direita.
Você vai até lá?", pergunta
ela, uma expressão de ansiedade no rosto.
"Vou, pode ir comigo. Eu te acompanho."
Ela suspira aliviada e, lado a lado, eles caminham.
"Meu nome é Letícia. E o seu?"
"Fernando. Você tá nervosa? Tá
tremendo um pouco."
"É o frio. E o medo de andar aqui a essa
hora. Você não tem?"
"Não, claro que não."
"Que bom." Letícia sorri. Fernando
é tímido, mas ela consegue deixá-lo
à vontade. Os dois conversam, esquecidos do vento
gelado. Um cachorro no portão de uma casa late.
Os dentes brancos brilham pelos vãos da grade
de ferro. Letícia se assusta e segura no braço
de Fernando.
"Desculpe", diz ela, envergonhada.
"Tudo bem, eu também levei um susto."
"Pois agora o susto vai ser ainda maior, mané.
Passa a grana."
Fernando sente a pressão do cano do revólver
nas costas. Distraído, não percebera o
rapaz se aproximar por trás. Tem por volta de
19 anos, não mais que um metro e setenta de altura.
O corpo é magro e esguio. O gorro de lã
branco e preto esconde o rosto sulcado. Os olhos têm
uma expressão amarga, de alguém que já
desceu a profundezas que não gostaria de comentar.
Seus gestos são nervosos, joga o peso do corpo
de um pé para outro, olha para os lados. A voz
agitada revela o desespero de um viciado, capaz de qualquer
coisa para conseguir uns trocados que compre algumas
pedras de crack.
"Vou pegar o dinheiro, não atire."
"Não enrola, dá logo ou eu passo
fogo." Sua mão treme, talvez mais pela fissura,
do que pela tensão.
Fernando tira a carteira, vira-se lentamente e a entrega
para o rapaz. O garoto a segura com a mão esquerda,
a direita empunha trêmula o revólver. Ele
olha ansioso as poucas notas de cinco, dez reais, pensando
em quantos minutos de alívio elas lhe garantirão.
Isso faz seu sangue ferver por antecipação.
Fernando aproveita a distração do rapaz
e lhe dá um golpe no braço. A mão
fraca solta a arma, que cai com um baque surdo no chão.
Os dois se engalfinham, rolam pela calçada. Fernando
não é um atleta, mas toda a força
que sustenta o bandido é o sonho de outra dose
e ela logo se esvai, efêmera como os segundos
de felicidade que uma pedra de crack lhe dá.
Fernando consegue lhe dar uma gravata e o imobiliza.
Ele grita.
"Ei, menina! Pegue a arma! Eu já segurei
esse filho-da-puta!"
"Você segurou, mas pode soltar. Ele é
meu amigo." Ela empunha a arma com firmeza. O sorriso,
antes estampado no rosto, sumiu. A boca se contrai,
firme e cruel.
REVANCHE
O bandido se levanta com dificuldade, a respiração
tensa. Dá um chute em Fernando. "Desgraçado,
filho da puta! Tá pensando o quê? Que isso
vai ficar assim?" Dá outro chute, Fernando
se contorce de dor. O cachorro no portão ladra
furiosamente. "Pois eu vou te apagar, mano. Você
vai apodrecer, te jogo nesse riacho e nunca mais acham
teu corpo. Letícia, passa o berro."
Arma na mão, ele mira o corpo estendido na calçada,
pronto para atirar. O cão late ainda mais alto,
o marginal se vira a tempo de ver o animal saltar o
portão, olhos em fogo, caninos brilhando sob
a luz fria da lua. Apavorado, ele atira, erra. Nenhuma
janela, nenhuma porta se abre, todos têm medo.
O cachorro morde sua mão, ele urra de dor. Cão
e bandido vão ao chão. Tiros, gritos e
latidos se misturam ao sangue escorrendo da mão
dilacerada. O revólver cai no chão e o
animal ataca o pescoço. Os gritos perdem força,
viram gemidos abafados, o corpo se contrai em espasmos,
até quedar inerte no chão. O animal se
acalma, cheira o cadáver. Olha para Letícia,
que está deitada no meio da rua, imóvel.
Uma das balas disparadas a acertara na testa. Com a
boca ensangüentada, o cachorro volta trotando para
casa e salta o portão.
Apoiando as costas no muro, Fernando lentamente se
põe de pé. Um estranho se aproxima. Fernando
não consegue conter um tremor. Era o barqueiro
de seus sonhos. Os gestos lentos, o olhar indiferente
eram os mesmos.
"Mais dois que morrem aqui. A fama da boca vai
aumentar."
"Mais dois?", pergunta Fernando.
"Não lembra não?", retruca o
desconhecido. "Foi aqui que o Miguel, aquele traficante,
foi morto."
"É verdade, tinha até esquecido."
"E esse cão. Ele veio para cá no
dia da morte do Miguel. Fica aí no portão,
de vigia, como se fosse o guardião da boca do
inferno. Naquela noite, uivou a noite inteira. Acho
que fará o mesmo agora."
O cão uiva. Um lamento primitivo que parece descer
às estranhas da terra. Fernando sente um arrepio
na espinha.
O estranho pega a carteira, tira duas moedas e as joga
no chão, uma ao lado de cada corpo. "Eles
vão precisar de uma grana, não acha? Pelo
menos para pagar a passagem para o inferno." Ele
solta uma gargalhada e vai embora. Um vento forte mistura
pó ao sangue.
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