O mês de Dezembro
sempre teve a característica peculiar para a juventude
de marcar o fim do ano letivo e impregnar no espaço
o cheiro de um longo período de férias.
Já no começo, em seus primeiros dias sente-se
o cheiro de liberdade, e o mês parece corre rápido.
Pelo menos, era assim no meu tempo, e acredito que ainda
seja assim, para a garotada.
Pois, mal o verão estava por chegar e ele já
existia em minha mente, projetando para breve um ciclo
de coisas felizes. Ainda mais para um garoto na adolescência,
em quem os primeiro símbolos de natureza se fazem
sentir com força plena: O sol como símbolo
de vida aberta fazia despojar o uniforme escolar, lembrando
as praias com suas águas de amplidão,
as montanhas com sua liberdade para cima, ou a fazenda,
com sua natureza horizontal. As férias eram um
período de vida sem hora e sem medo onde cada
dia de alegria e liberdade corresponderia a um ano de
felicidade. Ainda mais para quem tem 14 anos, vivendo
numa numa rotina infernal de estudos e preocupações
no início da segunda idade, e numa cidade onde
a natureza se desmoronava lentamente substituída
pelos prédios altos, monolitos que, tal como
túmulos cheios de mortos-vivos, erguiam-se para
o céu, cada vez maiores e mais furiosos. As escolas,
os hospitais, a selva de pedra, o barulho ensurdecedor
dos carros e dos ônibus, tudo somava para expelir
a gente daquele horror, simbolizado pela escola. Mesmo
que o tempo fosse curto, as férias eram e sempre
serão, as férias.
Naquela idade já tinha pressentido que as férias
tinham, um sentido especial, uma lógica. Talvez
porque o catecismo religioso ensinava que Deus havia
criado o mundo em seis dias e no sétimo descansou.
Assim, Deus estaria de férias até aquela
data, razão porque acreditava que o mundo não
ia bem. Essa dedução era infantil, mas
tinha reflexos imensos aos finais de cada ano. Assim,
muito antes das férias acontecerem eu já
me sentia um filho de Deus, portador de um desejo, interior
e poderoso, de sair da prisão escolar, das paredes
artificiais e me dirigir para algum canto onde a mãe-natureza
generosamente pudesse me abrigar. Felizmente nesta vida
o meu desejo era amplamente correspondido, pois a fada-madrinha
me concedeu o privilégio de poder sair sempre
em férias e viajar, no verão, comungando
com a natureza na fazenda do meu Avô, enquanto
que no Inverno descia às praias encaloradas e
cheias de vida. Essa era outra rotina que me acostumei
desde cedo, a rotina de férias, longe do lugar
onde conheci a vida social e os valores primarios da
segurança, do lar e das andanças no asfalto,
nas calçadas da vida primária e nos túneis
escuros de uma vivência poluída. Cada dia
e cada hora das futuras férias eram antecipadas
em minha mente, como se as programasse de tal sorte
que teriam que acontecer conforme a força do
meu desejo, embora soubesse desde cedo que o inusitado
coloca sempre percalços e pedras, mau tempo e
crises de toda espécie, tudo para que a rotina
de férias se desprograme.
Aquele Janeiro de 1955 seria mais um dos muitos janeiros
de minha juventude de férias a ser passado em
meio a natureza esplendorosa das águas, cascatas,
pradarias e montanhas da fazenda do vovô. A decisão
de minha mãe foi passar o máximo de tempo
possivel lá, o que me deixou tão eufórico
que naquele fim de ciclo escolar passei em primeiro
lugar em todas as matérias. Talvez o meu interno
ja previamente antecipando esse período que,
logo mais, iria constituir-se num marco indelevél
para a formação de minha psique fez com
que me apressasse nos preparativos e na angústia
de chegar à fazenda. Os acontecimentos chamados
diferentes que circunstancialmente se sincronizam em
nossa vida diária ou comum marcam, por vezes,
como o seria desta, algo que deve ser urgenciado e vivenciado,
como que preparando-me para a compreensão, ainda
muito cedo, de uma das mais dificeis barreiras a que
deva se submeter o ser humano: a barreira do inconsciente.
Ela é uma especie de fronteira entre o real e
o cósmico. Para um garoto ainda insosso, de uma
geração nascida num pós-guerra
onde o desumano e o cruel ainda eram recentes, a curva
ascendente das comunicações ainda alcançava
níveis muito pequenos. Quando muito a chamada
intelectualidade da ocasião, em nome da democracia
que ganhou a guerra mas ficou furiosa para se manter
no Poder do Mundo, mostrava, para os garotos, uma verdade
chamada cientifico-democrática de tanta energia
que a bomba atômica foi a coroação
desse acasalamento. Os livros que ensaiavam os caminhos
da libertação democrática ainda
sofriam o ranço do "Index Librorum Proibitorum"
da Igreja Católica, secularmente destinada a
dirigir as consciências para o um " bem "
que era só cristão, e uma verdade que
era só democrática e cientifica. No entanto,
a natureza, com seus mistérios e sua sabedoria,
ordenava-me uma marcha ascensional rumo a conceitos
novos de liberdade de religião e de sabedoria.
Digamos que, nesta vida, a natureza real me colocou
frente a frente com o inusitado, dando-me as chaves
de um processo que mais tarde vim a conhecer e defini-lo
como Iniciação.
Se o tempo das Iniciações oficialmente
começou no ano de 1955, um pouco antes sofri
dois " acidentes " que chamei " paralelos
" e que marcaram profundamente a minha infância
e de forma tão próximas que se tornaram
para minha mente primária e ainda em formação
um único e profundo sulco. O primeiro aconteceu
no ciclo infantil de 7 anos de idade, quando minha mãe
me registrara numa escola particular cujo nome era o
da propria professora, Dona Lulú. Extremamente
severa porém justa, usava uns métodos
ainda antiquados, como o castigo da genuflexão
sobre o milho, as varadas nas mãos, o puxão
de orelhas horroroso e doído, de sorte que o
aprendizado era mais por medo do que pelo prazer da
sabedoria. Através de grande coação
éramos forçados ao estudo, ao diálogo,
à comunicação. Sobretudo, a não
errar. Mas esse estímulo coercitivo em mim não
desceu em forma de castigo, pois além de ser
bastante comunicativo, tive sempre uma natural curiosidade
para as coisas do intelecto. Aos poucos tornei-me versado
em vários assuntos, porém o que mais me
afeiçoei e ao que dediquei o máximo do
empenho e gosto, foi Geografia. Questionava tudo, bacias,
rios, montanhas, mares, e meu prato predileto era o
céu. Para minha alegria e raiva dos meus colegas,
Dona Lulu correspondia às minhas indagações
sobre coisas da área astronômica ao que
respondia com perfeição, embora exagerada
e grosseira.
As coisas corriam normais quanto, certo dia, às
duas horas da tarde, Dona Lulú tornou-se extremamente
nervosa. Aos berros, e como se estivesse possuída
por alguma coisa ruim, pediu que todos nos retirássemos
da sala sem fazer comentários e fôssemos
direto para casa. Demonstrava um nervosismo contagiante,
pelo menos podia percebê-lo, enquanto os outros
meninos, com a alegria pela saída inusitada diziam
adeus às pressas. Resolvi desafiá-la:
- Dona Lulú, ouvi falar numa eclipse e que vai
ficar tudo escuro. Isso é coisa do demônio
mesmo?
- Não, meu filho, por favor, não fale
nada, não diga nada, é... há sim
um eclipse, é, a Lua tapando o Sol, mas ande,
vá direto para casa, amanhã eu falo nisso.
Vá rápido e não pare por nada desse
mundo...
Fui para casa sem correria ou atropelos. Realmente
havia algo estranho no ar, pois todos tinham uma espécie
de medo e de certa forma corriam para suas tocas. Cheguei
já escurecendo quando minha mãe nervosa,
em companhia de algumas mulheres, iniciava uma novena
com velas acesas.
- Mamãe, o mundo vai mesmo se acabar? - ironizei
para ver a reação.
- Cala a boca, menino, fica lá no seu quarto.
Acenda a vela e aguarde, isso passa logo. Fique rezando.
E de jeito algum saia para a rua.
Como tive desde cedo o gosto pela inusitado, e como
a ordem dada a mim sempre recebeu um contra-ordem de
meu interno, evidentemente não resisti. Abri
a janela do quarto e vi a noite "durante"
o dia. Olhava curiosamente para o céu e não
conseguia enxergar a Lua. Onde diabo ela estaria.? Até
então não entendia bem o fenômeno,
mesmo porque jamais foi explicado de forma didática
e normal. O relógio apontava duas horas e dez
minutos quando a noite voltou a ser dia. Naturalmente
o retorno do dia depois de uma noite de dez minutos
e tanta confusão foi saudado com alegria e muito
grito. Mas tudo isso mostrava o mais profundo mistério,
um misticismo de grandes e graves proporções
e que ninguém sabia explicar direito.
Logo vieram os questionamentos, os debates. Naquela
noite recebemos um visita inesperada de um senhor a
quem minha mãe e a maioria de nossos amigos de
familia devotavam o mais profundo horror pois era ele
"médium espírita" e freqüentava
sessões de materialização de seres
mortos. Isso para uma família católica,
na década de 1950, gerava, num imenso transtorno,
uma contrariedade aos costumes da sociedade ainda vivendo
o espírito vitoriano do pudor e religiosidade
cristã. No entanto em mim se aguçava,
com mais força, a curiosidade por coisas do além.
O "medium espírita", pessoa de agradável
compleição agia de forma muito engraçada.
Muito alto e absolutamente calvo, a quem chamavam Comandante
Rafael, depois de algum tempo de perturbação
pois falava muito e era do tipo inconsequente, acabou
por desalinhar a " trama mais terrível que
se perpretava na Igreja Católica," a aparição
da Virgem de Fátima. Contou a história,
evidentemente a seu modo, mas para mim foi o mais impressionante
dos relatos até então feitos. Enquanto
falava sentia-me com a respiração ofegante,
como se estivesse participando da história e
com o mais profundo sentimento de respeito e reverência.
Embora seu relato fosse jocoso e irônico, no meu
intimo sabia que algo de verdade ali existia. O êxtase
e o enlevo se paralelizavam quando então vi,
ao longe, sobre os ombros dele, lá na porta da
cozinha, uma nuvem violeta se mexendo. Meu coração
disparou diante dessa estranha nuvem, mas notei que
ninguém via nada. Acreditei estar tendo algum
sintoma de loucura e fechei os olhos, enquanto o Comandante
Rafael continuava a sua arenga. Ainda temeroso abri
os olhos novamente e vi, com absoluta clareza, um lindo
rosto de mulher com cabelos loiros e olhos verdes numa
expressão de bondade que me pareceu “infinita”.
Ela estava ali, acima dos ombros do "medium"
tagarela. Arregalei tanto os olhos que o Comandante
não se conteve e perguntou:
- Que há, meu filho, por acaso tenho cara de
Nossa Senhora.?
O riso imbecilizado e coletivo foi um tapa no meu rosto,
fazendo-me amarrar a cara e fechar os olhos. Para minha
felicidade logo continuou a falar, mas a Senhora não
estava mais ali. Porém sentia por dentro uma
felicidade estranha, pois meus olhos que a terra há
de comer tinham visto um rosto muito belo, um sorriso
purissimo e uns olhos amendoados e verdes que jamais
poderiam ser esquecidos. Nunca questionei-me se era
Santa ou Mãe de Deus. Simplesmente uma belíssima
mulher.
Lógico que esse segundo acontecimento foi mais
forte que o primeiro, porque nele estava contida a lei
fundamental da natureza terrena, como mais tarde vim
a saber em questões de metafisica: a Lei do Afeto
e do Amor. A partir dali, principalmente nas aulas e
conversas sobre catolicismo, comecei a indagar porque
uma mulher como ela, mãe de Cristo, iria aparecer
para meninos comuns, aparentemente pobres? Afinal o
que diria a eles de tão importante? Mas ninguém
me respondia senão por delírios ou rompantes
de religiosidade. Durante muito tempo guardei a imagem
da Senhora como a mais preciosa relíquia da minha
memória infantil e pedia, em orações
para que um dia pudesse saber se a imagem que vira era
dela mesmo. Se não, quem seria.? E mesmo, por
que tal fato acontecera para mim? À medida que
o tempo foi passando fui ficando triste pois as interrogações
intelectuais começaram a ocorrer e não
conseguia resposta. Em verdade não podia conversar
com ninguém o que tinha visto pois, claro, seria
considerado louco. Esse foi um segredo que tive que
guardar.
Tais impressões marcaram a primeira fase da
infância e se mantinham firmes no inicio da adolescência.
Agora, a idade registrada no meu computador biologico
era de 14 anos, uma idade em que os sonhos e as fantasias
começam a ceder lugar a uma estranha loucura
objetiva que é de viver os valores da vida no
plano das emoções. Tudo nesse período
é sensação, prazer, e ainda vejo
na lembrança a alegria dos preparativos, da viagem,
do carro de meu pai, da estrada que duas horas após
me faria atravessar a porteira da fazenda do Vovô.
As minhas férias começaram ali, quando,
há vinte kms de distância em estrada sobre
linda planicie ja podia divisar a casinhola da entrada
da Fazenda e o arco triangular formado por duas torres
que se fechavam sobre um mata-burro. A passagem pelo
Portão triangular tinha uma imponência
toda especial, uma espécie de vitória
sobre o passado, a cidade, as coisas artificiais. No
íntimo sabia que, além do portão
havia um novo tempo, e quiçá, não
sei bem porque, mas sabia que havia uma outra ordem
de valores, uma escala de avaliações bem
diferente dos valores que conhecia.
O que se manifestava era senão a emoção
mais pura a partir da porteira para dentro, quando o
meu coração disparava e meu peito arfava
pela alegria estranha e manifesta de estar em algo afeto
à minha natureza. Foi sem dúvida o momento
inicial de uma série de vivências que tinham
raiz na soleira da fazenda e se arrastava pelos 12 kms
de distância que a separavam da sede, numa viagem
entre morros e pastos muitos bem trabalhados pela enorme
energia física do vovô. Não raro
encontrávamos, logo depois da entrada, o velho,
ou dirigindo um trator, ou comandando uma tropa de fiscalização
e preservação dos pastos, dos solos, dos
piquetes e das demais coisas muito próprias da
área rural
A passagem através desse chão de terra
por 12 km entre árvores, eucaliptos, ou pinheiros,
era singularmente bela. Ali começava a cerimônia
de abertura de um tempo feliz, onde o carro do meu pai
ziguezagueava nas curvas e se mantinha firme entre os
pastos verdes. Lembro-me do declive que levava o carro
a passar sobre um riachinho onde a água muito
clara ralava sobre as pedras formando uma ponte natural.
Logo se seguia um aclive grande e ao final, ao curvar-se
a estrada para a direita, via-se o espetáculo
maravilhoso da entrada da sede. Duas torres imensas
de pedra situavam-se como colunas em cujo centro se
dava a entrada principal da cidadela e, a partir dali,
até a casa do vovô havia um 1.000 metros
de baias e estábulos para cavalos puro-sangue,
além de currais de aspecto limpo e cheiroso,
onde as vacas eram ordenhadas para fornecer o leite
e os derivados, não apenas para a sede da fazenda,
mas para todos os habitantes. À direita, uma
farmácia completa, uma escola para os colonos
e um cineminha para a alegria geral. À esquerda,
a casa do vovô, um grande chalé no mais
autêntico estilo colonial espanhol.
Quem chegava de fora não podia acreditar que
existisse dentro daquele "Mosteiro" uma vida
tão intensa onde se misturavam os valores da
natureza com os valores de um viver saudável
incrivelmente distanciado das lides diárias das
grandes cidades. O vovô sempre fez questão
de manter o mais puro apreço a um sistema incorruptível
e inquestionavelmente atípico, onde os funcionários
e seus filhos viviam e cresciam à sombra de um
igualdade inabalável de trabalho e cujo exemplo
era dado por ele mesmo, inconstestavelmente um líder
rural, com um mando carismático, sem demagogia.
Soube com providencial genialidade estabelecer os colonos
em casas construídas por eles próprios,
em áreas delimitadas onde, depois de algum tempo
de assentamento, lhes era titulada a terra. Uma coisa
o vovô possuía e que nos legou, e eu pelo
menos aprendi com ele mais ainda nessas férias:
a não ter medo. Jamais teve medo - pelo menos
o medo que me era conhecido - de ganhar ou perder alguma
coisa, incluindo bens móveis e imóveis,
e segundo diziam, sua propria vida. Por isso nunca foi
traído e nunca se comentou dele ou sobre ele
qualquer tipo de maldade, sujeira ou indecência.
Ao contrario sabe-se - eu mesmo presenciei a cena -
que quando morreu a fazenda foi partida por um sulco
de erosão em meio a um estrondo que parecia uma
revolta da natureza contra o fim físico do velho.
Até hoje o fato do estrondo e da erosão
é comentada, ainda mais porque essa região
não é, pela natureza geológica
e localização geográfica, sujeita
a esse tipo de evento. Mas para mim não foi novidade
alguma, pois já sabia de antemão os acontecimentos
desse porvir, de sorte que apenas confirmou o que sabia.
Afinal, tudo estava pronto para a cerimonia de iniciação.
O templo da Grande Mãe Natureza estava belamente
preparado pelas mãos sábias e valorosas
do Vovô, e os elementos que compunham o cenário
dessa cerimônia já estavam dispostos, me
recepcionando. A cena estava pronta e o pano estava
aberto. As doze pancadas do Templo do Sol soaram quando
chegamos a sede da Fazenda e eu respirei o ar puro da
vida. Eram meio-dia em ponto e isso nunca me esquecerei
pois esta é a hora do inicio dos trabalhos sobre
as operações da natureza.
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