Quando
Alícia acordou pela primeira vez arrastou-se
até o banheiro, como se algo atávico dissesse
que tinha de ir adiante, em direção a
algum tipo de salvação. Só a escuridão
a envolvia.
Não sabia exatamente o que tinha ocorrido, nem
onde estava.
A cabeça pesava e a boca estava empapada, parecia
estar muito doente. Provavelmente tinha bebido muito...
era uma dedução, não uma lembrança.
Sentia-se desmaiar, o suor escorrendo de seu rosto,
jorrando como água. Sua textura era diferente,
menos liqüida, porém. Parecia sangue. Levantou-se,
apoiando seu peso em algo que parecia um móvel.
Percebeu uma luminosidade fraca, à esquerda.
Era o interruptor de luz. Alcançou-o e apertou
o botão. A claridade incidiu sobre seu rosto
desfigurado e trouxe de volta a memória: estava
no banheiro de seu quarto, o rosto inchado e coberto
de sangue.
Olhou ao redor, como se aos poucos despertasse. Voltou
a atenção para o rosto: o olho direito
fechado e roxo, a mancha escura sombreando até
o meio da face, o sangue encharcando o cabelo... que
lástima! Estava só de calcinha e seus
seios estavam feridos, vergões vermelhos faziam-se
aparentes.
Viu a garrafa de água e seu costumeiro copo.
Que alívio estar de volta, a salvo de algo inominável.
Quase não teve forças para erguer a garrafa
e servir-se.
Deixando as luzes acesas atrás de si, voltou
para a cama lentamente, e adormeceu.
Quando acordou, percebeu que o dia já ia alto.
Um raio de luz atravessava por entre as persianas. Franziu
o rosto de dor, uma funda pontada nas costelas.
Subitamente ficou alerta. Estava viva.
Tocou o rosto inchado e viu a fronha sangrenta, a toalha
molhada e manchada, jogada na cama. Percebeu que não
tinha sonhado.
Lembrou-se de tudo, inclusive do dia da semana. Era
domingo.
Na noite anterior vivera uma experiência terrível
com aqueles homens, assassinos, loucos, como chamar
aquele tipo de gente? Ferir sem motivo, destruir pelo
prazer, ai se pudesse esquecer!
Entrou no chuveiro, meio nauseada, lavando-se automaticamente.
Aproveitou o sabão para tirar os anéis
dos dedos inchados. Dormira com eles, o que não
era hábito, sabe lá como chegara em casa.
Estavam todos lá, não a roubaram.
Observou que a opala de um deles estava pela metade,
o pedaço restante preso ainda pelas pequenas
garras. As mãos em seu habitual trabalho de percurso
chegaram à vagina e ao ânus. Levou um choque.
Os dois orifícios uniam-se praticamente. Estava
ferida e o sabonete ardia.
Saiu do banho e secou-se com cuidado. Mais uma constatação:
suas costas tinham sido chicoteadas, só podia
ser, estavam em carne viva.
Ah, como iria contar essa história toda à
polícia ou ao médico?
Mas, aquilo não ia ficar assim! Não poderia
simplesmente esquecer. Não seria justo deixar
aqueles facínoras à solta.
Evitando o espelho, saiu do banheiro, envolta na toalha.
Sentia o inchaço do olho, parcialmente fechado.
Foi em busca da bolsa, queria um cigarro.
As formigas faziam um caminho cerrado em direção
à bolsa aberta sobre a cômoda.
Aquelas formigas miudinhas eram nojentas, não
se podia deixar migalha alguma que lá vinham
elas. Mesmo em apartamento elas conseguiam entrar, vindas
não se sabe de onde. Com certeza subiam pela
lixeira do corredor. Dispersou-as com um safanão.
Percebeu que eram muitas, estavam inclusive dentro do
maço de cigarros. Serviu-se de um cigarro...
e então viu a coisa.
Era uma unha humana culminando de um pequeno dedo.
Lembrou-se da criança e jogou maço e tudo
longe! Afastou-se, horrorizada e ofegante pelo susto.
Tropeçou na cama e caiu no chão.
Um dedo decepado! As formigas...
Levantou-se depressa e correu para a privada. Vomitou
e sentiu que ia desmaiar. Mas não desmaiou. Ficou
sentada no chão frio e úmido, tremendo
e chorando histericamente.
Sabe lá por quanto tempo ficou sentada, em estado
de choque.
Quem poderia ajudar? Ninguém. Nunca tivera proteção
e, de certa forma, estava acostumada a isso. Era uma
pessoa muito só. E independente. Cada um dos
seres a quem tinha se ligado foi desaparecendo de sua
vida por um motivo diferente.
Na polícia não confiava por instinto,
mas alguém tinha que tomar as devidas providências.
Lembrou-se de um delegado, chamado Montini... parecia
confiável, muito diferente de Marcelo.
Balançou a cabeça, nova vontade de vomitar.
Precisava ir ao médico. E decidir o que fazer
daquele dedo terrível, isso também era
prioritário. Jogá-lo na privada seria
desumano, levá-lo à polícia, impensável.
Acabaria envolvida na história escabrosa em que
tinha sido metida, sem saber como.
Durante toda sua vida os homens sempre lhe fizeram
mal... e estava sempre lidando com eles, que destino!
Sua mente reviveu os últimos meses: a morte
de Aline, sua filha, perda que doía como se estivesse
acontecendo a todo momento, Juliano, que viera do passado
perturbá-la, Leo....e até o negro, em
Porto Seguro (esperava nunca mais ter notícias
dele), todos desfilaram no clarão da memória.
Estremeceu.
Deitou-se e cobriu a cabeça com o lençol.
Seu cérebro trabalhava célere e ansioso.
Lembrava-se de ter ido ao Tcheers, um bar de encontros,
na noite anterior. Desde que Aline morrera tinha andado
deprimida. Mas ainda assim gostava de ir ao Tcheers
aos sábados. Bebia, relaxava e... se acontecesse,
fazia sexo, de maneira casual. Parecia fácil,
inofensivo... e deu naquela confusão toda!
Naquela noite pediu conhaque, encostada num pequeno
galpão. Um jovem aproximou-se, oferecendo seu
próprio cartão, para que o garçom
anotasse o consumo. Usava bigode curto, cabelos de fios
longos, assentados com fixador. Era alto, mais de um
metro e oitenta, bronzeado, olhos claros, nariz afilado,
lábios finos, mãos poderosas. Possuía
algo no olhar que era especial: um certo ar fatigado
e magnético, pousado sobre ela, majestosamente.
Sentiu uma atração irresistível,
conforme analisava o homem.
Apresentaram-se. Ele era fazendeiro em Mato Grosso,
tinha vindo para uma festa que ocorreria naquela noite,
a partir da zero hora.
- Que tipo de festa?
Ele deu um risinho malicioso.
- Adivinha...
Ela imaginou logo: sexo.
Dançaram, muito agarrados, até que ele
convidou:
-Vamos ficar juntos, quer?
Alícia aceitou o convite para a festa e para
a aventura. Já tinha bebido o suficiente para
nada temer e ainda antegozar o desafio.
Seu carro deslizou pela Avenida Rebouças e chegou
à Brasil, o homem a seu lado.
Chegaram finalmente ao local, uma casa que parecia
um verdadeiro palácio branco. Lá seria
a festa.
Não havia luzes acesas.
- Assim é mais discreto, sorriu Lucio, era o
nome dele.
O portão eletrônico foi acionado, quando
ele disse quem era, e a porta principal foi aberta por
um sujeito mal-encarado vestido de mordomo.
- Vejo que trouxe a comida de casa. - riu, o debochado.
Alícia não gostou.
- Falcão quer vê-lo. Está lá
em cima. A moça pode aguardar no bar, servir-se
de uma bebida.
Alícia quis saber onde era a festa, afinal aquilo
mais parecia um cemitério.
- Nos fundos.- respondeu o mordomo.
Lucio apertou a mão dela. Sorriu e disse, com
ar cúmplice:
- Já volto, mulher linda!
O mordomo com cara de bandido levou-a a uma espécie
de jardim de inverno. Um vidro com desenhos em arabescos
separava a saleta do jardim lá fora. Alícia
divisou aos fundos uma construção menor,
iluminada, como um salão de festas.
O bar era bem equipado e ela serviu-se da primeira
bebida que viu.
Engoliu todo conteúdo do copo.
- Meu amigo tem o dom de criar verdadeiros palácios
nas casas que aluga para festas, concorda?
Era a voz de Lucio, materializado na porta. Que bom
não ter demorado muito.
- Experimente essa bebida!
Ele preparou algo transparente como vodca e pingou
umas gotas de licor dentro.
- Brindemos ao nosso encontro!
Alícia tinha estado mais entusiasmada no Tcheers,
mas agora era agüentar e tentar viver o momento.
Felizmente tinha seu próprio carro e poderia
ir embora quando quisesse.
Sentiu uma maravilhosa sensação de paz
quando a bebida encorpada desceu, ardendo por sua garganta...
e virou o restante.
-Isso!- aplaudiu Lúcio.
Ele sentou-se numa cadeira à sua frente... e
foi falando que a desejara desde que a vira. Começou
a masturbar-se.
Alícia quis ir até ele, ele a atraía,
mas... não conseguiu se mover. Aquela bebida
atuava como chumbo em suas pernas Começou a sentir
calor.
A seguir o rosto dele deixou de ser humano: era um
labirinto concêntrico, como o interior de um caramujo.
Ele se aproximou dela, tirou sua blusa e esfregou o
pênis em seus seios. Alícia o queria com
urgência, mas ele tinha outros planos.
- Antes, quero que conheça meus amigos. Vamos
à festa.
Foram andando em direção a uma passagem
que levava à casa menor, nos fundos do jardim,
o tal salão de festas que ela entrevira pelo
jardim de inverno.
Ela caminhava trôpega, parecendo pisar em algodão.
- Pode entrar- disse ele, abrindo uma porta de madeira
trabalhada. –Espero que goste.
E então ela viu uma criança do sexo feminino,
deitada sobre uma mesa. Nua. A fisionomia revelava sofrimento,
as pernas abertas, o púbis sem pêlos. Descrever
o que via é quase impossível: ferros,
desde a vagina até os lábios, varavam
o pequeno corpo. Mulheres e homens copulando, como se
fosse o quadro do inferno. Ao longe uma cantoria cadenciada
vinha de um aparelho de som que algumas vozes acompanhavam.
Alícia voltou seu olhar à criança:
escorria-lhe sangue da vagina. Ela deu um grito de horror
e procurou a saída, a adrenalina tornando-a lúcida
rapidamente.
Naquele momento algo a golpeou na cabeça.
Quando voltou a si estava de volta ao interior da casa,
cercada por vários homens. Um deles era Lucio.
- A menina tomou morfina e nada sente – ele disse
– Sentiu prazer, como você vai sentir também.
E o outro, uma seringa na mão:
- Já experimentou morfina? Vai sonhar estar
no céu, comendo mel, enquanto estiver comendo
porra.
Gargalhadas, uma picada, uma risada perdida... e o
resto foi um mergulho ao fundo do mar, o redemoinho,
o afundar, ver pessoas falecidas, Juliano, Aline, sua
voz chamando-a acordar:–Vem. mamãe, levanta!
- Essa mulher é difícil de dormir! Só
com anestesia geral! – escutou.
O fantasma de Aline levantava-a sempre, até
que de repente todos se afastaram, Aline puxou-a pela
mão até a saída, ela caiu, gatinhou,
levantou-se, entrou no carro. E de alguma forma chegou
em casa, porque não era seu dia de morrer, com
certeza.
Isso era tudo que conseguia lembrar.
Quanto ao dedo, de quem era e por que o colocaram em
sua bolsa, não tinha idéia, mas só
podia ser para apavorá-la ainda mais, um último
ato de sadismo.
Poderiam querer incriminá-la de algo? Pelo sim,
pelo não, não contaria à polícia
ou à Montini sobre o dedo. Era o melhor.
Assim pensando, adormeceu.
A vida de algumas pessoas passa em brancas nuvens,
mas a de Alícia tinha sido uma epopéia,
uma tragédia e muitas vezes um mistério.
Ela acordou sentindo a dor que vinha do corpo inteiro,
a náusea e o incômodo nos genitais. Tinha
que arranjar forças e ir ao médico. Poderia
chamar o Pronto Socorro em casa, mas... estaria na mão
deles. Se fosse por sua própria conta ainda estaria
no comando da situação. Menos perguntas.
Respirou fundo e tratou de se vestir.
Não viu o dedo em canto algum. Talvez estivesse
embaixo da cômoda. Que horror! Agora que estava
desaparecido parecia mais presente, como uma obsessão.
Sentiu vontade de fumar, mas a lembrança mesclava
cigarro e dedo. O nojo que sentiu levou-a a mudar de
idéia. Seria difícil fumar novamente.
Juntou a força de vontade que conseguiu arrebanhar,
vestiu-se de qualquer jeito e dirigiu-se para o elevador.
A chave de casa estava na porta, pelo lado de fora:
tinha estado todo o tempo com o apartamento aberto.
Sinal do estado em que tinha chegado na noite anterior.
Na garagem viu seu carro amassado no pára-lama
dianteiro e traseiro. Isso era o de menos, podia ter
morrido!
O médico perguntou sua idade.
- Vinte e sete.
Um olhar atencioso aguardou seu relato. Alícia
começou a falar algo planejado. Era boa para
inventar histórias.
- Ontem fui a um bar. Na saída, fui assaltada
por dois homens, fizemos uma peregrinação
para passar nos caixas eletrônicos da cidade e
sacar dinheiro com os cartões de crédito.
Queriam me roubar, mas não consegui lembrar da
senha. Me bateram e violentaram – retirou os óculos
escuros, para que o médico visse o corte e o
hematoma.
- Já foi à polícia?
- Vou procurar um delegado, amigo meu, mas achei mais
urgente vir aqui primeiro.
Ele fez com a cabeça um sinal afirmativo.
Alícia despiu-se atrás de um biombo e
vestiu o avental azul. Depois deitou-se.
- Na altura das sobrancelhas não vou precisar
dar pontos – disse o médico, examinando-a.
Virou-a de costas e viu as marcas. Fez um som imperceptível
e indefinido, e passou um preparado frio, que ardia
profundamente.
A seguir foi feito o exame ginecológico:
-Realmente- disse ele- Está muito machucada...
Ela sentia dor, e deixou escapar um gemido.
- Foi estuprada por algo diferente, um objeto... Deve
ir à polícia, insisto.
- Irei, assim que sair daqui, pode crer. Vai precisar
dar pontos?
- No momento só vou evitar a infecção.
Vai receber medicamentos injetáveis aqui no ambulatório.
Para passar em casa vou prescrever antibióticos
locais e por via oral. Também vamos colher sangue...
e quero vê-la daqui a dois dias. E não
deixe de dar queixa.
Alícia voltou para casa precisando deitar-se
e descansar. Notou que tinha deixado a porta aberta
novamente. Paciência.
Pois bem, o nojento pedaço de carne não
estava em canto algum! Ainda havia uma única
formiga, perdida das companheiras.
Ora, o que poderia ter ocorrido? Estava certa de não
ter tocado nele! Paciência.
Deitou-se como se o corpo fosse de chumbo. Não
tinha vibração emocional alguma. Pensou
em seu apartamento, na segurança emocional que
ele deveria representar... mas não sentia nada,
a não ser mal-estar.
Afinal, o sono e o cansaço venceram e ela adormeceu.
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