Chegou
em casa furioso, batendo portas e sendo indelicado no
elevador com a solteira do 507. Sentia-se possuído
por um demônio fenício e por pensamentos
nada edificantes, que envolviam propósitos obscuros
e decadentes. Primeiro passo: banho quente, mas que
merda, acabou o sabonete, então vai sem mesmo.
Por um átimo, inexplicavelmente, ficou feliz.
Apenas um átimo. Felicidade de um segundo, sendo
prontamente substituída pelo sentimento principal
de destruição.
Não que fosse assim sempre tão malvado,
na maioria das vezes era uma criatura mansa, bucólica,
quase pastoril em seu temperamento, geralmente indiferente
e movida a instintos bovinos, que incluíam a
rotina monótona - porém estável
- de acordar-defecar-comer-trabalhar-retornar-eventualmentetransar,
tudo não necessariamente nesta ordem (e assim
correria tudo bem, contanto que a ação
segunda jamais viesse antes da primeira, o que seria
deveras desagradável).
Rompantes de ódio como aqueles eram raros, mas
quando vinham eram ferozes, quase assassinos em seus
intentos. Em realidades alternativas de sua mente, já
tinha matado um bom número de pessoas com um
certo requinte inconfessável de crueldade. O
que nos diferencia dos assassinos, enfim, senão
a diferença entre intenção e prática?
Se a intenção cria realidades, merecemos
todos a cadeira elétrica!
Ódios desta magnitude são, geralmente,
cumulativos na maioria dos seres da raça humana.
Não provém de fonte única, mas
são antes o assombroso resultado de incontáveis
pequenas desventuras, que somam frustrações
e rejeições amorosas, inflação,
topadas inadvertidas no dedão, encontros desagradáveis,
chefes tirânicos, micoses de piscina na virilha,
ácaros no travesseiro, etc. Ah vida intragável,
vida odiosa, repleta de terrores com curtíssimos
intervalos de prazer! Sentou-se e começou a se
masturbar freneticamente.
Pensava não na morena do 507, nem tampouco na
namorada de algum amigo, muito menos em algum amigo.
Nenhuma sodomia - fosse ela politicamente correta ou
devassa - ocupava sua mente. Pensava em seus clientes
de loja, clientes intragáveis, odiosos, mal-educados,
clientes de hálito ruim e pele amarelada à
luz fluorescente. Clientes de merda. Era a punheta do
ódio. Sua masturbação frenética
não era o resultado de um rapto de prazer, não
era um êxtase sensual desencadeado por imagens
de volúpia. Muito pelo contrário, tratava-se
de um extravasamento mecânico de toda a tensão
muscular acumulada num único dia de trabalho,
frustrações e ressentimentos da vida insuportável,
vida odiosa. Trabalho torpe. Trabalho para o qual não
tinha a menor habilidade, nunca fora bom no trato com
pessoas, preferia animais e teria sido veterinário
se não tivesse engravidado Luciana ("uma
vaca", como ele mesmo a definia), o que o levou
a ter que trabalhar para sustentar bebês, já
que sua prodigiosa fertilidade o presenteou com a pior
qualidade de gêmeos: os de sexo oposto, que não
permitem a economia de nada. Quando são gêmeos
do mesmo sexo, pelo menos dá para fazer ambos
usarem uma mesma roupa e irem revezando, mas ele jamais
tinha sido um cara de sorte, e Luciana - repetia para
si mesmo - "era uma vaca".
Masturbava-se pensando nisso. Cliente das 11: olhava-o
de cima a baixo, como se estivesse usando saltos de
4 metros, o fez revirar o estoque inteiro atrás
de um par de sapatos número 42 que, quando encontrado
e experimentado, repelido foi. Era "marrom muito
escuro, se fosse mais clarinho eu levava". Toda
dor e destruição para você, cliente
das 11! Masturbava-se pensando nisso. Cliente das 13h23m:
uma adolescente de riso nervoso, como em geral são
as fêmeas da espécie humana em idade pubescente.
Risonha, quase ao nível do histérico,
tratando a tudo com diminutivos. "Eu queria um
shortinho bem bunitinho para uma festinha amanhã
hihihi!", assim mesmo, sem pontuação
entre o amanhã e o hihihi. Menina insuportável.
Que seus ossos se quebrem em mil pedaços, que
uma lança lhe trespasse! Masturbava-se pensando
nisso. Cliente das 16h18m: velha chata verborréica,
não parava de falar de sua vida, de seus netos,
de seu gato Faísca. Masturbava-se pensando nas
artérias coronarianas da velha implodindo e no
gato morrendo de fome sem sua ração diária
de Friskas. Diante da imagem do gato morrendo de fome,
gozou.
O esperma voou para todos os cantos, numa profusão
de material nunca antes vislumbrada. Tudo bem, isso
é um exagero, mas este é um conto dramático,
é minha obrigação colori-lo, fiquem
apenas com a certeza de que a quantidade expelida foi
considerável. Um big bang miniatura. O sêmen
caiu no chão, um pouco grudou na parede à
direita (seu pênis era torto, detalhe tolo porém
curioso), mais um pouco caiu sobre uma revista QUEM,
cuja capa era o Luciano Szafir. Sentiu-se melhor, evacuou
e foi dormir. Dormiu um sonho aparentemente sem sonhos
(digo "aparentemente" posto que é provado
que sonhamos todos os dias, caso contrário enlouquecemos),
mergulhado nas trevas escuras que eram, naquele momento,
90% de seu ser, se é que estas coisas são
mensuráveis, mas digamos que sim apenas para
este conto. Na verdade, sonhou com o nascimento de estrelas
e galáxias, mas sua memória de peixe de
aquário não lhe permitiu manter a recordação
do sonho.
Despertou feliz, com uma sensação de
plenitude indizível, não associada a nada
em específico. Era o prazer de um novo dia que
começava, da aurora que anunciava a possibilidade
de mil amanhãs. Ele estava tão feliz que
pensou em gastar 200 reais com presentes para amigos
que não via há muito tempo. A estranha,
esquisita química que movimentava seu cérebro
havia revertido o rumo, e o levava agora aos píncaros
do êxtase. Nunca sequer desconfiara que era ciclotímico
maníaco-depressivo. As cores estavam vivas, o
ar cheirava a infância, e ele estava pronto para
encarar mais um dia no shopping. Evacuou novamente -
posto que seus intestinos eram maravilhosos -, banhou-se,
tomou uma tigela de flakes com leite semi-desnatado
Glória e encaminhou-se, lépido
e fagueiro, ao shopping, mas o shopping não estava
mais lá. "Que bom!", pensou.
Em seu lugar, uma profusão de entulhos. Ruínas.
Em torno, pessoas chorando, repórteres de rapina
(um pleonasmo), gente gritando e alguns vários
que se regozijavam com a novidade que tornaria a vida
menos tediosa, graças ao fato novo e inesperado
de que o shopping havia explodido. Sim, não se
engane, digno leitor, pois cada catástrofe que
assola nosso planeta é seguida de uma multidão
de sádicos ocultos, que sentem um prazer imenso
diante da ruptura da rotina.
Cada pedaço de pedra arrebentou-se ao chão,
e a maioria dos que estavam em seu interior obviamente
morreram. Diante de tamanha destruição,
sentiu que precisava de mais comida e procurou uma lanchonete.
Tomou uma vitamina de banana e pediu um misto quente,
que comeu vagarosamente para poder aproveitar melhor
a companhia da caixa da lanchonete, que ele definiu
como "uma gatinha gostosinha", em sua natural
predisposição a animalizar as mulheres.
Uma vaca, uma gata, mas nenhum ser humano em seu universo.
Adoraria sair com ela, conhecê-la melhor (comê-la).
Convidá-la para sair seria uma boa (má)
idéia, e ele certamente se daria bem (mal). O
pior de tudo em seus pensamentos não era a timidez,
eram os parênteses sub-reptícios, que insistiam
no negativo enquanto ele se esforçava para fazer
valer o que havia aprendido nos livros de Lair Ribeiro.
Pagou a conta e saiu, e a gatinha gostosinha tornou-se
futuro imperfeito.
Voltou às ruínas. Diversas ambulâncias
chegavam e saiam, e o corpo de bombeiros trabalhava
incansavelmente, auxiliado por voluntários. Ele
pôde vislumbrar algumas pessoas que eram retiradas
do shopping, arrebentadas porém vivas, dentre
tantas outras evidentemente mortas. Resolveu esperar
e ver.
O primeiro grupo de três homens apareceu carregando
uma velha irrecuperavelmente triturada em todos os ossos.
Ela gemia e chorava, tossiu duas vezes e morreu. Ele
olhou direito, e estremeceu: era a tal velha das 16h18m.
"Infarto massivo do miocárdio", disseram.
O segundo grupo de homens pediu ajuda, precisavam urgentemente
tentar libertar uma garota de 16 anos que havia sido
trespassada por uma barra de ferro na altura da cintura.
Fora literalmente atravessada por uma lança proveniente
das ferragens na estrutura. Ele não acreditava
no que via. Hihihi, riu. Hihihi. Sentiu seu membro enrijecer,
formando um certo volume nas calças. Nada aparente.
Hihihi!
Um terceiro grupo de homens surgiu carregando um cadáver
totalmente queimado. O indivíduo havia sido tão
tostado que sua pele havia adquirido uma tonalidade
marrom-clara. Não um marrom muito escuro, nada
de um marrom parecido com sapatos rejeitados às
11 da manhã. Era um marrom clarinho, bastante
apropriado, de muito bom gosto. Apropriadíssimo.
Achou que fosse gozar nas calças.
Correu para o primeiro banheiro que encontrou, mais
precisamente o banheiro da lanchonete onde antes havia
comido um misto pseudo-quente, e masturbou-se com tanta
violência que quase feriu a pele do pênis.
Pensava na caixa da lanchonete, coisas de estilo comum
que qualquer um pensa quando se masturba: que delícia,
que tesão. Isso, gostosa! Me morde todinho! Gozou
imaginando-a enfiando a língua em sua orelha.
Sempre gostara de línguas na orelha. O ato inteiro,
entre a entrada abrupta no banheiro e o orgasmo, não
durou mais do que 4 minutos e 23 segundos. Ejaculou
nos ladrilhos azuis e desbotados, reflexo pálido
do céu daquela manhã.
Saiu do banheiro e foi para a rua sem sequer olhar
para trás, não havia porque fomentar sonhos
com a caixa, evidentemente muita areia para seu caminhão.
Olhando para a esquerda, viu que a garota, musa inspiradora
de seu ritual de 4 minutos, chorava copiosamente olhando
para o shopping estourado.
- Que desgraça! Que horror!
Ao vê-lo, atirou-se para ele, braços abertos
em terrível desespero. Chorava tanto, que encharcou
sua camisa. "Que horror, que horror!", repetia,
"quanta gente morta", choramingava, mas ele
não pensava em nada específico, sua mente
era um branco de incredulidade, e quase caiu desmaiado
quando ela anunciou, de forma súbita mas nem
por isso menos voraz, numa inconteste demonstração
de mudança automática de canal, que queria
que ele a comesse.
Não, não era um convite para jantar.
Não era uma sugestão de um cineminha para
aliviar o stress, mas com intenções segundas.
Ela queria, em claro e bom português, que ele
a furasse. "Violentamente", completou ela.
Queria sexo anal também. E ser chicoteada. E,
bem... melhor não contar.
Foram para um quarto vagabundo de hotel, onde fizeram
sexo frenético durante 3 horas consecutivas.
Não cabe aqui uma descrição detalhada
de tudo o que eles fizeram, deixarei a imagem a encargo
da imaginação do leitor criativo e da
leitora experiente, mas considerem que foi um arrebatamento
hormonal de primeira grandeza. Mas ele não ejaculou.
Gozar ele gozou, no que diz respeito a ter sentido um
prazer concentrado por três vezes, mas seu líquido
precioso não foi derramado. Ainda bem, pois não
tinha usado camisinha. Era irresponsável, fértil
e fabricante de gêmeos. Já ouvira falar
a respeito de gozos sem ejaculação, numa
daquelas revistas bobas de esoterismo, mas nunca imaginara
que tal coisa fosse, de fato, possível. Enfim,
não importa, foi bom pra você, meu bem?
Acendeu um cigarro e, de levinho, assim bem discretamente,
peidou. Ela fingiu que não percebeu, ele fingiu
não saber que ela fingia, e estava tudo bem,
o mundo era paz e harmonia e borboletas e peidos fedorentos
e fingimentos.
Despediram-se após uma deliciosa ducha a dois,
trocaram telefones e ela lhe jurou amor eterno e total
escravidão sexual. Não pensando muito
naquilo tudo, foi para a casa e mais uma vez dormiu
pesadamente, e desta vez lembrou dos sonhos. Sonhou
com estrelas nascentes e universos que implodiam, engolindo
a si mesmos e vomitando-se para fora de novo. No meio
disso tudo, teve seu sonho invadido por um mamífero
da Parmalat de olhinhos claros, talvez um tigre ou uma
onça, ele não sabia bem diferenciar uma
coisa de outra, mas o que importa mesmo é que
a gracinha olhou para ele, com o copinho cheio de leite
e perguntou:
- Tomou?
Acordou sobressaltado e com uma impressão muito
ruim daquilo tudo. Achou o sonho macabro, odiava criancinhas,
não suportava mamíferos e tampouco bebia
Parmalat. Não tinha raciocínio para simbolismos,
interpretou o sonho literalmente e ficou com medo de
ter de alguma forma engravidado a caixa da lanchonete
com pentagêmeos. Afinal, felinos tinham incontáveis
filhotes! Um lapso de raciocínio simbólico
no meio de um oceano de pensamentos ciclotímicos,
em sua maioria obtusos e torpes.
O telefone tocou. Atendeu e era Luciana, a por ele
intitulada "Vaca". Choro de crianças
ao fundo, e reclamações de "quelo
meu binquêdo, mi dá". Sentiu repulsa,
imaginando narizes escorrendo e os olhos remelentos
de seus filhos. O que queria A Assim Chamada Vaca? Dinheiro,
com certeza.
Não era dinheiro.
- Você poderia por favor dar uma passada aqui
e verificar qual a razão do cheiro horrível
que vem do hall? Pensei que fosse um rato morto, mas
já procurei em todos os cantos e não acho
nada, e não estamos conseguindo mais suportar!
Bem, aquilo era o de menos, e já estava acostumado
a servir de faz-tudo no universo das mulheres, que parecem
ter nascido com o cérebro menos dotado para questões
de ordem técnica e mecânica. Curtindo o
próprio machismo que lhe era inerente, chegou
ao prédio de Luciana. Estava apertado para urinar,
pediu licença e foi ao banheiro, tendo tido o
minucioso cuidado de urinar toda a tampa da latrina,
uma forma mesquinha de vingança contra a perturbação
de seu dia (e também uma forma inconsciente e
secreta de demarcar seu território contra outros
machos que porventura passassem por ali).
De fato, o cheiro era terrível. Era um claro
fedor de coisa morta. Saiu farejando por todo o hall,
com seus dois filhos atrás adorando a aventura,
e então identificou o foco do cheiro: provinha
do apartamento 1113.
- Este é o apartamento da Dona Clarice -, disse
Luciana.
- E quem é a dona Clarice?
- É uma senhora de uns 60 anos, que mora sozinha
com um gato siamês antipático. Ela tem
alguns netos, e vive entupindo eles de presentes. É
rica e viúva, já viu, né? Às
vezes dá presentinhos pra Alda e Hamilton.
Chamaram o síndico, que bateu e bateu no 1113,
sem obter resposta alguma. Temendo o pior, abriram a
porta com uma chave-mestra, e depararam-se com o cadáver
de um gato siamês provavelmente morto há
dias, em avançado estado de decomposição,
rodeado por formigas, moscas e algumas pequenas baratas.
Luciana vomitou imediatamente, o síndico levou
a mão ao nariz e disse "Oh meu Deus",
mas a reação do nosso personagem principal
foi menos usual: simplesmente ficou sexualmente excitado.
- Mas não pode ser... - disse Luciana, recompondo-se.
- O quê exatamente não pode ser? - perguntou
o síndico.
(Meu pau está duro! Não pode ser!)
- Ele estava vivo até ontem! Como pode ter morrido
e apodrecido tão rápido? Eu mesmo o vi!
Procurei Dona Clarice para pedir um pouco de sal emprestado,
e eu VI o gato! Estava vivo!
- A que horas a senhora a viu? - interpelou o síndico.
- Por volta das 18 horas, ela tinha acabado de voltar
daquele shopping que desabou hoje pela manhã,
tinha ido comprar roupas pros netos. – respondeu
Luciana, vomitada. - Coitada... pelo visto resolveu
voltar lá hoje, e deu azar...
Um estalo ribombou no cérebro de nosso anti-herói.
Era a velha das 16h18m, só pode ser! A que falava
no gato! A velha chata! E o gato era o gato chato!
- Mas mesmo que o animal morresse hoje pela manhã,
ele não poderia se decompor tão rápido...
há algo estranho aqui...
Se você, digno leitor, já tiver - ainda
que em sua infância mais recôndita - montado
um quebra-cabeças, ainda o mais ordinário,
do estilo que reflete sua vida, deve certamente recordar-se
do momento de iluminação que ocorre quando
finalmente A Peça é encontrada, revelando
num vislumbre mágico a natureza da imagem que
por horas você tentou montar. De fato, as pessoas
adoram quebra-cabeças porque eles de algum modo
refletem a natureza de suas vidas: fragmentos, desordem
e uma busca incessante por uma Peça. Um breve
instante de entusiasmo e descoberta de sentido para
as coisas, dando lugar a novo tédio, tempos após.
E foi exatamente este entusiasmo que nosso personagem
sentiu. O entusiasmo de "quem entendeu" finalmente
o sentido obscuro por
detrás de tudo. Pediu licença e foi-se.
Voltou para casa praticamente correndo, mal conseguindo
conter a ereção que ameaçava sair
de sua bermuda, estava mais excitado do que jamais esteve.
Trancou-se em casa, desligou o telefone, disse ao porteiro
que não queria ser incomodado, fechou as janelas,
apagou as luzes e foi criar novos universos.
- Pensarei em coisas boas e bonitas, desta vez. - disse,
determinado.
Masturbou-se pensando em flores. Begônias, cravos,
madressilvas, petúnias, crisântemos, lírios,
girassóis, miosótis, damas da noite, violetas
d'água, rosas (morra...), cardamomos, agrimônias.
Masturbou-se pensando em pedras preciosas e semi-preciosas.
Jaspes, ágatas, granadas, hematitas, esmeraldas,
rubis, turquesas, olhos de tigre, ônix, diamantes,
(...Luciana!).
Masturbou-se pensando em cores, mas não era
bem dotado artisticamente (você é uma vaca!),
de modo que mal conseguia sair das primárias.
Azul, amarelo, vermelho, azul, verde, amarelo, azul,
vermelho, verde, verde (nunca deveria ter tido filhos
com você!), amarelo, MAGENTA! Ufa, consegui! No
afã de sua criatividade, gozou às 19 horas
e 23 minutos, Luciana metamorfoseou-se numa vaca às
19 horas e 37 minutos no meio da Avenida Nossa Senhora
de Copacabana e morreu atropelada por um caminhão
de cor magenta, desgovernado, pertencente a uma floricultura.
Vaca e caminhão arrebentaram-se na vitrine de
uma joalheria às 19 horas e 43 minutos, explodindo
em flores e pedras por toda a rua, transeuntes estupefatos
com o show multicor. Seus filhos deixaram de existir
no mesmo momento, inclusive retroativamente, de modo
que quando ele despertou sequer se recordava de um dia
ter tido gêmeos. Aliás, que gêmeos?
Nunca houve gêmeos e nem tampouco Luciana, mas
uma vaca sem dono que surgiu do nada nas ruas do Rio
de Janeiro, isso sim existiu.
Após ter lido no jornal (com alegria culposa)
a notícia do atropelamento (deveras providencial)
de uma vaca (não pago mais pensão!), deu-se
conta de que não tinha controle sobre seus poderes,
na medida em que não tinha controle sobre seus
próprios pensamentos. De alguma forma, o Falo
Encantado atendia às determinações
dos pensamentos mais inconscientes, mais espontâneos,
e não necessariamente das coisas que ele se esforçava
para pensar. Era mais poderoso do que supunha mas jamais
saberia disso, pois aquilo que ele desfazia na tessitura
sutil da realidade deixava de existir não apenas
no presente mas também no passado como, por exemplo,
seus filhos gêmeos que jamais existiram e que
estou citando tão somente porque algo insiste
em martelar na minha cabeça dizendo que ele deveria
ter tido gêmeos. Mas nunca os teve. Perdoem a
digressão deste que vos escreve. Tenho problemas
mentais sérios.
Os dias se sucederam, mas nem sempre um após
o outro. A depender da inspiração e da
imaginação do nosso amigo, eventualmente
os dias se sucediam um antes do outro, na medida em
que suas masturbações eram acompanhadas
de remorso a respeito das coisas que ele poderia ter
feito e não teve a coragem de fazer. De vez em
quando os dias se sucediam em paralelo, um ao lado do
outro, com ele realizando escolhas diversas simultaneamente,
experimentando os diversos resultados possíveis.
Às vezes ele recriava Luciana, para logo em seguida
descria-la, tudo incidentalmente. Ninguém percebia,
mas o Cosmos era diariamente revertido a Caos todas
as noites, sendo refeito à imagem e semelhança
do onanista do Leblon. Nem ele mesmo percebia nada de
forma muito clara, tamanho era seu poder. A realidade
reconstruída era retroativa: para todos os efeitos,
tudo sempre foi conforme deveria ter sido, ninguém
sequer notava a diferença. Em algum lugar recôndito
de sua mente, um alarme ecoava fazendo-o lembrar-se
de coisas que nunca foram. Como sua imaginação
era parca, jamais foi capaz de recriar um universo perfeito,
ficava sempre tudo muito a desejar ou altamente confuso.
Não é possível detalhar com destreza
todas as alterações que ele realizou no
universo após seus exercícios masturbatórios,
faltam palavras que permitam uma explicação
plausível até porque, diversas vezes,
as leis da física foram anuladas ou simplesmente
revertidas, e para a maioria de seus atos não
há narração. O curioso é
que não importava o tamanho da aberração
que ele fizesse, o novo universo sempre tinha uma explicação
absolutamente lógica, com doutores e seus tratados
e definições altamente científicas,
com regras e teses de mestrado. Um universo de planetas
quadrados trazia consigo todo
um conjunto de Leis que tornavam totalmente normal a
forma bizarra de seus astros, assim como aquele em que
o tempo caminha para trás. Uma realidade onde
os recém-nascidos devoravam suas mães
para poder sobreviver (um pedaço a cada dia)
era encarada como inquestionavelmente natural. Não
havia limites para seu poder, exceto aqueles de sua
própria imaginação que, como já
pudemos ver à exaustão, era desprovida
de sentido. Então eu, que escrevo estas linhas,
olho ao meu redor e penso: mas Você não
poderia ter sonhado mais alto enquanto batia a sua punhetinha,
Seu Ordinário? Perdoe o desabafo, ilustre leitor.
Ele se masturbava e criava universos. Eliminou a primavera
da existência, pois era alérgico a pólen,
então depois criou uma raça de seres azuis
porque gostava da cor. Eventualmente criava novos satélites
para a terra, não sem invocar inadvertidamente
algumas hecatombes marítimas que não esperavam
mais do que uma lua no firmamento. Depois desfazia tudo
e recomeçava a sinfonia, colocando elétron
no lugar do próton, fazendo a luz ter massa (de
modo que quando amanhecia tudo ficava mais pesado),
o som ter cor, criou mais seis sexos, cansou-se e castrou
a todos.
Como tinha ambições medíocres,
conforme é da natureza dos deuses, não
se tornou rico (nem externa e nem internamente) e nem
tampouco realizou o bem. Desta forma foi engolido pelo
próprio membro varonil, pois num dia de tédio
masturbou-se pensando em nada - anseio secreto de todo
budista - e, assim sendo, nada foi, restando apenas
ele, vestido de mamífero da Parmalat, na vastidão
infinita do nada, a ejacular seu leite niilista, assassino,
destruidor.
- Tomou?
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