Jean voltou do enterro do pai com
muita raiva. Tudo de mal ele enfrentou na vida, com
galhardia: Alice, a separação, a negação
por ela do filho Cristiano, ele trabalhando e cuidando
do garoto. Felizmente agora estava criado, o rapaz..
Morava sozinho, era arquiteto. Encontravam-se aos
finais de semana, a vida de ambos era corrida, muito
trabalho e tudo mais.
Tudo bem, nada é como queremos, mas agora,
no entanto, as coisas ultrapassaram os limites, e
aquilo tudo lhe dava muita raiva! Ah, sim, uma raiva
maior que nunca. E ele já tinha sido homem
de enfrentar o diabo... mas com essa raiva, não
conseguia...ia dar merda.
A figura do pai o assombrava, o único bom velhinho
que Deus, se é que existia, tinha criado, sempre
à mercê daquele afeto maldito pela p...
da Anaide, só não dizia a palavra porque
ainda tinha respeito pelas relações
parentais. Um mínimo de educação
E ela, indiferente ao longo morrer do pai! Está
certo, ela era doente, drogada, mas alguém
tem pena de drogado? Ele não! Só o pai
e a mãe, azar, pobre dos dois. Mas o buraco
era mais embaixo.
Apalpou seus braços brancos e flácidos,
como que em busca de alguma realidade. Viu veias em
meio à brancura. Veias azuladas.
Ia ficar ali, morando naquela casa.
Sua irmã Anaide não faria à mãe
o mesmo que fez ao pai. Ele ia garantir.
Prejudicou muito a familia, aquela galinha, foi o
demo!
Ligou a televisão e abriu uma garrafa de whisky.
Era a primeira garrafa de doze caixas. Viu o primeiro
canal, de trinta, quarenta, nunca contou, era indiferente.
Trancou a porta e chorou, mal escutando a ladainha
na TV, bebendo o primeiro trago.
Seu pai amado, forte pai de família libanesa,
deitado, sendo afrontado pela própria filha,
tendo um enfarte, e ele impotente. A mãe, não
fosse tão fraca e tão boa pessoa! Só
sabia fazer bem o quibe, a salada de trigo...
Chorou de novo e tomou mais um gole, por aqueles dois
coitados que lutaram a vida toda, vieram imigrantes,
fizeram dois filhos, e nenhuma alegria! Entre o choro
e a os anúncios da TV passou-se o primeiro
dia.
Primeira garrafa.
Lá ficou ele deitado, nos lençóis
que se carcomiam, mas a televisão não
parava, algumas horas dormia e sonhava: Anaide, sua
boceta cheirosa, coberta por lagartixas. E acordava
em prantos, raiva e...tesão!- e bebia, o copo
fiel.
A mãe batia na porta, trazia comida, ele não
abria... ou abria, sem se lembrar, e comia alguma
coisa de azedar qualquer boca.
Foi virando bicho. Silêncio na casa. Anaide
devia estar comportada.
Ela que se atrevesse a bater na mãe. Haveria
de estrangular seu pescoço como já devia
ter feito, ela era uma galinha... e ela o merecia.
Pensamentos foram ficando ralos e gastos, com o tempo.
Mal via no espelho a barba branca crescida. Seus olhos
que o olhavam como os de sapo... envelheciam.
- Ricardo está aqui, abra a porta! - era a
voz da mãe, vinda do além.
- Não quero ver ninguém!
Nem ao filho, para quê?
Pelas frestas da janela os dias passavam, veio o outono,
depois o inverno, não sentia frio. Acompanhava
as estações pelos anúncios da
televisão.
Aquilo tudo tinha sido muito misterioso, o amor do
pai, o amor dele por Anaide... isso tinha sido mal...
muito perigoso para os dois.
Junto ao whisky um pensamento fluiu: a mãe
permitiu demais... o erro foi dela! Ela tinha ajudado
a criar a cobra! Mas logo sentiu remorsos, pobre da
mãe, que sabia ela?
E dá-lhe whisky. E televisão para o
conflito.
Não sei o que o curou: acabado o estoque, cortou
a barba e ao cabelo deu um retoque com a tesoura de
unhas, já não crescia muito felizmente.
Andou para fora do quarto como se tivesse pernas de
pau. Rígido. Ninguém o viu sair da casa,
naquela bela manhã. Pediu um táxi e
foi para o colégio, onde era dono e diretor.
A recepcionista o viu primeiro, como a um fantasma:
- Senhor... Diretor Jean! Esperamos pelo senhor há
seis meses! Bem-vindo!
Pois nunca mais Jean chegou perto de
copo que não tivesse só água,
nem visitou sua mãe, que só viu de novo
quando foi enterrada.
Tudo para não matar Anaide.