O Oitavo
por Clélia Romano

Quando Alícia acordou pela primeira vez arrastou-se até o banheiro, como se algo atávico dissesse que tinha de ir adiante, em direção a algum tipo de salvação. Só a escuridão a envolvia.

Não sabia exatamente o que tinha ocorrido, nem onde estava.

A cabeça pesava e a boca estava empapada, parecia estar muito doente. Provavelmente tinha bebido muito... era uma dedução, não uma lembrança.

Sentia-se desmaiar, o suor escorrendo de seu rosto, jorrando como água. Sua textura era diferente, menos liqüida, porém. Parecia sangue. Levantou-se, apoiando seu peso em algo que parecia um móvel. Percebeu uma luminosidade fraca, à esquerda. Era o interruptor de luz. Alcançou-o e apertou o botão. A claridade incidiu sobre seu rosto desfigurado e trouxe de volta a memória: estava no banheiro de seu quarto, o rosto inchado e coberto de sangue.

Olhou ao redor, como se aos poucos despertasse. Voltou a atenção para o rosto: o olho direito fechado e roxo, a mancha escura sombreando até o meio da face, o sangue encharcando o cabelo... que lástima! Estava só de calcinha e seus seios estavam feridos, vergões vermelhos faziam-se aparentes.

Viu a garrafa de água e seu costumeiro copo. Que alívio estar de volta, a salvo de algo inominável.

Quase não teve forças para erguer a garrafa e servir-se.

Deixando as luzes acesas atrás de si, voltou para a cama lentamente, e adormeceu.

Quando acordou, percebeu que o dia já ia alto. Um raio de luz atravessava por entre as persianas. Franziu o rosto de dor, uma funda pontada nas costelas.

Subitamente ficou alerta. Estava viva.

Tocou o rosto inchado e viu a fronha sangrenta, a toalha molhada e manchada, jogada na cama. Percebeu que não tinha sonhado.

Lembrou-se de tudo, inclusive do dia da semana. Era domingo.

Na noite anterior vivera uma experiência terrível com aqueles homens, assassinos, loucos, como chamar aquele tipo de gente? Ferir sem motivo, destruir pelo prazer, ai se pudesse esquecer!

Entrou no chuveiro, meio nauseada, lavando-se automaticamente.

Aproveitou o sabão para tirar os anéis dos dedos inchados. Dormira com eles, o que não era hábito, sabe lá como chegara em casa. Estavam todos lá, não a roubaram.

Observou que a opala de um deles estava pela metade, o pedaço restante preso ainda pelas pequenas garras. As mãos em seu habitual trabalho de percurso chegaram à vagina e ao ânus. Levou um choque. Os dois orifícios uniam-se praticamente. Estava ferida e o sabonete ardia.

Saiu do banho e secou-se com cuidado. Mais uma constatação: suas costas tinham sido chicoteadas, só podia ser, estavam em carne viva.

Ah, como iria contar essa história toda à polícia ou ao médico?

Mas, aquilo não ia ficar assim! Não poderia simplesmente esquecer. Não seria justo deixar aqueles facínoras à solta.

Evitando o espelho, saiu do banheiro, envolta na toalha.

Sentia o inchaço do olho, parcialmente fechado. Foi em busca da bolsa, queria um cigarro.

As formigas faziam um caminho cerrado em direção à bolsa aberta sobre a cômoda.
Aquelas formigas miudinhas eram nojentas, não se podia deixar migalha alguma que lá vinham elas. Mesmo em apartamento elas conseguiam entrar, vindas não se sabe de onde. Com certeza subiam pela lixeira do corredor. Dispersou-as com um safanão. Percebeu que eram muitas, estavam inclusive dentro do maço de cigarros. Serviu-se de um cigarro... e então viu a coisa.

Era uma unha humana culminando de um pequeno dedo. Lembrou-se da criança e jogou maço e tudo longe! Afastou-se, horrorizada e ofegante pelo susto. Tropeçou na cama e caiu no chão.

Um dedo decepado! As formigas...

Levantou-se depressa e correu para a privada. Vomitou e sentiu que ia desmaiar. Mas não desmaiou. Ficou sentada no chão frio e úmido, tremendo e chorando histericamente.

Sabe lá por quanto tempo ficou sentada, em estado de choque.

Quem poderia ajudar? Ninguém. Nunca tivera proteção e, de certa forma, estava acostumada a isso. Era uma pessoa muito só. E independente. Cada um dos seres a quem tinha se ligado foi desaparecendo de sua vida por um motivo diferente.

Na polícia não confiava por instinto, mas alguém tinha que tomar as devidas providências.

Lembrou-se de um delegado, chamado Montini... parecia confiável, muito diferente de Marcelo.

Balançou a cabeça, nova vontade de vomitar. Precisava ir ao médico. E decidir o que fazer daquele dedo terrível, isso também era prioritário. Jogá-lo na privada seria desumano, levá-lo à polícia, impensável. Acabaria envolvida na história escabrosa em que tinha sido metida, sem saber como.

Durante toda sua vida os homens sempre lhe fizeram mal... e estava sempre lidando com eles, que destino!

Sua mente reviveu os últimos meses: a morte de Aline, sua filha, perda que doía como se estivesse acontecendo a todo momento, Juliano, que viera do passado perturbá-la, Leo....e até o negro, em Porto Seguro (esperava nunca mais ter notícias dele), todos desfilaram no clarão da memória.

Estremeceu.

Deitou-se e cobriu a cabeça com o lençol. Seu cérebro trabalhava célere e ansioso.

Lembrava-se de ter ido ao Tcheers, um bar de encontros, na noite anterior. Desde que Aline morrera tinha andado deprimida. Mas ainda assim gostava de ir ao Tcheers aos sábados. Bebia, relaxava e... se acontecesse, fazia sexo, de maneira casual. Parecia fácil, inofensivo... e deu naquela confusão toda!

Naquela noite pediu conhaque, encostada num pequeno galpão. Um jovem aproximou-se, oferecendo seu próprio cartão, para que o garçom anotasse o consumo. Usava bigode curto, cabelos de fios longos, assentados com fixador. Era alto, mais de um metro e oitenta, bronzeado, olhos claros, nariz afilado, lábios finos, mãos poderosas. Possuía algo no olhar que era especial: um certo ar fatigado e magnético, pousado sobre ela, majestosamente. Sentiu uma atração irresistível, conforme analisava o homem.

Apresentaram-se. Ele era fazendeiro em Mato Grosso, tinha vindo para uma festa que ocorreria naquela noite, a partir da zero hora.

- Que tipo de festa?

Ele deu um risinho malicioso.

- Adivinha...

Ela imaginou logo: sexo.

Dançaram, muito agarrados, até que ele convidou:

-Vamos ficar juntos, quer?

Alícia aceitou o convite para a festa e para a aventura. Já tinha bebido o suficiente para nada temer e ainda antegozar o desafio.

Seu carro deslizou pela Avenida Rebouças e chegou à Brasil, o homem a seu lado.

Chegaram finalmente ao local, uma casa que parecia um verdadeiro palácio branco. Lá seria a festa.

Não havia luzes acesas.

- Assim é mais discreto, sorriu Lucio, era o nome dele.

O portão eletrônico foi acionado, quando ele disse quem era, e a porta principal foi aberta por um sujeito mal-encarado vestido de mordomo.

- Vejo que trouxe a comida de casa. - riu, o debochado.

Alícia não gostou.

- Falcão quer vê-lo. Está lá em cima. A moça pode aguardar no bar, servir-se de uma bebida.

Alícia quis saber onde era a festa, afinal aquilo mais parecia um cemitério.

- Nos fundos.- respondeu o mordomo.

Lucio apertou a mão dela. Sorriu e disse, com ar cúmplice:

- Já volto, mulher linda!

O mordomo com cara de bandido levou-a a uma espécie de jardim de inverno. Um vidro com desenhos em arabescos separava a saleta do jardim lá fora. Alícia divisou aos fundos uma construção menor, iluminada, como um salão de festas.

O bar era bem equipado e ela serviu-se da primeira bebida que viu.

Engoliu todo conteúdo do copo.

- Meu amigo tem o dom de criar verdadeiros palácios nas casas que aluga para festas, concorda?

Era a voz de Lucio, materializado na porta. Que bom não ter demorado muito.

- Experimente essa bebida!

Ele preparou algo transparente como vodca e pingou umas gotas de licor dentro.

- Brindemos ao nosso encontro!

Alícia tinha estado mais entusiasmada no Tcheers, mas agora era agüentar e tentar viver o momento. Felizmente tinha seu próprio carro e poderia ir embora quando quisesse.

Sentiu uma maravilhosa sensação de paz quando a bebida encorpada desceu, ardendo por sua garganta... e virou o restante.

-Isso!- aplaudiu Lúcio.

Ele sentou-se numa cadeira à sua frente... e foi falando que a desejara desde que a vira. Começou a masturbar-se.

Alícia quis ir até ele, ele a atraía, mas... não conseguiu se mover. Aquela bebida atuava como chumbo em suas pernas Começou a sentir calor.

A seguir o rosto dele deixou de ser humano: era um labirinto concêntrico, como o interior de um caramujo.

Ele se aproximou dela, tirou sua blusa e esfregou o pênis em seus seios. Alícia o queria com urgência, mas ele tinha outros planos.

- Antes, quero que conheça meus amigos. Vamos à festa.

Foram andando em direção a uma passagem que levava à casa menor, nos fundos do jardim, o tal salão de festas que ela entrevira pelo jardim de inverno.

Ela caminhava trôpega, parecendo pisar em algodão.

- Pode entrar- disse ele, abrindo uma porta de madeira trabalhada. –Espero que goste.

E então ela viu uma criança do sexo feminino, deitada sobre uma mesa. Nua. A fisionomia revelava sofrimento, as pernas abertas, o púbis sem pêlos. Descrever o que via é quase impossível: ferros, desde a vagina até os lábios, varavam o pequeno corpo. Mulheres e homens copulando, como se fosse o quadro do inferno. Ao longe uma cantoria cadenciada vinha de um aparelho de som que algumas vozes acompanhavam.

Alícia voltou seu olhar à criança: escorria-lhe sangue da vagina. Ela deu um grito de horror e procurou a saída, a adrenalina tornando-a lúcida rapidamente.

Naquele momento algo a golpeou na cabeça.

Quando voltou a si estava de volta ao interior da casa, cercada por vários homens. Um deles era Lucio.

- A menina tomou morfina e nada sente – ele disse – Sentiu prazer, como você vai sentir também.

E o outro, uma seringa na mão:

- Já experimentou morfina? Vai sonhar estar no céu, comendo mel, enquanto estiver comendo porra.

Gargalhadas, uma picada, uma risada perdida... e o resto foi um mergulho ao fundo do mar, o redemoinho, o afundar, ver pessoas falecidas, Juliano, Aline, sua voz chamando-a acordar:–Vem. mamãe, levanta!

- Essa mulher é difícil de dormir! Só com anestesia geral! – escutou.

O fantasma de Aline levantava-a sempre, até que de repente todos se afastaram, Aline puxou-a pela mão até a saída, ela caiu, gatinhou, levantou-se, entrou no carro. E de alguma forma chegou em casa, porque não era seu dia de morrer, com certeza.

Isso era tudo que conseguia lembrar.

Quanto ao dedo, de quem era e por que o colocaram em sua bolsa, não tinha idéia, mas só podia ser para apavorá-la ainda mais, um último ato de sadismo.

Poderiam querer incriminá-la de algo? Pelo sim, pelo não, não contaria à polícia ou à Montini sobre o dedo. Era o melhor.

Assim pensando, adormeceu.

A vida de algumas pessoas passa em brancas nuvens, mas a de Alícia tinha sido uma epopéia, uma tragédia e muitas vezes um mistério.

Ela acordou sentindo a dor que vinha do corpo inteiro, a náusea e o incômodo nos genitais. Tinha que arranjar forças e ir ao médico. Poderia chamar o Pronto Socorro em casa, mas... estaria na mão deles. Se fosse por sua própria conta ainda estaria no comando da situação. Menos perguntas.

Respirou fundo e tratou de se vestir.

Não viu o dedo em canto algum. Talvez estivesse embaixo da cômoda. Que horror! Agora que estava desaparecido parecia mais presente, como uma obsessão.

Sentiu vontade de fumar, mas a lembrança mesclava cigarro e dedo. O nojo que sentiu levou-a a mudar de idéia. Seria difícil fumar novamente.

Juntou a força de vontade que conseguiu arrebanhar, vestiu-se de qualquer jeito e dirigiu-se para o elevador. A chave de casa estava na porta, pelo lado de fora: tinha estado todo o tempo com o apartamento aberto. Sinal do estado em que tinha chegado na noite anterior.

Na garagem viu seu carro amassado no pára-lama dianteiro e traseiro. Isso era o de menos, podia ter morrido!

O médico perguntou sua idade.

- Vinte e sete.

Um olhar atencioso aguardou seu relato. Alícia começou a falar algo planejado. Era boa para inventar histórias.

- Ontem fui a um bar. Na saída, fui assaltada por dois homens, fizemos uma peregrinação para passar nos caixas eletrônicos da cidade e sacar dinheiro com os cartões de crédito. Queriam me roubar, mas não consegui lembrar da senha. Me bateram e violentaram – retirou os óculos escuros, para que o médico visse o corte e o hematoma.

- Já foi à polícia?

- Vou procurar um delegado, amigo meu, mas achei mais urgente vir aqui primeiro.

Ele fez com a cabeça um sinal afirmativo.

Alícia despiu-se atrás de um biombo e vestiu o avental azul. Depois deitou-se.

- Na altura das sobrancelhas não vou precisar dar pontos – disse o médico, examinando-a.

Virou-a de costas e viu as marcas. Fez um som imperceptível e indefinido, e passou um preparado frio, que ardia profundamente.

A seguir foi feito o exame ginecológico:

-Realmente- disse ele- Está muito machucada...

Ela sentia dor, e deixou escapar um gemido.

- Foi estuprada por algo diferente, um objeto... Deve ir à polícia, insisto.

- Irei, assim que sair daqui, pode crer. Vai precisar dar pontos?

- No momento só vou evitar a infecção. Vai receber medicamentos injetáveis aqui no ambulatório. Para passar em casa vou prescrever antibióticos locais e por via oral. Também vamos colher sangue... e quero vê-la daqui a dois dias. E não deixe de dar queixa.

Alícia voltou para casa precisando deitar-se e descansar. Notou que tinha deixado a porta aberta novamente. Paciência.

Pois bem, o nojento pedaço de carne não estava em canto algum! Ainda havia uma única formiga, perdida das companheiras.

Ora, o que poderia ter ocorrido? Estava certa de não ter tocado nele! Paciência.

Deitou-se como se o corpo fosse de chumbo. Não tinha vibração emocional alguma. Pensou em seu apartamento, na segurança emocional que ele deveria representar... mas não sentia nada, a não ser mal-estar.

Afinal, o sono e o cansaço venceram e ela adormeceu.