Estranhas Férias na Fazenda
Parte 2
- "Cerimonial da Terra"
Paulo Duboc - fale com o autor

Desci rapidamente do carro e abracei-o com maior emoção. Existem pessoas que nunca poderiam morrer, e uma delas, era ele, o Vovô, o Velho Luis, um homem símbolo da mais sublime de todas as forças, a força da natureza. Quando abracei-o, o amplexo do Vovô tinha a dimensão de um gigantesco planeta abraçando um outro diminuto que era eu próprio. Uma espécie de abraço de Saturno em Mercúrio. Era a alegria do Velho e do Jovem estremecendo, no choque de suas órbitas, sobre o chão da terra-fazenda.

Quando apeou de seu corcel malhado, veio calçado em culote e botas limpíssimas. Uma de muitas de suas características era a limpeza em todos os lugares e em si mesmo, como costumava dizer. Ali na cidadela tudo era limpo, a grama aparada, as baias e estrebarias sem nenhum excremento e as "cabeça-de negros" que tinham sido adquiridas numa história de tradição familiar, brilhavam ao sol e formavam-se em fileira tão certinha que obrigavam aos transeuntes a passar por cima num caminho de exclusividade.

A costumeira alegria do Vovô ao nos receber era de tal forma assinalado que pareciamos, papai, mamãe e eu, estar num abraço único. O velho tinha um cheiro característico, mesclado entre o perfume artificial, talvez uma de suas únicas vaidades, e eucalipto natural das árvores que bordejavam as estradas. Todos esses olores evolavam-se na atmosfera benfazeja local e numa forma especial de osmose impregnavam-se não apenas no corpo, mas na alma. Ainda sinto, hoje, o suave bálsamo que se levanta da terra úmida e se mescla com a fragrância dos eucaliptos lembrando o chão de léguas de pradarias, campos e morros. Em verdade tudo isso dava ao ar da fazenda um cheiro indisfarçável de limpeza, e descia em mim uma energia compulsiva para manter e atualizar esse cheiro de interior, natural, selvagem e puro.

Mal cheguei corri para dentro da casa e, num pulo entre o xixi rápido e o trocar de roupas, voltei no mais legítimo estilo fazendário. Bota e culote, o chicotinho na mão direita e uma ardente vontade de montar um cavalo e me enfiar no mato. A minha personalidade urbana se transformava em rural e assimilava-a com maior dignidade. Porém, por maiores que fossem meus esforços, ainda conservava muito do lado citadino onde a comida, bebida e guloseimas se inserem como indipensáveis. O horário do almoço soou e a Dona Mercedes, uma preta gorda e muito engraçada, preparou um suculento ágape rural a que não faltou o tradicional vinho. E assim inaugurei as férias de Janeiro mesclando a personalidade rural com a citadina

Porém a inauguração oficial do meu periodo de férias se deu à tarde, quando tive a primeira e grande experiência insólita de minha infância e de minha vida. Terminado o almoço, o Vovô foi chamado para atender uma potranca que estava passando mal. Acompanhado do meu pai saiu mas antes de fazê-lo disse-me que estivesse preparado pois que assim que terminasse o curativo da égua, viria me buscar para darmos um passeio. Mandou-me então ir ver a igrejinha que mandara fazer em meio as pedras, na antiga Gruta. Percebi seu entusiasmo sobre a obra, o que me contagiou. Fascinou-me a idéia e saí rápido para ver a Capelinha

Algum breve período de caminhada descendo em degraus bem dispostos e que se emparelhavam às pedras e rochas espalhadas num terreno inclinado, cheguei à Igrejinha maravilhosamente esculpida dentro da rocha. Alguns bancos de madeira se ordenavam contra um Altar trabalhado na pedra e em cujo centro havia um Cristo crucificado porém, diferente dos tradicionais, sem rosto e sem corpo, apenas um conjunto bem ordenado de madeiras. Chamou-me a atenção o fato de o símbolo crístico permanecer, apesar de disforme. Do lado esquerdo do altar havia uma estátua de Nossa Senhora que, ao contrário, era magistralmente esculpida, toda branca e alocada num nicho gracioso. De qualquer forma o simbolismo religioso, em seu conjunto, estava perfeitamente encaixado em graciosa concavidade e de qualquer lugar da gruta poder-se-ia perceber tanto a estátua quanto o Cristo como se estivessem de frente. Senti que aquilo tudo era um oratório particular da familia , uma espécie de câmara onde quem quer que tivesse acesso poderia meditar e rezar dentro de um átrio de profunda paz.

Sentei-me num banco em frente ao altar, apreciando aa natureza do trabalho. Tentei entender as razões do Vovô para a construção daquela gruta, enquanto ia me passando pela cabeça uma ideía de que o oratório poderia mostrar, digamos, essa fachada e ter outra finalidade . Mas essa sensação foi se avolumando, ainda mais quanto me esforçava para entender o Velho um religioso, um cristão, como outros tantos que conhecia da cidade. Por vezes duvidei que fosse católico face as asperezas e brutalidades necessárias aos homens de campo e aos líderes, porem questionava se ele, por ser um homem grande, forte e robusto pudesse realmente acreditar em Deus. Sentia ao mesmo tempo muita paz e sonolência , pois algo me fazia sentir feliz, em verdade havia algo de extremamente "magnético" naquela ambiente, Percebi, olhando para o nicho onde estava a Santa em relevo que, imediatamente a seu lado havia uma espécie de depressão gerando um fundo falso, ou uma parede extra, ou saída. No entanto, achei melhor prescrutar a gruta antes de ir direto à saliência ao lado do compartimento que abrigava a Santa.

Com tamanha paz, recostei-me na parede de pedra próximo a um nicho de tamanho regular que, pela forma curva da gruta situava-se em frente a mim cerca de 1 metro, e sentei-me suavemente no banco. Mexi-me para arrumar uma posição adequada onde pudesse rezar , quando ouvi um barulho semelhante a um guizo. Movido por certa prudência mas ainda sem nenhum receio bati as mãos no banco e ouvi novamente o chocalho com som de guizos sibilinos. Senti um certo arrepio, algo extremamente desagradável e rastreei o espaço imediato a mim, lado, chão e parede com os olhos. Olhei o chão, subi a cabeça e quando, movido pela sensor natural de alerta observei o nicho eu vi, ali, a um metro de meu peito, os dois olhos do terror e uma lingua que pulava de alegria na expectativa do meu susto, do meu medo, ou do meu desmaio. Com o maior de todos os terrores que um mortal pode ter que é o de se ver impotente e morto diante do inimigo, senti ainda, no estertor de uma sincope eminente onde o grito é abafado pela catalepsia. Senti um tremor estranho e percebi como que a existência de duas vidas, uma original, outra paralela. Naquele momento senti um avanço no tempo, uma sensação de inicio e fim, onde se misturam as estações, a infância, a puberdade, a adolescência, a maturidade e velhice. Enfim percebi que não era mais um garoto, mas um ser que passara pela vida e terminara-a de forma estranha na bôca de uma cascavel.

Por razões desconhecidas no mundo dos mortais, senti meu corpo enrijecido e minha mente flexivel pórem agoniado, uma bolha prestes a arrebentar dentro de uma garrafa. Mesmo que quisesse gritar, mover, pular, não havia jeito. Endureci numa rigidez cadáverica. Em mim só o olho funcionava e a respiração saia lenta em um boca aberta de queixo duro. Não havia outra coisa a fazer senão enfrentar o horror de frente. Meu olho e o olho daquela coisa se defrontaram e na rigidez cadavérica de meu corpo percebi que não poderia ser ameaça algum para meu terrivel inimigo. O constrangimento inicial do terror foi dando azo ã percepção dos sentidos e fui percebendo as cores do meu inimigo, a posição de ataque e defesa, a nobreza de não me atacar enquanto eu nao atacasse. Respeitou-me no direito de viver enquanto eu e ele nao tentassemos nada um contra o outro. Nada a fazer senão desafià-la no silêncio sepulcral. Senti-me uma montanha cujo interior potencializa um vulcão em desespero. Por dentro havia fremito e vibração, por fora uma inércia absoluta

Nem ataque nem defesa. Decidido a ficar horas nesse namoro de morte, reparei que meu interno fremia querendo se deslocar. Por vezes acontecia uns solavancos, como se eu estivesse me despreendendo ou descolando do corpo. Meus olhos se turvavam e o medo de mexer o corpo e ser atacado mantinha-me em suspense Deslizei suavemente os olhos para a estatua de Nossa Senhora em frente a minha cabeca e sem ter nem poder mexer o pescoco, percebi que por horas ela ficava menor e imediatamente normal. Subi os olhos e num desejo de libertação, vi-me em energia elevando-me acima da Santa, em suave sensação, seguida de um leve estálido, numa ascensão tranquila, como se balão fôsse. Subito olhei para onde estava a cobra e então vi, pela primeira vez algo absurdo e incompreensível para um mortal, sobretudo um de 14 anos. Eu vi a mim mesmo em frente à cobra, isto é viu meu corpo. O susto foi tão grande que voltei para ele, corpo, num tranco único, mas o corpo não reagiu para minha alegria e tristeza do ser-cobra que ali estava. Outra vez no corpo deduzi, entre arrufos de emoção e petrificação racional, haverem duas pessoas em guerra mortal, e uma terceira, livre e com possibilidade de árbitrar a pugna do horror. Era eu mesmo.

O segundo evento, esse de estar fora do corpo e perceber o que se passava comigo mesmo foi, indiscutivelmente, de muito mais efeito e impacto que o primeiro. Agora havia um novo quadro com um possivel nova expectativa. Mas como proceder para voltar a sair novamente do corpo? Fiz um esforço de saida, e notei que o bastante era desejar elevar-me. Eis-me subindo, descolado do corpo. Fiz esta experiência umas três vezes, para ter absoluta certeza de poder ir mais longe. Ao mesmo tempo desejava que o meu corpo permanecesse hirto até que algum fato novo modificasse tudo aquilo. Reparei que a cobra não me via, apenas estava fixada em frente ao peito do meu corpo. Aproximei-me, utilizando o recurso do querer, e fui bem proximo e com a maior acuidade estendi o que pensei ser a mão para o corpo da cobra ate alcança-la, e nada aconteceu. Senti-me um fantasma, fui a meu corpo, tentei sacudi-lo e outra vez, nada aconteceu. Tudo isso era profundamente desgastante sobretudo porque não sabia nem como sair disso, nem ao menos o que isso tudo significava.

Olhei para a estátua de Nossa Senhora e desejei estar sobre ela, então vi-me sobre ela imediatamente. Desejei sair da gruta e vi-me logo fora dela. Reparei a existência de um tênue fio que me ligava no meu corpo. Desejei elevar-me e subi a gruta , com se balão fosse, olhando de cima. Voltei-me outra vez e vi meu corpo em frente ao terrivel inimigo, porém agora não mais sentia medo. Havia um sentido de libertação tão impressionante que o medo desaparecera. Mas precisava fazer algo para sair daquela situação. Reparei se não vinha ninguém na estradinha da gruta, pois isso significaria perigo de querer despertar meu corpo e, em segundos, tudo terminaria.

Lembrei-me logo do Vovô. "Vou chamá-lo, pensei". Imediatamente vi meu corpo, que mais tarde soube chamar-se astral, projetar-se passando sobre a sede e ficar ao lado do Vovô que se encontrava em companhia de alguns peões examinando algumas potrancas no piquete central.

Segurei o pelo braço direito e o máximo que ele fez foi coçar-se no ponto onde toquei-o. Ele ria e conversa alto com os piòes. Ninguém me via. Súbito dei um grito no ouvido do Vovô e logo depois para minha surpresa vi-o dirigir-se para o Joca indagando: " Va encilhar o Scot e a Malhada que vou passear com meu neto. Vê se acha o César por aí.

O Joca fez como ele mandou e foi selar os cavalos. Continuei a gritar no ouvido do Vovô e então, para minha alegria dirigiu-se para a sede. Ao encontrar meu pai indagou se tinha me visto e diante da negativa prosseguiu até a sede. Entrou na casa e perguntou por mim, mas a Mercedes respondeu que tinha descido para a gruta há muito tempo e ainda não tinha voltado. Notei leve preocupação no rosto do Vovô e só então comecei a ver cores circundando as pessoas. Talvez até tivesse visto antes, mas agora me dava conta disso. Vi que o Vovô tinha cores vermelhas, fortes, mescladas de verde e azul. Do lado do pescoço tinha um chumaço verde-esmeralda muito bonito. Mas a minha imagem continuava grudada no Vovô, embora meus gritos e minhas batidas de mão de nada adiantassem. Súbito, para minha maior alegria resolveu descer os degraus do morro e ir a gruta. Num instante, voltei ao local para ver se meu corpo ainda estava lá, pois ainda tinha muitas dúvidas se estava vivo ou morto, e notei que tudo estava exatamente como antes, a minha temível inimiga continuava deitada em minha frente alimentando-se por certo do ar ou energia que eu, ou meu corpo, respirava.

Verificando que tudo estava bem na guerra onde o ataque e a defesa se mantinham. Lembrei-me do relevo na gruta onde a Santa e o Cristo de madeira estavam e aproximei-me. Reparei então que tratava-se, mesmo de uma porta e deduzi que possivelmente se abria quando a Santa fosse acionada. Ai lembrei-me , até hoje nem porque, que para mim talvez não houvessem barreira e fui entrando pelo muro e estava, logo no outro lado. Ai vi um sala de reuniòes diferente das que conhecia, e, embora em forma de gruta, ao centro havia um pequeno livro vermelho, um esquadro e um compasso. Mas tive que retornar de imediato ,pois o Vovô estava entrando na gruta. Senti receio de que tocasse o meu corpo e, da mesma forma que eu, não visse a cobra. Tentei avisá-lo para que não fizesse, mas não adiantou. Intrigou-se em principio com a minha rigidez, mas acostumado as coisas da natureza percebeu logo que algo estava errado. Então viu a cobra à minha frente, e situou o campo de batalha e seus dois guerreiros. Arregalou dois olhos espantados e em silêncio aproximou-se.

Ouvi a voz grossa do Velho:


- Continue absolutamente parado , vou espantar essa bicha daí.

No meu interno matutei como ele iria proceder para tanto, mas vi que o engenho e a arte do Vovô eram fatos verdadeiros. Vi-o buscar um galho de árvore grande, acender um fogo na ponta e esticá-lo próximo aos olhos da cobra passando por cima do ombro do meu corpo e com muita calma enxotou-a de seu nicho, com o calor da vara. Ela respondeu sem agressão e de maneira humilde foi se retirando do seu lar e por fim saiu, mansamente pelo porta. Tudo isso meu olho via por dentro de meu corpo endurecido. Novamente ouvi a voz grossa:

- Passou o susto, pode voltar

Não houve resposta, o que lhe causou certa apreensão. Passou a mão pelo meu rosto e sentiu o calor da respiração. Com muita técnica segurou a minha fronte com os dedos e retendo a respiração, após alguns segundos exalou e disse:

- Onde você estiver, comece lentamente a retornar. Não há mais perigo, ouça, não há mais perigo. Retornando lentamente e com segurança, retornando, retornando...

Vi-me sugado para dentro do corpo e quando reparei estava gritando ante o tapa estrondoso do Vovô em minhas costas. Então abracei-o com muita emoção enquanto o Vovô me mandava chorar porque seria bom o choro diante da tensão vivida. Mas não chorei, bem pelo contrário, sentia-me leve e gratificado. Em verdade o que teria sido chocante e horroroso tornou-se um verdadeiro enigma dali por diante. Durantes alguns segundos hesitei em contar ao Vovô o ocorrido comigo fora do meu corpo. De certa maneira tinha que ser muito cauteloso na narração, pois podia causar dificuldades e embaraços e ser tomado, a partir dali, como louco. Tive medo que me internassem, como fizeram com um primo nosso que via coisas no escuro e tinha alucinaçóes. Mas mesmo assim arriquei-me pois sabia que o Vovê tinha capacidade de compreender e saberia que era verdade o que eu iria contar.

- Sabe Vovô que fui lhe chamar.?

- Como ?

- Não sei, mas aconteceu. Eu comecei a voar, em principio aqui por dentro e depois fui até onde o Senhor estava. Bati-lhe nos braços, e o senhor se coçou. Depois o Senhor mandou o Joca encilhar o Scott e mandou ver onde eu estava. Eu vi, Vovô, eu Vi, eu juro...

- Bem, bem, isso é interessante. Sabe de uma coisa, não conte isso para ninguém. Vamos fazer um acordo, ninguém pode saber desse acontecimento...

- E sabe mais que vi, Vovô. Vi que ali dentro tem um sala de reuniões, com bancos e no meio há um livro com um esquadro e um compasso. Então vi o Vovô meio grave:

- Nunca fale isso para ninguém. Depois vou lhe explicar tudo, certo.?

A partir desse acontecimento o Vovô e eu ficamos mais amigos e as nossas conversas vagaram entre o trivial e o chamado esotérico, que só muito mais tarde vim a compreender. De qualquer maneira havia algo diferente, e por muito tempo me indaguei porque tive que passar por experiência tão traumatizante e tão dificil quando essa. Por sorte o Vovô me fez compreender que tais experiências faziam parte de um jogo onde a gente aprende a ser adulto, onde se amadurece a forma psíquica.

- Que jogo é esse Vovô?

- O Jogo da Iniciação. Voce fez o que antigamente era chamado no Egito, na China e em outros lugares, a iniciação da terra.

- Bem, Vovô, segundo sei de leituras, os outros elementos que devem conter iniciações são o Ar, o Fogo e a Água.

- Sim - disse o Vovô, um pouco hesitante e logo fazendo silêncio.

- Então, provavelmente outras iniciações virão.? Mas por quê?

- Só você mesmo, meu neto, poderá responder essa pergunta. Mas não se esqueça, se passou esta, poderá e deverá passar as outras.

Embora a voz do Vovô me transmitisse plena confiança, ainda assim tinha medo do que poderia vir. Afinal, se a amostra foi dura, o que viria para frente?

- Vovô, quem é que está dirigindo essas iniciações para ver se eu vou ser aprovado?

- Você saberá com o tempo. E só você, mais ninguém, poderá saber quem está dirigindo a sua iniciação.